14 de decembro de 2014

O Leopardo


Tomasi di Lampedusa
O Leopardo (1958)

O Leopardo é a única novela entre a reduzida obra deixada por Giuseppe Tomasi di Lampedusa, e publicada postumamente. Passada maioritariamente no período conturbado da unificação italiana, tem como tema geral a desagregação da aristocracia siciliana num tempo que deixou de ter lugar para ela, em que campeiam os arrivistas burgueses. Inspirado na vida de familiares próximos, O Leopardo tem uma força visceral, do primeiro ao último parágrafo, sem prescindir de uma linguagem cuidada e criteriosa. Li algures, há tempos, que a qualidade da literatura se media pelo comprimento das frases. É uma afirmação discutível, mas, se reflectirmos no que ali está implícito, é impossível não deixar de concordar. Sendo, apesar de tudo, uma obra mal vista em determinados círculos "bem-pensantes", é-se levado a supor, tendo em conta o exemplo, que tal pode funcionar como um cartão de recomendação.

Don Ciccio continuava a bramar:
— Para vós, senhores, há outra coisa. Pode-se ser ingrato por causa de mais uma propriedade; mas por causa de um bocado de pão, o reconhecimento é uma obrigação. E há muito pano para mangas para os traficantes como Sedara, para quem o lucro é uma lei da natureza. Para nós, a arraia-miúda, as coisas ficam na mesma. Sabeis bem, Excelência, que aquela boa alma do meu pai era guarda-caça do pavilhão real de S. Onófrio, já no tempo de Fernando IV, quando aqui estavam os ingleses. É certo que se levava uma vida dura mas o uniforme real e a placa de prata davam autoridade. Foi a Rainha Isabel, a espanhola, que nessa altura era Duquesa da Calábria, que me mandou estudar, que me permitiu ser aquilo que hoje sou, organista da Igreja Matriz, honrado pela benevolência de Vossa Excelência; e nos anos de maior necessidade, quando minha mãe enviava uma súplica à Corte, chegavam sempre as cinco onças de socorro, tão certas como a morte, pois lá em Nápoles estimavam-nos, sabiam que éramos boa gente, súbditos fiéis; quando vinha o Rei, este dava umas palmadas nas costas do meu pai e dizia: «Don Leonardo, precisava de muita gente como você; sustentáculos fiéis do trono e da minha pessoa.» Depois, vinha o ajudante-de-campo e distribuía moedas de ouro. Agora dizem que eram esmolas, essas generosidades de verdadeiros Reis; dizem-no por não serem dadas a eles; tratava-se porém de justas recompensas da nossa dedicação. E hoje se esses santos Reis e Rainhas nos olhassem lá do céu, que diriam eles? «O filho de don Leonardo Tumeo atraiçoou-nos!» Ainda bem que no Paraíso se conhece a verdade. Eu sei, Excelência, eu sei, as pessoas como vós já me disseram que essas coisas por parte dos Reis não significam nada, fazem parte do ofício. Será verdade, é mesmo certamente verdade. Mas o facto é que havia as cinco onças e com elas sempre se ajudava a passar o Inverno. E agora que podia pagar a minha dívida, não há nada a fazer, nada, «tu não percebes patavina», o meu não transforma-se num sim. Era «súbdito fiel», tornei-me um bourbónico sujo. Agora toda a gente é «saboiana»! Mas os «saboianos» mastigo-os eu ao café! — E empunhando, entre o polegar e o indicador, um biscoito fictício, mergulhava-o numa chávena imaginária.

10 de outubro de 2014

Lendas de Portugal, vol. 3


Gentil Marques
Lendas de Portugal, vol. 3 (1964)

Terceiro volume dedicado à recolha de lendas populares portuguesas, desta vez sob o tema Lendas de Mouras e Mouros. O excerto que escolhi pertence à Lenda da Mina de Ouro, relacionada com a freguesia de Vale da Figueira, no concelho de Santarém.

Com voz sumida, Maria indagou:
– Chegamos?
– Sim, chegamos.
Ela olhou em volta. O coração bateu-lhe com violência.
– Mas... senhor... onde é a vossa casa?
– Já vai ver.
E encaminhando-se para uma pedra rochosa tocou-lhe com a mão. A pedra rodou. Maria olhou para o homem, aflita:
– Mas... isso é um alçapão!
Com a serenidade de sempre, ele retorquiu:
– É uma porta como outra qualquer.
– Pode ser um covil de ladrões!
– E... se fosse... recusava-se a salvar duas vidas?
Maria olhou o homem que a fitava numa ansiosa interrogação. Suspirou:
– Tem razão, senhor. Irei. E seja o que Deus quiser!
O homem sorriu. A sua expressão tornou-se mais leve. A sua voz, quase cariciosa.
– Cuidado! Daqui para diante encontrará muitas coisas que hão-de parecer-lhe estranhas. Não faça perguntas, nem tente fixar o que vai ver. Lembre-se que tem por única missão assistir ao nascimento de uma criança.
Maria fez um sinal afirmativo com a cabeça e, vendo à sua frente umas escadas, indagou:
– Desço por aqui?
– Não precisa de descer. A própria escada a levará.
Sorrindo acrescentou:
– Não se assuste com o que vir. Faça de conta que está sonhando.
Surpreendida, Ti Maria murmurou quase:
– E estarei eu mesmo sonhando?...
Ali, desaparecera a voz do vento e a impiedade da chuva. Lá em baixo, ela via salões fantásticos de luxo e riquezas. Homens de turbantes na cabeça passavam como se ela não existisse. Mulheres vestidas com mantos e véus.
Maria parara no meio do salão, como que deslumbrada. O desconhecido tocou-lhe num ombro.
– Vamos?
Maria deixou-se encaminhar. Vivia um conto d'As Mil e Uma Noites! E lembrava-se das histórias de fadas e mouras encantadas que a avó lhe contara à lareira. Tudo ali era irreal! Tudo parecia um sonho!

Li anteriormente:
Lendas de Portugal, vol. 2 (1963)
Lendas de Portugal, vol. 1 (1962)

7 de outubro de 2014

O Adeus às Armas

Ernest Hemingway
O Adeus às Armas (1929)

De Hemingway li um punhado de livros há já muitos anos, quase todos eles publicados depois de 1950; a excepção era O Adeus às Armas. Pretendendo agora ler algumas das obras pertencentes à sua primeira fase, decidi reler este livro, cujo argumento tinha praticamente esquecido.
O Adeus às Armas, largamente autobiográfico, narra a história de Frederic Henry, um norte-americano alistado no exército italiano durante a Grande Guerra, com a missão de condutor de ambulâncias, e o seu encontro com uma enfermeira inglesa, Catherine Barkley, com quem viverá uma grande paixão. Ferido num bombardeamento na frente de combate, o período de convalescença e o regresso à frente, decorridos muitos meses, trazem a Henry uma mudança de perspectiva e um sentimento anti-militarista à medida que se vai confrontando com o imobilismo, a perpetuação e a aparente inutilidade dos combates. Durante a confusão de uma retirada, a polícia do exército confunde-o com um espião, devido à sua nacionalidade estrangeira, e, na iminência de ser fuzilado, Henry foge, para se reunir a Catherine, e abandonar de uma vez o exército...

– Sou patriota – disse Gino –, mas não posso gostar de Brindisi nem de Tarento.
– Você gosta do Bainsizza? – perguntei.
– O solo é sagrado – disse ele –, mas preferia que desse mais batatas. Sabe, quando cá chegámos achámos batatais plantados pelos Austríacos.
– Tem havido realmente falta de abastecimentos?
– Eu próprio nunca tive o suficiente para comer, mas como muito, e não cheguei a passar fome. A messe é razoável. Nas trincheiras, as tropas são bem alimentadas, mas as de reforço nem tanto. Há algures qualquer coisa que não funciona bem. Devia haver víveres mais que suficientes.
– Os especuladores vendem-nos por outro lado.
– Sim, dão aos batalhões que estão nas trincheiras o mais que podem, mas os da retaguarda ficam prejudicados. Comeram todas as batatas dos Austríacos e as castanhas dos bosques. Era preciso que os alimentassem melhor. Somos grandes comilões. Tenho a certeza de que há comida em abundância. É muito mau para os soldados não comerem o suficiente. Já reparou alguma vez como isso influencia a maneira de eles pensarem?
– Reparei – disse eu. – Não é coisa que faça ganhar uma guerra, mas pode fazê-la perder.
– Não falemos em perder a guerra. Já se fala de mais nisso. O que se fez este Verão não pode ter sido em vão.
Eu não disse nada. As palavras "sagrado", "glorioso" e "sacrifício" e a expressão "em vão" deixavam-me sempre embaraçado. Tínhamo-lo ouvido, muitas vezes, de pé, à chuva, quase fora do alcance do ouvido, de forma que só nos chegavam as palavras gritadas, e tínhamo-las lido em proclamações que eram coladas sobre outras proclamações vezes sem conta, e eu não tinha visto nada sagrado, e as coisas que eram gloriosas não tinham glória e os sacrifícios eram como os matadouros de Chicago, com a diferença de que a carne servia só para ser enterrada. Havia muitas palavras que não se podiam suportar, e por fim só os nomes dos lugares conservavam ainda dignidade. Com certos números acontecia o mesmo, e também com certas datas, e estas, assim como os nomes dos lugares, eram tudo quanto significava ainda alguma coisa. Palavras abstractas como "glória", "honra", "coragem" ou "santidade" tornavam-se obscenas comparadas aos nomes concretos das aldeias, aos números das estradas, aos nomes dos rios, aos números dos regimentos e às datas. Gino era um patriota, e por isso dizia coisas que às vezes nos separavam, mas era ao mesmo tempo um excelente moço, e eu compreendia que ele fosse patriota. Tinha nascido assim. Regressou no carro a Gorizia, juntamente com Peduzzi.

Li anteriormente:
Ilhas na Corrente (1970)
Na Outra Margem entre as Árvores (1950)
O Jardim do Éden (1986)

30 de setembro de 2014

Amor sem Limites

Robert A. Heinlein
Amor sem Limites (1973)

Publicada em Portugal em 1977 na Colecção Argonauta sob o enganador título A História do Futuro, dividida em três volumes, esta é, de longe, a obra que mais anos esperei para ler. Comprei em 1980 ou 81 os volumes 2 e 3, e vim a descobrir que o volume 1 estava completamente esgotado; durante anos continuei a ver os dois últimos volumes nos escaparates, mas a Livros do Brasil nunca se dignou reeditar o primeiro. Consegui por fim encontrá-la, numa versão diferente.
Amor sem Limites é a tradução brasileira de Time Enough for Love, e um dos títulos centrais da série Future History. Passada no futuro distante do ano 4272, reencontramos aqui a personagem de Lazarus Long, então o mais velho ser humano vivo, com 2360 anos! A humanidade tornou-se praticamente imortal, através de uma técnica de rejuvenescimento periódico, e a morte só acontece por acidente ou por suicídio. Lazarus Long, cansado da vida, decidiu não rejuvenescer e desapareceu na cidade de Nova Roma, em Secundus, para morrer tranquilamente. Foi porém resgatado in extremis a mando de Ira Weatheral, um seu descendente, e levado para uma clínica para lhe ser aplicado o rejuvenescimento. Ira Weatheral está interessado em registar a experiência e o conhecimento do Sénior, e convence-o a fazer com ele um trato semelhante ao de Xerazade, das Mil e uma Noites: Lazarus Long não se suicidará enquanto ele estiver disposto a escutar as suas histórias.
Amor sem Limites é assim dividido em várias partes, intituladas segundo uma nomenclatura própria de uma obra musical, onde o presente narrativo se intercala com as memórias de Lazarus Long. Determinadas partes, retiradas do texto principal, quase poderiam funcionar como contos ou novelas independentes. Temos assim a divertida "História do Homem que era Preguiçoso demais para Fracassar" (de onde retirei o excerto abaixo), "A História dos Gémeos que não eram Gémeos" sobre um caso de manipulação genética — um tema recorrente ao longo de todo o livro —, ou "A História da Filha Adoptiva", sobre a colonização e a vida rústica num planeta recém-descoberto. No quarto final desta extensa obra, Lazarus Long faz uma viagem no tempo e regressa à sua Kansas City natal, na época em que os Estados Unidos entram na Grande Guerra, e trava conhecimento com a família onde nasceu — e consigo próprio, como um rapazinho de cinco anos.

Depois a guerra acabou.
Dave olhou em volta e avaliou a situação. Havia centenas de capitães-de-mar-e-guerra que, como ele, tinham sido capitães-de-corveta apenas três anos antes. Já que a paz era "para sempre", como os políticos sempre insistem, poucos seriam algum dia promovidos. Dave pôde ver que não seria promovido; não tinha nem a antigüidade, padrão tradicionalmente aprovado nas forças armadas, nem as ligações apropriadas, políticas e sociais.
O que ele tinha eram quase vinte anos de serviço, o mínimo para se reformar a meio soldo. Ou podia permanecer até ser forçado a se reformar por não ser escolhido para almirante.
Não havia necessidade de decidir imediatamente; a reforma aos vinte anos era para daí a um ou dois anos.
Mas ele se reformou quase imediatamente, por motivos de saúde. O diagnóstico foi "psicose situacional", o que significava que ele ficava doido quando trabalhava.
Ira, não sei como avaliar isto. Dave me impressionou como um dos poucos homens completamente sãos que já conheci. Mas eu não estava lá quando ele se reformou, e a "psicose situacional" era a segunda causa mais comum para reforma por motivos de saúde dos oficiais de marinha naquele tempo; mas como podiam eles saber? Ficar maluco não era nenhum empecilho para um oficial de marinha, não mais do que o era para um escritor, um professor, um pregador ou várias outras ocupações respeitáveis. Desde que David chegasse na hora e assinasse a documentação que algum escriturário preparava, e nunca desse respostas malcriadas aos seus superiores, isso nunca seria notado. Lembro-me de um oficial da marinha que tinha uma coleção espantosa de ligas de senhoras; ele costumava trancar-se em sua sala e examiná-las; e de outro que fazia exatamente a mesma coisa com uma coleção de rótulos de papel usados para franquia postal. Qual deles era maluco? Ambos? Ou nenhum dos dois?
Outro aspecto da reforma de Dave exige conhecimento das leis da época. Reformar-se com vinte anos de serviço resultava em meio soldo, sujeito ao imposto de renda, que era pesado. Reformar-se por incapacidade física resultava em três quartos de soldo, ficando-se isento do imposto de renda.
Não sei, simplesmente não sei. Mas toda a questão se enquadra no talento de Dave para obter resultados máximos com o mínimo de esforço. Vamos aceitar que ele estivesse maluco, mas estaria ele completamente maluco?

Li anteriormente:
The Moon Is A Harsh Mistress (1966)
Stranger in a Strange Land (1961)
O Homem que Vendeu a Lua (1951)

30 de agosto de 2014

O Lobo da Estepe


Hermann Hesse
O Lobo da Estepe (1927)

O Lobo da Estepe (Der Steppenwolf) é um romance com uma estrutura peculiar: inicia-se por um Prefácio redigido pelo sobrinho da senhoria de Harry Heller, o protagonista, onde narra as circunstâncias em que o conheceu e como lhe chagaram à mão os seus apontamentos. O resto do livro são os apontamentos de Harry Heller, onde se inclui ainda o "Tratado do Lobo da Estepe", um breve ensaio sobre questões espirituais, que lhe foi oferecido e é transcrito na íntegra.
Harry Heller descreve-se como um lobo da estepe, um cinquentão oriundo da burguesia, que simultaneamente almeja e despreza, transformado em ser intelectualizado que acaba à margem da sociedade, tão incapaz de se integrar quanto falho da vontade para o fazer. Do seu encontro com Hermínia, uma jovem mundana que o arrasta para os salões de baile, lhe dá a conhecer os seus amigos e lhe propõe um estranho pacto de morte, aprende uma nova forma de estar e sentir.
Passado nos Loucos Anos da década de 20, com a música de jazz por fundo e onde se fala da inevitabilidade da próxima guerra, O Lobo da Estepe é um livro tão mais interessante quanto se vai afastando da realidade objectiva, rumo a um surrealismo espesso, onde se representam os medos e as angústias da sua época.

Ah, é difícil achar esse trilho de Deus em meio à vida que levamos, na embrutecida monotonia de uma era de cegueira espiritual, com sua arquitetura, seus negócios, sua política e seus homens! Como não haveria de ser eu um Lobo da Estepe e um mísero eremita em meio de um mundo de cujos objetivos não compartilho, cuja alegria não me diz respeito! Não consigo permanecer por muito tempo num teatro ou num cinema. Mal posso ler um jornal, raramente leio um livro moderno. Não sei que prazeres e alegrias levam as pessoas a trens e hotéis superlotados, aos cafés abarrotados, com sua música sufocante e vulgar, aos bares e espetáculos de variedades, às Feiras Mundiais, aos Corsos. Não entendo nem compartilho essas alegrias, embora estejam ao meu alcance, pelas quais milhares de outros tanto anseiam. Por outro lado, o que se passa comigo nos meus raros momentos de júbilo, aquilo que para mim é felicidade e vida e êxtase e exaltação, procura-o o mundo em geral nas obras de ficção; na vida parece-lhe absurdo. E, de fato, se o mundo tem razão, se essa música dos cafés, essas diversões em massa e esses tipos americanizados que se satisfazem com tão pouco têm razão, então estou errado, estou louco. Sou, na verdade, o Lobo da Estepe, como me digo tantas vezes — aquele animal extraviado que não encontra abrigo nem alegria nem alimento num mundo que lhe é estranho e incompreensível.

25 de agosto de 2014

Lendas de Portugal, vol. 2


Gentil Marques
Lendas de Portugal, vol. 2 (1963)

Segundo volume desta recolha de lendas populares, dedicado este às Lendas Heróicas. O excerto citado pertence à Lenda das Chaves do Castelo de Coimbra. Esta lenda passa-se após o termo do reinado de D. Sancho II, na sequência da guerra civil de 1245-47, que o opôs ao seu irmão e sucessor D. Afonso III. D. Sancho II, após tentativa de reforço da centralização monárquica do poder, foi vítima de uma conspiração destinada a depô-lo que contou com a cumplicidade do clero e do papado, que o excomungou e ostracizou. O rei deposto morreu no ano seguinte no seu exílio de Toledo, que serve de cenário a esta cena final.

Vendo-o, D. Gil Martins ergueu-se.
– Grande honra tenho em receber-vos!
Martim de Freitas pareceu não ligar ao cumprimento e perguntou em tom grave:
– El-rei D. Sancho II é morto?
Baixando a cabeça, o fidalgo confirmou.
– Sim... é morto. Que Deus tenha a sua alma em descanso!
– Vistes o seu corpo sem vida?
– Deus reservou-me mais esse desgosto!
– Pois quero eu vê-lo também.
D. Gil Martins elevou a estatura num gesto de surpresa.
– Que dizeis, D. Martim de Freitas?
Solene, o visitante confirmou:
– O que acabais de ouvir, senhor. Quero vê-lo e desempenhar-me da minha última missão.
– É assim tão urgente e... necessário?
– Sim. Trago comigo as chaves do castelo de Coimbra. Preciso que el-rei me desobrigue do meu juramento antes que o rei Afonso tome conta delas.
De olhos abertos num espanto, D. Gil Martins olhava o visitante, perguntando a si próprio se o prolongado cerco a que D. Martim de Freitas se sujeitara não dera cabo do seu entendimento. Mas logo o fidalgo, que parecia ter adivinhado as conjecturas do seu interlocutor, pôs ponto final nessas mudas interrogações.
– Senhor, creio que fui bem explícito. O que peço é justo e não pode ser-me negado!
Lá fora, a chuva miúda, impertinente, punha lama nos caminhos. E a tarde morria, com a pressa de quem não tem nem deixa saudades.
O dia que nasceu depois daquele em que Martim de Freitas chegara a Toledo não era menos triste. A chuva deixara por momentos de cair mas o vento viera substituí-la. Um vento gritante, que punha arrepios nas almas inquietas.
No cemitério, um pequeno grupo olhava com ar de assombro, e por vezes entre as lágrimas, a figura altiva de D. Martim de Freitas, agora ajoelhado junto da sepultura do que fora seu rei e rei de Portugal. O corpo estava exposto. O fidalgo português curvou-se e, entre as mãos cruzadas sobre o peito do defunto, depôs as chaves do castelo de Coimbra. Beijou-lhe as pontas dos dedos. Depois ergueu-se e falou:
– Meu rei e senhor! Enquanto vivestes, sofri pela vossa causa as maiores privações, dissimulando sempre, para dar conforto e ânimo aos meus companheiros. E assim eles continuaram no castelo que é vosso e continuaram honradamente aguentando por vós. Cumpri o meu juramento de lealdade, Senhor! Porém, agora que sois morto e não posso já entregar-vos a cidade, quero ao menos fazer-vos a entrega destas chaves para que, desobrigando-me vós, eu possa apresentá-las a vosso irmão, o conde D. Afonso, como renúncia vossa e não como triunfo de suas armas!...
Fez-se um pesado silêncio após estas palavras, cadenciadas, solenes. Havia emoção em todos os rostos desses homens habituados às agruras da guerra. Depois, silenciosamente ainda, as chaves do castelo de Coimbra foram retiradas das mãos do rei morto e a sua sepultura fechada para sempre.
Assim ficava encerrado, também, um feito de lealdade que jamais as chuvas, o vento, o pó ou a lama dos caminhos poderão destruir, apesar do esforço do tempo!

Li anteriormente:
Lendas de Portugal, vol. 1 (1962)

23 de agosto de 2014

The Moon Is A Harsh Mistress

Robert A. Heinlein
The Moon Is A Harsh Mistress (1966)

Traduzido em português com o título Revolta na Lua (porquê mudar para um título tão árido quando o original é tão evocativo?), este livro do ciclo Future History, ao qual me tenho dedicado recentemente, trata da sublevação que levou à independência de Luna, até então uma simples colónia das Nações Federadas da Terra.
Partindo do pressuposto de um computador tão expandido e melhorado nas suas capacidades que, um dia, se torna auto-consciente, com a sua capacidade de análise e previsão alerta para um futuro negro que ameaça a colónia lunar a curto prazo, a menos que toda a sua gestão seja radicalmente modificada. É essa luta, desde a constituição de uma rede clandestina e adopção de tácticas subversivas, passando pela revolução e guerra da independência, até ao reconhecimento da soberania, que constitui a narrativa desta obra, vencedora do Prémio Hugo em 1967.
O referido pressuposto continua um tema actual; muitos se têm questionado se o contínuo acréscimo de computadores à rede, onde cada um deles equivale a um neurónio, eventualmente poderá levar à auto-consciência da própria internet...

One man demanded to know why, since we paid no taxes, we colonists thought we had a right to run things our own way? After all, those colonies had been established by Federated Nations—by some of them. It had been terribly expensive. Earth had paid all bills—and now you colonists enjoy benefits and pay not one dime of taxes. Was that fair?
I wanted to tell him to blow it. But Prof had again made me take a tranquilizer and had required me to swot that endless list of answers to trick questions. "Lets take that one at a time," I said. "First, what is it you want us to pay taxes for? Tell me what I get and perhaps I'll buy it. No, put it this way. Do you pay taxes?"
"Certainly I do! And so should you."
"And what do you get for your taxes?"
"Huh? Taxes pay for government."
I said, "Excuse me, I'm ignorant. I've lived my whole life in Luna, I don't know much about your government. Can you feed it to me in small pieces? What do you get for your money?"
They all got interested and anything this aggressive little choom missed, others supplied. I kept a list. When they stopped, I read it back: "Free hospitals—aren't any in Luna. Medical insurance—we have that but apparently not what you mean by it. If a person wants insurance, he goes to a bookie and works b-Out a bet. You can hedge anything, for a price. I don't hedge my health, I'm healthy. Or was till I came here. We have a public library, one Carnegie Foundation started with a few book films. It gets along by charging fees. Public roads. I suppose that would be our tubes. But they are no more free than air is free. Sorry, you have free air here, don't you? I mean our tubes were built by companies who put up money and are downright nasty about expecting it back and then some. Public schools. There are schools in all warrens and I never heard of them turning away pupils, so I guess they are 'public.' But they pay well, too, because anyone in Luna who knows something useful and is willing to teach it charges all the traffic will bear."
I went on: "Let's see what else—Social security. I'm not sure what that is but whatever it is, we don't have it. Pensions. You can buy a pension. Most people don't; most families are large and old people, say a hundred and up, either fiddle along at something they like, or sit and watch video. Or sleep. They sleep a lot, after say a hundred and twenty."
[...] I looked at list. "I'll lump the rest of this together by saying we don't have any of it in Luna, so I can't see any reason to pay taxes for it. On that other point, sir, surely you know that the initial cost of the colonies has long since been repaid several times over through grain shipments alone? We are being bled white of our most essential resources... and not even being paid an open-market price. That's why the Lunar Authority is being stubborn; they intend to go on bleeding us. The idea that Luna has been an expense to Terra and the investment must be recovered is a lie invented by the Authority to excuse their treating us as slaves. The truth is that Luna has not cost Terra one dime this century—and the original investment has long since been paid back."

Li anteriormente:
Stranger in a Strange Land (1961)
O Homem que Vendeu a Lua (1951)
Revolta em 2100 (1953)

7 de agosto de 2014

Aparição

Vergílio Ferreira
Aparição (1959)

Narrado na primeira pessoa por Alberto Soares, um professor colocado em Évora - provavelmente um alter-ego do autor, também ele professor -, Aparição é uma ruminação existencialista sobre as suas dúvidas pessoais. Como comenta uma outra personagem, quando o narrador compra uma casa isolada - esse é o sítio ideal para ele: "Está isolado, pode meditar em sossego sobre o espantoso milagre de estar vivo e o incrível absurdo da morte."

Saí enfim para a noite, Chico saiu comigo. E, enquanto subíamos a rua, falou-me de si, falou-me de Évora. Estava ali há cinco anos, era engenheiro, trabalhava na Direcção dos Monumentos. Évora era uma cidade absurda, reaccionária, empanturrada de ignorância e de soberba. Em Évora – tinham-lhe dito um dia – não se podia ter mais do que a quarta classe nem menos que 300 porcos.
– Qualquer iniciativa cultural é logo abafada de desprezo e de banha.
O peso da Idade Média enegrecia ainda as almas, e os mouros também. Ter meia dúzia de amantes era para aqueles sultões um sinal de abundância. E havia damas que durante anos não saíam à rua, ou saíam apenas pela Semana Santa. Muitas casas tinham jardins. Pois visse eu se os descobria. Cercavam-nos de muros altos como a toda a sua vida. Criar relações em Évora era um milagre. Tudo ali tinha muralhas: a sociabilidade, os jardins e, enfim, a própria cidade. Mas de vez em quando aquela gente ia a Lisboa. E então era vê-la desabafar: casinos, teatros, ceias. Depois recolhiam ao mosteiro. Havia damas que nunca se viam na rua. Vira-as ele, Chico, fumando e bebendo no Estoril. Évora era a Quaresma e Lisboa o Carnaval. Ora bem, ele, Chico, e alguns amigos não desistiam de importunar a embófia gorda daqueles senhores. Falhara em tempos o Círculo de Cultura Musical. Falhara o Cinema Clássico. Mas iam atacar outra vez. Agora, com uma série de conferências na Harmonia. Poderia eu colaborar?
Vagueámos pela cidade morta, de arcadas desertas.
Disse enfim ao caloroso homem:
– Ignoro tudo de Évora. Mas sinto que você exagera. Por ora sei apenas que é uma cidade fantástica. E quanto às conferências, decerto estou pronto a colaborar.

Li anteriormente:
Manhã Submersa (1954)

4 de agosto de 2014

Lendas de Portugal, vol. 1

Gentil Marques
Lendas de Portugal, vol. 1 (1962)

O primeiro de cinco volumes de recolha de lendas populares portuguesas, recontadas por Gentil Marques numa linguagem simples e acessível. O primeiro tomo é dedicado às Lendas dos Nomes das Terras. O excerto que se segue pertence à Lenda do Bom Jardim dos Coelhos, relativa ao solar de Sergude, em Felgueiras.

Estremeceu. Um suspiro fundo fê-lo voltar a cabeça. Parecia ter ouvido soluçar baixinho. Talvez fosse o ruído das árvores, receosas da noite invernal que não tardaria. Andou uns passos mais e entrou na clareira florida que ficava ao cimo da álea dos lilases. E o seu coração quase parou. Uma dama envolta num véu espesso e cinzento parecia chorar, encostada a uma frondosa árvore. Gonçalo aproximou-se mais. Ela parecia não dar pela presença do jovem. Ele falou-lhe num tom de delicada surpresa:
– Senhora! Em que pode servir-vos o meu braço?
A dama levantou a cabeça. Sem pressas. Altivamente. E logo a baixou de novo, num gesto súbito. Gonçalo não pôde ver-lhe a expressão do rosto com nitidez. Mas a sua voz, estranhamente em surdina, chegou aos seus ouvidos:
– Deixai-me só, jovem fidalgo! Preciso descansar.
Ele porém insistiu, levado pela surpresa de ver no seu solar uma dama desconhecida:
– Perdoai, mas... gostaria de saber como chegastes até aqui.
– Andando... como vós!...
– Sois visita da nossa casa?
– Conheço-vos há muito!
– E poderei saber quem sois?
A dama do véu cinzento silenciou um breve instante, mas respondeu por fim:
– Dir-vos-ei apenas que alguém do vosso sangue muito mal me causou!
Gonçalo Coelho mostrou-se ainda mais surpreendido:
– Alguém do meu sangue? E quem?
A dama não respondeu. Ao longe soou uma gargalhada fresca. Ruído de vozes denunciavam a presença distante de um grupo turbulento.
Como que numa desculpa, o jovem fidalgo olhou o local donde partira a gargalhada e disse apenas:
– Brincam e riem sem preocupações...
Voltou a dama a falar, sentenciosamente:
– A jovem que ora ri, talvez chore dentro de pouco tempo!
Gonçalo elucidou:
– A jovem a quem vos referis, senhora, é minha prima-irmã, D. Leonor de Alvim.
Houve um ligeiro assentimento de cabeça da parte da dama velada:
– Eu sei. E com ela passar-se-á algo de misterioso... depois de casar...
– Sabeis então que Leonor vai casar com Vasco Gonçalves Barroso?
– Sim... mas enviuvará ainda donzela.
A surpresa subiu ao auge na expressão de Gonçalo Coelho.
– Que dizeis? Não pertence ao passado nem ao presente tal acontecimento!
A dama pareceu sorrir.
– Mas pertence a um futuro muito próximo.
– Como o sabeis?
– É fácil para quem vê o mundo como eu o vejo... mesmo através deste meu véu espesso...
Então Gonçalo, num impulso instintivo, avançou até junto da dama desconhecida. Mas não lhe tocou. Pediu apenas:
– Senhora! Dizei-me quem sois e porque estais aqui!
Ela não respondeu. Ergueu o busto e pareceu absorta na contemplação da paisagem. A aragem corria fresca, fazendo bater a ramagem das árvores. Gonçalo tentou quebrar o mutismo em que a sua interlocutora parecia querer refugiar-se.
– Decerto não ignorais que estais no solar da família de Pêro Coelho...
A dama fez com a cabeça um sinal afirmativo e declarou:
– Venho aqui todos os anos neste dia.
Depois houve uma pausa. E logo uma pergunta lenta:
– Sabeis que dia é hoje?
– Se o sei! Sete de Janeiro...
A desconhecida interrompeu com um gesto a palavra de Gonçalo.
– Não vale a pena ficardes preso a dolorosas recordações. Calai então o dia de hoje. Ide folgar com vossos irmãos e primas, senhor fidalgo! Ide, Gonçalo Pires Coelho, e deixai-me só!
Gonçalo inclinou-se com galhardia.
– Senhora! De modo algum devo esquecer que estais no solar dos Coelhos. Melhor direi, como dizia o senhor meu pai, no «Bom Jardim dos Coelhos»...
– Calai-vos, por favor... Hoje é um mau jardim... Será sempre um mau jardim, no dia de hoje!
A voz dele revestiu-se de espanto sincero.
– Não vos compreendo, senhora! Pretendo apenas receber-vos como mandam as regras da fidalguia.
A misteriosa dama voltou a suspirar. Pareceu de novo interessada pela paisagem. Mas, voltando-se de repente para o jovem Gonçalo, pediu com voz ansiosa:
– Se querei, de facto, fazer-me grande mercê, deixai-me só até ao fim deste dia. Não consenti que mais alguém venha perturbar o meu repouso. Fazei cientes disto a todos desta casa: uma vez em cada ano, durante as horas do sol-posto, virei aqui. E peço-vos por tudo: que ninguém ouse perturbar esta minha visita. Ninguém... sob pena de grandes desgraças! Sob pena mesmo do vosso solar deixar de ser um Bom Jardim e transformar-se, para sempre, num Mau Jardim...
Gonçalo olhou com assombro a dama velada.
– Que estranhas as vossas palavras, senhora! Poderei, ao menos, saber quem sois?
Numa voz repassada de sofrimento, a dama desconhecida declarou:
– Pois já que o desejais saber, senhor fidalgo... chamo-me Inês!
Um arrepio forte percorreu o corpo de Gonçalo Pires Coelho. Olhou melhor a singular figura, como a querer descobri-la através dos seus véus espessos, e pareceu-lhe encontrar traços de um rosto que vira em alguns retratos.
Inês! – pensava ele, na turbulenta confusão do seu espírito... – Seria possível? Estaria em presença de uma alma penada? Para ele, seu pai nunca fora um assassino e sim um fervoroso adorador da sua pátria, que supusera em perigo. Seu pai era recto e bom para com os outros! Se tinha insistido na morte de Inês de Castro, fora apenas para salvar dos Castelhanos o seu querido Portugal, por quem tantos heróis se tinham batido. Mas Inês, decerto, não pensaria assim. E seria mesmo Inês? Apavorado, Gonçalo Coelho fez uma longa vénia e retrocedeu sem mais olhar para trás, deixando a dama sozinha...

2 de agosto de 2014

Stranger In A Strange Land



Robert A. Heinlein
Stranger In A Strange Land (1961)

Stranger In A Strange Land (Um Estranho Numa Terra Estranha) foi várias vezes traduzido em português: pelo menos três vezes no Brasil e duas em Portugal (em 1975 na Colecção Argonauta da Livros do Brasil, e em 1981 pela Europa-América). Estas traduções seguem a versão publicada em 1961, mas, após a morte de Heinlein, foi recuperado o manuscrito original, bastante mais extenso, e que tinha sido reduzido, a pedido do editor de 220 mil para 160 mil palavras. A partir de 1991 foram publicadas as versões integrais desse texto, patrocinadas por Virginia Heinlein, viúva do escritor. Perante isto fiz questão de ler o original inglês, apesar de me obrigar a um esforço extra, mesmo sabendo que, na opinião dos críticos, o trabalho de edição (feito pelo próprio autor, recorde-se) não deixara de fora nada de importante, susceptível de abalar ou desvirtuar a estrutura da obra.
Stranger In A Strange Land, vencedor do Prémio Hugo em 1962, é a obra mais conceituada de Heinlein, uma das referências principais do universo FC, e, pelos finais dessa década tornar-se-ia numa das bíblias do movimento hippy pelas suas ideias iconoclastas, pela oposição aos poderes instituídos, pela apologia do amor livre e em grupo, bem como pela veiculação de um tipo de misticismo que então calava fundo.
Livro polémico desde a primeira edição, Stranger In A Strange Land, conta a história de Michael Smith, um humano nascido e criado em Marte, isolado de outros seres humanos mas em contacto com uma civilização avançada, e das suas dificuldades de integração uma vez trazido de regresso à Terra. Através de Jubal Harshaw, escritor e advogado - e a personagem mais elaborada e aprofundada do livro - somos levados por diálogos e digressões acerca de política, sociologia, arte e, sobretudo, religião. Um livro enorme... não apenas pela sua extensão.

"[...] three pieces of sculpture in an hour is more than enough— usually I don't let myself look at more than one in a day."
"Suits. I feel as if I had had three quick drinks on an empty stomach. Jubal, why isn't there stuff like this around where a person can see it?"
"Because the world has gone nutty and contemporary art always paints the spirit of its times. Rodin did his major work in the tail end of the nineteenth century and Hans Christian Andersen antedated him by only a few years. Rodin died early in the twentieth century, about the time the world started flipping its lid... and art along with it.
"Rodin's successors noted the amazing things he had done with light and shadow and mass and composition—whether you see it or not—and they copied that much. Oh, how they copied it! And extended it. What they failed to see was that every major work of the master told a story and laid bare the human heart. Instead, they got involved with 'design' and became contemptuous of any painting or sculpture that told a story—sneering, they dubbed such work 'literary'—a dirty word. They went all out for abstractions, not deigning to paint or carve anything that resembled the human world."
Jubal shrugged. "Abstract design is all right—for wall paper or linoleum. But art is the process of evoking pity and terror, which is not abstract at all but very human. What the self-styled modern artists are doing is a sort of unemotional pseudo-intellectual masturbation... whereas creative art is more like intercourse, in which the artist must seduce—render emotional—his audience, each time. These laddies who won't deign to do that—and perhaps can't—of course lost the public. If they hadn't lobbied for endless subsidies, they would have starved or been forced to go to work long ago. Because the ordinary bloke will not voluntarily pay for 'art' that leaves him unmoved—if he does pay for it, the money has to be conned out of him, by taxes or such."

Li anteriormente:
O Homem que Vendeu a Lua (1951)
Revolta em 2100 (1953)
Os Filhos de Matusalém (1958)

1 de xullo de 2014

A Insustentável Leveza do Ser

Milan Kundera
A Insustentável Leveza do Ser (1984)

A condição de exilado político de Milan Kundera, a Primavera de Praga, e as reflexões sobre a situação da sua Checoslováquia natal para lá da Cortina de Ferro, são temas comuns aos três livros que dele li, tal como a particularidade de todos seguirem uma estrutura de divisão em sete partes. Em A Insustentável Leveza do Ser, originalmente editado em França sob o título L'Insoutenable Légèreté de l'Être, entrecruzam-se as histórias de Tomas, Tereza, Franz e Sabina (os nomes simples das personagens principais, outros há que não têm nome, ou são referidos por uma inicial) entremeadas de política, filosofia e sexo, em percursos espirais que integram factos já referidos noutro lado, tecendo assim uma narrativa em avanços e recuos, que ganha consistência à medida que se desenrola.
Este tipo de argumento (s)existencialista, já me agradou mais do que actualmente, o que não significa que não tenha lido esta obra com prazer. Do livro retenho sobretudo a sua Sexta Parte, nomeadamente nos primeiros pontos sobre as implicações teológicas e filosóficas da merda, e logo depois com uma explanação do kitsch como ideal estético; impagável!

Os crimes do Império Russo foram sempre perpetrados ao abrigo de uma discreta penumbra. Tanto da deportação de meio milhão de lituanos e da morte de centenas de milhares de polacos, como da liquidação dos tártaros da Crimeia não restaram provas fotográficas nenhumas, ficando tais acontecimentos gravados apenas na memória como algo de indemonstrável que, mais cedo ou mais tarde, se faria passar como uma mistificação. A invasão da Checoslováquia em 1968 foi, pelo contrário, fotografada, filmada e arrumada nos arquivos do mundo inteiro.
Os fotógrafos e operadores de câmara checos souberam aproveitar a oportunidade que se lhes oferecia de fazer a única coisa que ainda podia ser feita: preservar para o futuro longínquo a imagem da violação. Tereza passou esses sete dias na rua a fotografar soldados e oficiais russos nas mais diversas situações, todas comprometedoras. Os russos foram apanhados desprevenidos. Tinham recebido instruções precisas quanto à atitude a adoptar no caso de serem atacados com armas ou com pedras, mas ninguém lhes indicara como reagir perante a objectiva de uma máquina fotográfica.
Gastou centenas de negativos a tirar fotografias. Deu mais ou menos metade dos rolos a jornalistas estrangeiros (as fronteiras continuavam abertas, os jornalistas estrangeiros estavam sempre a chegar, pelo menos para uma curta estada quase só de ida e volta, e aceitavam reconhecidamente o menor documento). Muitas das fotografias de Tereza apareceram no estrangeiro, nos mais variados jornais: eram fotografias de tanques, de punhos ameaçadores, de prédios destruídos, de mortos cobertos com bandeiras tricolores, de jovens a andar de moto a toda a velocidade à volta dos carros de assalto, agitando grandes paus com bandeiras checas na ponta, e de rapariguinhas muito novas com mini-saias incrivelmente curtas que provocavam os infelizes soldados russos sexualmente esfaimados, beijando, sob os seus narizes, o primeiro desconhecido que passasse. A invasão russa, voltamos a insistir, não foi apenas uma tragédia; foi também uma festa do ódio cuja estranha euforia nunca ninguém poderá compreender.

Li anteriormente:
A Brincadeira (1967)
O Livro do Riso e do Esquecimento (1979)

25 de xuño de 2014

Um Gosto e Seis Vinténs


W. Somerset Maugham
Um Gosto e Seis Vinténs (1919)

O narrador, um jovem com pretensões a escritor que se move em círculos artístico-literários, dá-nos a conhecer a história de Charles Strickland, um corretor londrino já entrado nos quarentas que, inopinadamente, decide abandonar a mulher e os filhos adolescentes para se mudar para Paris, em busca da sua realização como pintor, apesar de nada fazer supor o seu interesse pela arte. O narrador segue no seu encalço, a pedido da Sra. Strickland, para o fazer mudar de ideias; do seu contacto com Strickland, que mal conhecera enquanto frequentara a sua casa de Londres, e das suas peripécias em Paris e, posteriormente, através das descrições de terceiros, da sua passagem por Marselha e, finalmente, pela sua vida no Taiti, constrói-se o argumento de Um Gosto e Seis Vinténs (The Moon and Sixpence). A descrição de Strickland e da sua pintura foi sem dúvida inspirada na personalidade de Paul Gaugin; mas, curiosamente, na relação de Dirk Stroeve e sua mulher Blanche - duas personagens secundárias que emolduram o episódio parisiense - voltamos a encontrar o tipo de ligação doentia e humilhante que serviu de tema a Servidão Humana.

– Stroeve – disse eu.
Ele teve um ligeiro sobressalto, e então sorriu, mas o sorriso era triste.
– Por que está andando dessa maneira? – perguntei jovialmente.
– Faz muito tempo que não vinha ao Louvre. Resolvi vir e dar uma olhada para ver se havia algo de novo.
– Mas você falou que devia terminar um quadro esta semana.
– Strickland está pintando no meu estúdio.
– E daí?
– Fui eu que sugeri isso. Ainda não está forte o suficiente para voltar para o lugar dele. Achei que nós dois podíamos pintar juntos. Tem vários artistas no Quartier que dividem o estúdio. Achei que seria divertido. Sempre achei que seria agradável ter alguém com quem conversar quando se está cansado de trabalhar.
Disse isso lentamente, destacando frase por frase com um silêncio estranho, e mantinha os olhos tolos fixos nos meus. Estavam cheios de lágrimas.
– Acho que não entendi – disse eu.
– Strickland não sabe trabalhar com mais ninguém no estúdio.
– Ora, porra, é o seu estúdio. Isso é problema dele.
Ele me olhou tristemente. Seus lábios tremiam.
– O que aconteceu? – perguntei asperamente.
Ele hesitou e ficou vermelho. Olhou, infeliz, para um dos quadros da parede.
– Não me deixou continuar a pintar. Mandou-me sair.
– Mas por que você não o mandou pró inferno?
– Ele me empurrou pra fora. Eu não podia lutar com ele. Jogou meu chapéu atrás de mim e fechou a porta.
Apesar de furioso com Strickland e indignado comigo mesmo, eu tinha vontade de rir, pois Dirk Stroeve estava uma figura muito ridícula.
– Mas o que disse sua mulher?
– Ela saiu para fazer compras.
– Ele vai deixá-la entrar?
– Não sei.
Olhei para Stroeve, perplexo. Ele estava parado à minha frente como um colegial repreendido pelo professor.
– Quer que eu bote Strickland pra fora pra você? – perguntei.
Ele deu um pulo, e seu rosto brilhante ficou muito vermelho.
– Não. É melhor você não fazer nada.
Bateu a cabeça e saiu dali. Estava claro que por alguma razão ele não queria discutir o assunto. Não entendi.

Li anteriormente:
Servidão Humana (1915)

19 de xuño de 2014

O Homem que Vendeu a Lua


Robert A. Heinlein
O Homem que Vendeu a Lua (1951)

Escrito em 1949 e publicado dois anos depois, The Man Who Sold the Moon, que faz também parte do ciclo Future History, passa-se nos anos setenta e narra a história de Delos D. Harriman, um rico e inovador homem de negócios que investe tudo quanto tem, arrastando consigo alguns sócios renitentes, no sonho de fazer a primeira viagem à Lua.
Espelho da sua época, este livro transpira a confiança inabalável dos estado-unidenses na superioridade da sua cultura, na inevitabilidade de um futuro moldado à sua vontade, na certeza absoluta de quem sabe que está do lado certo da História. A vontade ao serviço de uma ideia, neste livro, fez-me lembrar o Da Terra à Lua, de Jules Verne, que li há 35 anos. Mas, em vez da motivação técnica e científica novecentista que movia os associados do Gun Club, aqui a ideia é mesmo fazer dinheiro, muito dinheiro.
De resto é o mesmo afã na resolução dos problemas técnicos, o mesmo espírito de pioneirismo de alguém que pretende fazer História. Curiosamente, sendo este um livro de FC, a narrativa centra-se no antes e no depois: a viagem à Lua propriamente dita, e o seu regresso, dão-se num par de curtos parágrafos. O ponto de interesse são todos os imbróglios legais, direitos, concessões, contratos, fontes de financiamento, impasses, oportunidades, manipulações e golpadas, descritos num ritmo vertiginoso e arrebatador.

Kamens apareceu, mas apenas quando lhe pareceu conveniente. Uns minutos mais tarde, Harriman explicava-lhe a sua ideia de reclamar direitos sobre a Lua, antes de lá pôr os pés.
— Para além dessas empresas testa-de-ferro — prosseguiu —, precisamos de uma agência que possa receber contribuições sem ter de admitir ter qualquer interesse financeiro da parte do contribuidor. Uma coisa assim como a National Geographic Society.
Kamens abanou a cabeça.
— Não se pode comprar a National Geographic Society.
— Raios partam, mas quem disse que a íamos comprar? Montamos uma nossa.
— Era isso que eu ia dizer.
— Ainda bem. Da forma como vejo isto, precisamos de pelo menos uma empresa isenta de impostos, não-lucrativa, dirigida pelas pessoas certas; e nós manteremos o controlo dos votos, evidentemente. Provavelmente, precisaremos de mais do que uma; montá-las-emos à medida que formos precisando. E precisaremos de ter pelo menos uma empresa normal, não isenta de impostos... Mas que não mostrará lucros até estarmos prontos para isso. A ideia é deixar que a empresa não-lucrativa tenha todo o prestígio e toda a publicidade... enquanto a outra recebe todos os lucros, se e quando houver. Fazemos girar o património entre empresas, sempre por razões perfeitamente válidas, de forma a que as empresas não-lucrativas paguem as despesas enquanto avançamos. Agora que penso nisso, será melhor termos pelo menos duas empresas normais, para que possamos deixar uma delas ir à falência, se isso for necessário para sacudir a água do capote. Isto é o esboço em geral. Deita mãos à obra e trata de que seja tudo legal, se não te importas.
Kamens respondeu:
— Sabes, Delos... Seria tudo muito mais honesto se simplesmente o fizesses de caçadeira em punho.
— Um advogado a falar-me de honestidade! Deixa lá, Saul... Não vou mesmo ludibriar ninguém, na verdade...
— Hum...
— ...E vou apenas fazer uma viagem à Lua. Será isso que toda a gente irá pagar; e será isso que terão. Agora trata de tudo para que seja tudo legal, vá, sê um bom rapaz.
— Faz-me lembrar qualquer coisa que o advogado do Vanderbilt mais velho disse ao velhote em circunstâncias semelhantes: «Está tão bonito tal como está! Porquê estragar tudo tornando-o legal?». Mas tudo bem, irmão pirata, eu trato de armar a tua ratoeira. Mais alguma coisa?

Li anteriormente:
Revolta em 2100 (1953)
Os Filhos de Matusalém (1958)
O Dia Depois de Amanhã (1949)

16 de xuño de 2014

La Aventura del Tocador de Señoras


Eduardo Mendoza
La Aventura del Tocador de Señoras (2001)

La Aventura del Tocador de Señoras (A Aventura do Cabeleireiro de Senhoras) é a terceira novela protagonizada pelo detective anónimo, seguindo-se a O Mistério da Cripta Assombrada e O Labirinto das Azeitonas. Passada em meados dos anos 90 (e aproveitando, de passagem, para fazer uma crítica mordaz ao aparente desenvolvimento material de Barcelona), muitos anos depois das duas primeiras histórias, reencontramos o nosso herói no momento em que é expulso do manicómio, dado como curado às pressas, tal como todos os outros residentes, uma vez que o edifício vai ser demolido para dar lugar a um centro comercial e blocos para habitação. Depois de encontrar um emprego como cabeleireiro, inicia-se a sua nova aventura.
Ao longo da história reencontramos os velhos conhecidos doutor Sugrañes, Cándida e o comissário Flores, a quem o tempo proporcionou grandes mudanças, ao contrário do herói, a quem não notamos grandes alterações, reconhecendo-lhe alguns dos habituais tiques, e outras novas preferências. Com uma linha de pensamento inteligente, um discurso de pendor erudito, o herói faz-nos pensar muitas vezes onde se traçará a linha que divide a sanidade da insanidade. Como ele afirma em determinado ponto «Quem não teve, como eu, o privilégio de passar uma boa parte da sua vida num manicómio, talvez ignore esta grande verdade: todos os que ali estão encerrados apercebem-se claramente da loucura dos outros, mas nenhum da própria.»

Cañuto era un hombre de mediana edad, tirando a viejo. En los años 70 (de nuestra era) había robado varios bancos. No bancos de sentarse, sino oficinas bancarias. Operaba solo, con una media en la cabeza y la otra en el bolsillo (por si acaso), una pistola de juguete y una bomba de verdad. Él decía que era una bomba atómica. A tanto no llegaba, pero de todas formas le daban el dinero sin rechistar. Cuando el robo había sido perpetrado, Cañuto se quitaba la media, pronunciaba unas palabras adecuadas a la ocasión y se iba caminando por la acera. Lo curioso es que tardaron mucho en capturarlo. En su modesta vivienda encontraron la totalidad del dinero robado. No se había gastado ni una peseta y vivía de la caridad pública. Cuando finalmente lo llevaron a juicio, la galopante inflación de aquellos años convulsos había reducido el monto de sus fechorías a una cifra irrisoria. El abogado defensor de Cañuto mostró al tribunal una entrada de cine cuyo precio superaba lo que en tiempos de Cañuto había sido una fortuna. Lo habrían absuelto y puesto de nuevo en la calle si Cañuto no se hubiera empeñado en decir que sus atracos formaban parte de un plan mundial para sembrar el caos, y del cual él, Cañuto, era sólo la punta del iceberg, a la que, por otra parte, se empeñaba en llamar la punta del nabo. Por no saber qué pena imponerle, lo enviaron al manicomio, donde gozaba de justa fama de hombre metódico, riguroso, muy versado en cuestiones bursátiles, y donde yo lo conocí y traté.

Li anteriormente:
El Laberinto de las Aceitunas (1982)
El Misterio de la Cripta Embrujada (1979)
Tres Vidas de Santos (2009)

24 de maio de 2014

A Ilha



Aldous Huxley
A Ilha (1962)

Chegado à ilha de Pala após um naufrágio, Will Farnaby – um jornalista que "nunca aceita o sim como resposta" –, descobre aos poucos uma sociedade isolada que, graças à aliança visionária de um rajá budista nativo e de um expatriado escocês ali arribado um século antes, colocou em marcha uma experiência de engenharia social que frutificou de forma espectacular, "aproveitando o melhor dos dois mundos para criarem o melhor de todos os mundos." Como contraponto ao Admirável Mundo Novo, onde se mostrava um pesadelo distópico, ditatorial, de completa alienação, A Ilha é o seu oposto, a descrição minuciosa de uma quase paradisíaca utopia tropical, nas vésperas de submergir perante os poderosos interesses multinacionais que cobiçam o petróleo existente nas imediações.

— Manter as crianças vivas, tratar os doentes, evitar que os detritos invadam o fornecimento da água são coisas intrinsecamente boas, não há a menor dúvida! Mas aonde conduzem todas essas boas coisas? O resultado é o aumento do número das misérias humanas; é a civilização exposta ao perigo. E esta é a espécie de brincadeira cósmica com que Deus parece realmente se deleitar! — Will dirigiu aos jovens um de seus sorrisos ferozes e agressivos.
— Deus nada tem a ver com isto — retrucou Ranga — e a brincadeira não é cósmica; foi inteiramente elaborada pelo homem. Essas coisas não são como a lei da gravidade ou a segunda lei da termodinâmica. Elas não têm de acontecer. Somente ocorrem se as pessoas são bastante estúpidas para permitirem. Aqui em Pala não o permitimos e, por isso, não brincaram conosco. Há quase um século temos bom sistema sanitário e, apesar disso, não temos excesso de população, não temos miséria e não estamos sob uma ditadura. A razão de tudo isso é muito simples: escolhemos um modo de proceder que é sensato e realista.
— Como conseguiram escolher? — perguntou Will.
— As pessoas a quem cabia decidir foram inteligentes no momento oportuno — disse Ranga. — Mas temos de admitir que a sorte nos ajudou muito. De um modo geral, Pala tem tido uma sorte fora do comum. Em primeiro lugar, pelo fato de nunca ter sido uma colônia. Rendang possui uma baía magnífica. Isso lhes trouxe uma invasão árabe, na Idade Média. Como nós não temos uma baía, os árabes nos deixaram em paz. Continuamos budistas, xivaítas ou simples agnósticos de tantrik.
— Você é um agnóstico de tantrik? — perguntou Will.
— Com um «toque» de mahayana — especificou Ranga. — Mas, voltando à história de Rendang... Depois dos árabes, vieram os portugueses. Em Pala, sem a baía, nada de portugueses. Conseqüentemente, não houve minorias católicas nem a tola blasfêmia que diz ser a vontade de Deus que manda as pessoas se reproduzirem até o grau da miséria subumana. Finalmente, não houve resistência organizada ao controle da natalidade. Essa não foi nossa única bênção. Após duzentos e vinte anos de domínio português, Ceilão e Rendang passaram a ser dominados pelos holandeses e, depois, pelos ingleses. Escapamos de ambas as infestações. Sem os holandeses ou ingleses, não surgiram os plantadores, o trabalho braçal, colheitas pagas à vista e destinadas à exportação. Não houve a exaustão sistemática do nosso solo, não houve uísque, calvinismo, sífilis ou administradores estrangeiros. Permitiram-nos seguir nosso próprio caminho e tomar a responsabilidade de nossos próprios negócios.
— Não há dúvida! Vocês tiveram sorte!

Li anteriormente:
As Portas da Percepção / Céu e Inferno (1954 / 1956)
Admirável Mundo Novo (1932)

12 de maio de 2014

Revolta em 2100


Robert A. Heinlein
Revolta em 2100 (1953)

Revolt in 2100 é composto de uma novela, If This Goes On... (Se Isto Continuar) e dois contos, Coventry e Misfit (O Desajustado), os três originalmente publicados na Astounding Science Fiction entre 1939 e 1940, e pertencentes ao ciclo Future History. Se Isto Continuar (à qual pertence o excerto abaixo apresentado), passa-se na época referida em Os Filhos de Matusalém como «o Interregno dos Profetas», uma tirania teocrática e isolacionista estabelecida nos Estados Unidos; narra, na primeira pessoa, a história de John Lyle, um jovem soldado pertencente à própria guarda pretoriana do Profeta, que, por causa de um amor ilegal, se vê arrastado para a clandestinidade e para a maçonaria, e consequentemente para o combate à ordem que até então aceitava sem questionar.
Coventry, também várias vezes referenciado em Os Filhos de Matusalém, é uma extensa reserva cercada por uma barreira intransponível, onde são largados à sua sorte os associais e criminosos que optam por recusar um tratamento de reajuste psicológico. Coventry descreve a condenação e o desterro de David MacKinnon nesse território, dando simultaneamente uma visão da organização social aí praticada, da importância das relações de poder e de amizade, e da luta pela sobrevivência nessa terra de vida dura.
Em O Desajustado é-nos apresentada a personagem de Andrew Jackson Libby, que desempenha um papel importante Os Filhos de Matusalém, bem como noutros contos de Future History, senhor de uma extraordinária capacidade de cálculo mental, e aqui descrito como «um desses talentos selvagens que aparecem uma vez na vida outra na morte». O Desajustado narra o seu baptismo de espaço, integrado numa missão que tem como objectivo capturar um asteróide, para, depois das necessárias escavações e construções, o transformar numa base a ser colocada entre as órbitas da Terra e Marte.

— Claro que não pretendemos levar ninguém à vingança, pois esta ainda pertence a Deus. Nunca mandaria você contra o Inquisidor porque pudesse estar tentado a alegrar-se pessoalmente com isso. Não usamos a tentação do pecado como isca. O que fazemos, o que estamos fazendo é engajar homens numa operação militar calculada, numa guerra já iniciada. Um homem-chave, às vezes, vale mais do que um regimento; pegamo-lo e matamo-lo. O bispo de uma diocese pode ser tal homem; já o de um outro Estado pode ser apenas um incompetente, sustentado pelo sistema. Matamos o primeiro, deixamos o segundo onde está. Gradativamente, estamos eliminando seus melhores cérebros. Agora — inclinou-se em minha direção — quer um emprego para agarrar esses homens-chave? É um trabalho muito importante.
Pareceu-me que, nesse negócio, sempre havia alguém querendo me fazer encarar os fatos, ao invés de me deixar fugir dos mais desagradáveis, como a maioria das pessoas consegue fazer durante a vida toda. Será que eu teria estômago para essa atribuição? Será que eu podia recusá-la, uma vez que Mestre Peter tinha insinuado que pelo menos os assassinos eram voluntários? Recusá-la e tentar ignorar do fundo do meu coração o que estava acontecendo e como eu estava desculpando tudo?
Mestre Peter tinha razão; o homem que compra carne é irmão do açougueiro. O problema era melindroso, mas não moral... como o homem que é favorável à pena de morte mas que pessoalmente é «bom» demais para preparar o nó da corda ou brandir o machado. Como a pessoa que encara a guerra como inevitável, ou mesmo em certas circunstâncias como moral, mas evita o serviço militar por não gostar de matar.
Emocionalmente infantis, eticamente retardados — a mão esquerda tem de saber o que a direita faz e o coração é responsável por ambas.

Li anteriormente:
Os Filhos de Matusalém (1958)
O Dia Depois de Amanhã (1949)
O Gato que Atravessava as Paredes (1985)

3 de maio de 2014

Amor de Perdição

Camilo Castelo Branco
Amor de Perdição (1862)

É a obra mais conhecida de Camilo Castelo Branco, várias vezes adaptada ao cinema, e, talvez, o mais perfeito exemplo do romantismo na literatura portuguesa. Inspirado por factos reais sucedidos no seio da sua família e, certamente, pela própria experiência pessoal - o autor escreveu a novela na mesma cadeia por onde faz passar um dos protagonistas -, Amor de Perdição é uma variação sobre o tema de Romeu e Julieta: o amor contrariado de Simão Botelho e Teresa Albuquerque, rumo a um desfecho funesto. Julgar que a previsibilidade do enredo retira o prazer da leitura, seria, no entanto, um erro. A escrita viva de Camilo Castelo Branco e os frequentes episódios paralelos (a maledicência das monjas, quando Teresa é enviada para o convento de Viseu, é hilariante), aligeiram o trágico desenrolar da narrativa.

O académico, porém, com os seus entusiasmos, era incomparavelmente muito mais prejudicial e perigoso que o mata-mouros de tragédia. As recordações esporeavam-no a façanhas novas, e naquele tempo a academia dava azo a elas. A mocidade estudiosa, em grande parte, simpatizava com as balbuciantes teorias da liberdade, mais por pressentimento, que por estudo. Os apóstolos da Revolução Francesa não tinham podido fazer reboar o trovão dos seus clamores neste canto do mundo; mas os livros dos enciclopedistas, as fontes onde a geração seguinte bebera a peçonha que saiu do sangue de noventa e três, não eram de todo ignorados. As doutrinas da regeneração social pela guilhotina tinham alguns tímidos sectários em Portugal, e esses de ver é que deviam pertencer à geração nova. Além de que o rancor à Inglaterra lavrava nas entranhas das classes manufactureiras, e o desprender-se do jugo aviltador de estranhos, apertado, desde o princípio do século anterior, com as sogas de ruinosos e pérfidos tratados, estava no ânimo de muitos e bons portugueses que se queriam antes aliançados com a França. Estes eram os pensadores reflexivos; os sectários da academia, porém, exprimiam mais a paixão da novidade que as doutrinas do raciocínio.

Li anteriormente:
A Queda dum Anjo (1866)