1 de xullo de 2014

A Insustentável Leveza do Ser

Milan Kundera
A Insustentável Leveza do Ser (1984)

A condição de exilado político de Milan Kundera, a Primavera de Praga, e as reflexões sobre a situação da sua Checoslováquia natal para lá da Cortina de Ferro, são temas comuns aos três livros que dele li, tal como a particularidade de todos seguirem uma estrutura de divisão em sete partes. Em A Insustentável Leveza do Ser, originalmente editado em França sob o título L'Insoutenable Légèreté de l'Être, entrecruzam-se as histórias de Tomas, Tereza, Franz e Sabina (os nomes simples das personagens principais, outros há que não têm nome, ou são referidos por uma inicial) entremeadas de política, filosofia e sexo, em percursos espirais que integram factos já referidos noutro lado, tecendo assim uma narrativa em avanços e recuos, que ganha consistência à medida que se desenrola.
Este tipo de argumento (s)existencialista, já me agradou mais do que actualmente, o que não significa que não tenha lido esta obra com prazer. Do livro retenho sobretudo a sua Sexta Parte, nomeadamente nos primeiros pontos sobre as implicações teológicas e filosóficas da merda, e logo depois com uma explanação do kitsch como ideal estético; impagável!

Os crimes do Império Russo foram sempre perpetrados ao abrigo de uma discreta penumbra. Tanto da deportação de meio milhão de lituanos e da morte de centenas de milhares de polacos, como da liquidação dos tártaros da Crimeia não restaram provas fotográficas nenhumas, ficando tais acontecimentos gravados apenas na memória como algo de indemonstrável que, mais cedo ou mais tarde, se faria passar como uma mistificação. A invasão da Checoslováquia em 1968 foi, pelo contrário, fotografada, filmada e arrumada nos arquivos do mundo inteiro.
Os fotógrafos e operadores de câmara checos souberam aproveitar a oportunidade que se lhes oferecia de fazer a única coisa que ainda podia ser feita: preservar para o futuro longínquo a imagem da violação. Tereza passou esses sete dias na rua a fotografar soldados e oficiais russos nas mais diversas situações, todas comprometedoras. Os russos foram apanhados desprevenidos. Tinham recebido instruções precisas quanto à atitude a adoptar no caso de serem atacados com armas ou com pedras, mas ninguém lhes indicara como reagir perante a objectiva de uma máquina fotográfica.
Gastou centenas de negativos a tirar fotografias. Deu mais ou menos metade dos rolos a jornalistas estrangeiros (as fronteiras continuavam abertas, os jornalistas estrangeiros estavam sempre a chegar, pelo menos para uma curta estada quase só de ida e volta, e aceitavam reconhecidamente o menor documento). Muitas das fotografias de Tereza apareceram no estrangeiro, nos mais variados jornais: eram fotografias de tanques, de punhos ameaçadores, de prédios destruídos, de mortos cobertos com bandeiras tricolores, de jovens a andar de moto a toda a velocidade à volta dos carros de assalto, agitando grandes paus com bandeiras checas na ponta, e de rapariguinhas muito novas com mini-saias incrivelmente curtas que provocavam os infelizes soldados russos sexualmente esfaimados, beijando, sob os seus narizes, o primeiro desconhecido que passasse. A invasão russa, voltamos a insistir, não foi apenas uma tragédia; foi também uma festa do ódio cuja estranha euforia nunca ninguém poderá compreender.

Li anteriormente:
A Brincadeira (1967)
O Livro do Riso e do Esquecimento (1979)