24 de maio de 2014

A Ilha



Aldous Huxley
A Ilha (1962)

Chegado à ilha de Pala após um naufrágio, Will Farnaby – um jornalista que "nunca aceita o sim como resposta" –, descobre aos poucos uma sociedade isolada que, graças à aliança visionária de um rajá budista nativo e de um expatriado escocês ali arribado um século antes, colocou em marcha uma experiência de engenharia social que frutificou de forma espectacular, "aproveitando o melhor dos dois mundos para criarem o melhor de todos os mundos." Como contraponto ao Admirável Mundo Novo, onde se mostrava um pesadelo distópico, ditatorial, de completa alienação, A Ilha é o seu oposto, a descrição minuciosa de uma quase paradisíaca utopia tropical, nas vésperas de submergir perante os poderosos interesses multinacionais que cobiçam o petróleo existente nas imediações.

— Manter as crianças vivas, tratar os doentes, evitar que os detritos invadam o fornecimento da água são coisas intrinsecamente boas, não há a menor dúvida! Mas aonde conduzem todas essas boas coisas? O resultado é o aumento do número das misérias humanas; é a civilização exposta ao perigo. E esta é a espécie de brincadeira cósmica com que Deus parece realmente se deleitar! — Will dirigiu aos jovens um de seus sorrisos ferozes e agressivos.
— Deus nada tem a ver com isto — retrucou Ranga — e a brincadeira não é cósmica; foi inteiramente elaborada pelo homem. Essas coisas não são como a lei da gravidade ou a segunda lei da termodinâmica. Elas não têm de acontecer. Somente ocorrem se as pessoas são bastante estúpidas para permitirem. Aqui em Pala não o permitimos e, por isso, não brincaram conosco. Há quase um século temos bom sistema sanitário e, apesar disso, não temos excesso de população, não temos miséria e não estamos sob uma ditadura. A razão de tudo isso é muito simples: escolhemos um modo de proceder que é sensato e realista.
— Como conseguiram escolher? — perguntou Will.
— As pessoas a quem cabia decidir foram inteligentes no momento oportuno — disse Ranga. — Mas temos de admitir que a sorte nos ajudou muito. De um modo geral, Pala tem tido uma sorte fora do comum. Em primeiro lugar, pelo fato de nunca ter sido uma colônia. Rendang possui uma baía magnífica. Isso lhes trouxe uma invasão árabe, na Idade Média. Como nós não temos uma baía, os árabes nos deixaram em paz. Continuamos budistas, xivaítas ou simples agnósticos de tantrik.
— Você é um agnóstico de tantrik? — perguntou Will.
— Com um «toque» de mahayana — especificou Ranga. — Mas, voltando à história de Rendang... Depois dos árabes, vieram os portugueses. Em Pala, sem a baía, nada de portugueses. Conseqüentemente, não houve minorias católicas nem a tola blasfêmia que diz ser a vontade de Deus que manda as pessoas se reproduzirem até o grau da miséria subumana. Finalmente, não houve resistência organizada ao controle da natalidade. Essa não foi nossa única bênção. Após duzentos e vinte anos de domínio português, Ceilão e Rendang passaram a ser dominados pelos holandeses e, depois, pelos ingleses. Escapamos de ambas as infestações. Sem os holandeses ou ingleses, não surgiram os plantadores, o trabalho braçal, colheitas pagas à vista e destinadas à exportação. Não houve a exaustão sistemática do nosso solo, não houve uísque, calvinismo, sífilis ou administradores estrangeiros. Permitiram-nos seguir nosso próprio caminho e tomar a responsabilidade de nossos próprios negócios.
— Não há dúvida! Vocês tiveram sorte!

Li anteriormente:
As Portas da Percepção / Céu e Inferno (1954 / 1956)
Admirável Mundo Novo (1932)

12 de maio de 2014

Revolta em 2100


Robert A. Heinlein
Revolta em 2100 (1953)

Revolt in 2100 é composto de uma novela, If This Goes On... (Se Isto Continuar) e dois contos, Coventry e Misfit (O Desajustado), os três originalmente publicados na Astounding Science Fiction entre 1939 e 1940, e pertencentes ao ciclo Future History. Se Isto Continuar (à qual pertence o excerto abaixo apresentado), passa-se na época referida em Os Filhos de Matusalém como «o Interregno dos Profetas», uma tirania teocrática e isolacionista estabelecida nos Estados Unidos; narra, na primeira pessoa, a história de John Lyle, um jovem soldado pertencente à própria guarda pretoriana do Profeta, que, por causa de um amor ilegal, se vê arrastado para a clandestinidade e para a maçonaria, e consequentemente para o combate à ordem que até então aceitava sem questionar.
Coventry, também várias vezes referenciado em Os Filhos de Matusalém, é uma extensa reserva cercada por uma barreira intransponível, onde são largados à sua sorte os associais e criminosos que optam por recusar um tratamento de reajuste psicológico. Coventry descreve a condenação e o desterro de David MacKinnon nesse território, dando simultaneamente uma visão da organização social aí praticada, da importância das relações de poder e de amizade, e da luta pela sobrevivência nessa terra de vida dura.
Em O Desajustado é-nos apresentada a personagem de Andrew Jackson Libby, que desempenha um papel importante Os Filhos de Matusalém, bem como noutros contos de Future History, senhor de uma extraordinária capacidade de cálculo mental, e aqui descrito como «um desses talentos selvagens que aparecem uma vez na vida outra na morte». O Desajustado narra o seu baptismo de espaço, integrado numa missão que tem como objectivo capturar um asteróide, para, depois das necessárias escavações e construções, o transformar numa base a ser colocada entre as órbitas da Terra e Marte.

— Claro que não pretendemos levar ninguém à vingança, pois esta ainda pertence a Deus. Nunca mandaria você contra o Inquisidor porque pudesse estar tentado a alegrar-se pessoalmente com isso. Não usamos a tentação do pecado como isca. O que fazemos, o que estamos fazendo é engajar homens numa operação militar calculada, numa guerra já iniciada. Um homem-chave, às vezes, vale mais do que um regimento; pegamo-lo e matamo-lo. O bispo de uma diocese pode ser tal homem; já o de um outro Estado pode ser apenas um incompetente, sustentado pelo sistema. Matamos o primeiro, deixamos o segundo onde está. Gradativamente, estamos eliminando seus melhores cérebros. Agora — inclinou-se em minha direção — quer um emprego para agarrar esses homens-chave? É um trabalho muito importante.
Pareceu-me que, nesse negócio, sempre havia alguém querendo me fazer encarar os fatos, ao invés de me deixar fugir dos mais desagradáveis, como a maioria das pessoas consegue fazer durante a vida toda. Será que eu teria estômago para essa atribuição? Será que eu podia recusá-la, uma vez que Mestre Peter tinha insinuado que pelo menos os assassinos eram voluntários? Recusá-la e tentar ignorar do fundo do meu coração o que estava acontecendo e como eu estava desculpando tudo?
Mestre Peter tinha razão; o homem que compra carne é irmão do açougueiro. O problema era melindroso, mas não moral... como o homem que é favorável à pena de morte mas que pessoalmente é «bom» demais para preparar o nó da corda ou brandir o machado. Como a pessoa que encara a guerra como inevitável, ou mesmo em certas circunstâncias como moral, mas evita o serviço militar por não gostar de matar.
Emocionalmente infantis, eticamente retardados — a mão esquerda tem de saber o que a direita faz e o coração é responsável por ambas.

Li anteriormente:
Os Filhos de Matusalém (1958)
O Dia Depois de Amanhã (1949)
O Gato que Atravessava as Paredes (1985)

3 de maio de 2014

Amor de Perdição

Camilo Castelo Branco
Amor de Perdição (1862)

É a obra mais conhecida de Camilo Castelo Branco, várias vezes adaptada ao cinema, e, talvez, o mais perfeito exemplo do romantismo na literatura portuguesa. Inspirado por factos reais sucedidos no seio da sua família e, certamente, pela própria experiência pessoal - o autor escreveu a novela na mesma cadeia por onde faz passar um dos protagonistas -, Amor de Perdição é uma variação sobre o tema de Romeu e Julieta: o amor contrariado de Simão Botelho e Teresa Albuquerque, rumo a um desfecho funesto. Julgar que a previsibilidade do enredo retira o prazer da leitura, seria, no entanto, um erro. A escrita viva de Camilo Castelo Branco e os frequentes episódios paralelos (a maledicência das monjas, quando Teresa é enviada para o convento de Viseu, é hilariante), aligeiram o trágico desenrolar da narrativa.

O académico, porém, com os seus entusiasmos, era incomparavelmente muito mais prejudicial e perigoso que o mata-mouros de tragédia. As recordações esporeavam-no a façanhas novas, e naquele tempo a academia dava azo a elas. A mocidade estudiosa, em grande parte, simpatizava com as balbuciantes teorias da liberdade, mais por pressentimento, que por estudo. Os apóstolos da Revolução Francesa não tinham podido fazer reboar o trovão dos seus clamores neste canto do mundo; mas os livros dos enciclopedistas, as fontes onde a geração seguinte bebera a peçonha que saiu do sangue de noventa e três, não eram de todo ignorados. As doutrinas da regeneração social pela guilhotina tinham alguns tímidos sectários em Portugal, e esses de ver é que deviam pertencer à geração nova. Além de que o rancor à Inglaterra lavrava nas entranhas das classes manufactureiras, e o desprender-se do jugo aviltador de estranhos, apertado, desde o princípio do século anterior, com as sogas de ruinosos e pérfidos tratados, estava no ânimo de muitos e bons portugueses que se queriam antes aliançados com a França. Estes eram os pensadores reflexivos; os sectários da academia, porém, exprimiam mais a paixão da novidade que as doutrinas do raciocínio.

Li anteriormente:
A Queda dum Anjo (1866)

1 de maio de 2014

Os Filhos de Matusalém

Robert A. Heinlein
Os Filhos de Matusalém (1958)

O conto Methuselah's Children foi publicado em fascículos em 1941, na revista Astounding Science Fiction, e expandido para a dimensão de novela em 1958. Aqui se introduz a personagem de Lazarus Long, nascido em 1912, que reaparecerá noutras novelas e também nos contos que foram reunidos sob o título Future History.
A Fundação Howard, criada em 1874 e operando discretamente, conseguiu expandir consideravelmente a longevidade humana pela promoção da selecção genética. Em 2136, onze anos depois da exposição pública da experiência, as Famílias Howard, totalizando então cerca de cem mil indivíduos, são alvo de uma onda crescente de discriminação e perseguição, devido à crença geral que o resultado obtido se deve não apenas à genética, mas a um "segredo" tecnológico que eles guardam apenas para si. A situação torna-se tão explosiva que as Famílias Howard se vêm levadas a um êxodo precipitado, a bordo de uma nave recém-construída, na procura de um nova Terra, onde possam viver em paz. Mas o que encontram está longe de ser satisfatório...

— Hum... Andy, quando é que lá chegamos?
Libby encolheu os ombros com desespero. — Não tenho nenhum enquadramento de referência. Que é o tempo sem uma referência de espaço?
Tempo e espaço, inseparáveis e unos... Libby ficou a pensar no assunto muito depois de os outros terem saído. Na verdade, ele tinha o enquadramento da própria nave e por isso havia necessariamente um tempo da nave. Os relógios da nave tiquetaqueavam ou zumbiam ou moviam-se simplesmente; as pessoas tinham fome, alimentavam-se, cansavam-se, descansavam. Os radioactivos deterioravam-se, os processos físico-químicos avançavam para estados de maior entropia, a própria consciência de Libby tinha a percepção da duração.
Mas o pano de fundo das estrelas, contra o qual todas as funções de tempo da história do homem tinham sido medidas, desaparecera. Tanto quanto os seus olhos ou qualquer instrumento da nave lhe podiam dizer, tinham perdido a relação com o resto do universo.
Que universo?
Não havia universo. Desaparecera.
Estariam em movimento? Pode haver movimento quando não há nada para ultrapassar?
Contudo, o falso peso conseguido pela rotação da nave persistia. Rotação em relação a quê?, pensou Libby. Seria que o espaço possuía uma textura verdadeira, absoluta, não relacional própria, como a que fora postulada para o de há muito abandonado éter que as experiências clássicas de Michelson-Morley não tinham conseguido detectar? Não, mais que isso — cuja própria possibilidade de existência tinham negado?
Lá por isso, também tinham negado a possibilidade de uma velocidade superior à da luz. Teria a nave realmente passado a velocidade da luz? Não seria mais provável que ela fosse um caixão, tendo fantasmas por passageiros, dirigindo-se para lugar nenhum em tempo nenhum?

Li anteriormente:
O Dia Depois de Amanhã (1949)
O Gato que Atravessava as Paredes (1985)
Cidadão da Galáxia (1957)