10 de outubro de 2014

Lendas de Portugal, vol. 3


Gentil Marques
Lendas de Portugal, vol. 3 (1964)

Terceiro volume dedicado à recolha de lendas populares portuguesas, desta vez sob o tema Lendas de Mouras e Mouros. O excerto que escolhi pertence à Lenda da Mina de Ouro, relacionada com a freguesia de Vale da Figueira, no concelho de Santarém.

Com voz sumida, Maria indagou:
– Chegamos?
– Sim, chegamos.
Ela olhou em volta. O coração bateu-lhe com violência.
– Mas... senhor... onde é a vossa casa?
– Já vai ver.
E encaminhando-se para uma pedra rochosa tocou-lhe com a mão. A pedra rodou. Maria olhou para o homem, aflita:
– Mas... isso é um alçapão!
Com a serenidade de sempre, ele retorquiu:
– É uma porta como outra qualquer.
– Pode ser um covil de ladrões!
– E... se fosse... recusava-se a salvar duas vidas?
Maria olhou o homem que a fitava numa ansiosa interrogação. Suspirou:
– Tem razão, senhor. Irei. E seja o que Deus quiser!
O homem sorriu. A sua expressão tornou-se mais leve. A sua voz, quase cariciosa.
– Cuidado! Daqui para diante encontrará muitas coisas que hão-de parecer-lhe estranhas. Não faça perguntas, nem tente fixar o que vai ver. Lembre-se que tem por única missão assistir ao nascimento de uma criança.
Maria fez um sinal afirmativo com a cabeça e, vendo à sua frente umas escadas, indagou:
– Desço por aqui?
– Não precisa de descer. A própria escada a levará.
Sorrindo acrescentou:
– Não se assuste com o que vir. Faça de conta que está sonhando.
Surpreendida, Ti Maria murmurou quase:
– E estarei eu mesmo sonhando?...
Ali, desaparecera a voz do vento e a impiedade da chuva. Lá em baixo, ela via salões fantásticos de luxo e riquezas. Homens de turbantes na cabeça passavam como se ela não existisse. Mulheres vestidas com mantos e véus.
Maria parara no meio do salão, como que deslumbrada. O desconhecido tocou-lhe num ombro.
– Vamos?
Maria deixou-se encaminhar. Vivia um conto d'As Mil e Uma Noites! E lembrava-se das histórias de fadas e mouras encantadas que a avó lhe contara à lareira. Tudo ali era irreal! Tudo parecia um sonho!

Li anteriormente:
Lendas de Portugal, vol. 2 (1963)
Lendas de Portugal, vol. 1 (1962)

7 de outubro de 2014

O Adeus às Armas

Ernest Hemingway
O Adeus às Armas (1929)

De Hemingway li um punhado de livros há já muitos anos, quase todos eles publicados depois de 1950; a excepção era O Adeus às Armas. Pretendendo agora ler algumas das obras pertencentes à sua primeira fase, decidi reler este livro, cujo argumento tinha praticamente esquecido.
O Adeus às Armas, largamente autobiográfico, narra a história de Frederic Henry, um norte-americano alistado no exército italiano durante a Grande Guerra, com a missão de condutor de ambulâncias, e o seu encontro com uma enfermeira inglesa, Catherine Barkley, com quem viverá uma grande paixão. Ferido num bombardeamento na frente de combate, o período de convalescença e o regresso à frente, decorridos muitos meses, trazem a Henry uma mudança de perspectiva e um sentimento anti-militarista à medida que se vai confrontando com o imobilismo, a perpetuação e a aparente inutilidade dos combates. Durante a confusão de uma retirada, a polícia do exército confunde-o com um espião, devido à sua nacionalidade estrangeira, e, na iminência de ser fuzilado, Henry foge, para se reunir a Catherine, e abandonar de uma vez o exército...

– Sou patriota – disse Gino –, mas não posso gostar de Brindisi nem de Tarento.
– Você gosta do Bainsizza? – perguntei.
– O solo é sagrado – disse ele –, mas preferia que desse mais batatas. Sabe, quando cá chegámos achámos batatais plantados pelos Austríacos.
– Tem havido realmente falta de abastecimentos?
– Eu próprio nunca tive o suficiente para comer, mas como muito, e não cheguei a passar fome. A messe é razoável. Nas trincheiras, as tropas são bem alimentadas, mas as de reforço nem tanto. Há algures qualquer coisa que não funciona bem. Devia haver víveres mais que suficientes.
– Os especuladores vendem-nos por outro lado.
– Sim, dão aos batalhões que estão nas trincheiras o mais que podem, mas os da retaguarda ficam prejudicados. Comeram todas as batatas dos Austríacos e as castanhas dos bosques. Era preciso que os alimentassem melhor. Somos grandes comilões. Tenho a certeza de que há comida em abundância. É muito mau para os soldados não comerem o suficiente. Já reparou alguma vez como isso influencia a maneira de eles pensarem?
– Reparei – disse eu. – Não é coisa que faça ganhar uma guerra, mas pode fazê-la perder.
– Não falemos em perder a guerra. Já se fala de mais nisso. O que se fez este Verão não pode ter sido em vão.
Eu não disse nada. As palavras "sagrado", "glorioso" e "sacrifício" e a expressão "em vão" deixavam-me sempre embaraçado. Tínhamo-lo ouvido, muitas vezes, de pé, à chuva, quase fora do alcance do ouvido, de forma que só nos chegavam as palavras gritadas, e tínhamo-las lido em proclamações que eram coladas sobre outras proclamações vezes sem conta, e eu não tinha visto nada sagrado, e as coisas que eram gloriosas não tinham glória e os sacrifícios eram como os matadouros de Chicago, com a diferença de que a carne servia só para ser enterrada. Havia muitas palavras que não se podiam suportar, e por fim só os nomes dos lugares conservavam ainda dignidade. Com certos números acontecia o mesmo, e também com certas datas, e estas, assim como os nomes dos lugares, eram tudo quanto significava ainda alguma coisa. Palavras abstractas como "glória", "honra", "coragem" ou "santidade" tornavam-se obscenas comparadas aos nomes concretos das aldeias, aos números das estradas, aos nomes dos rios, aos números dos regimentos e às datas. Gino era um patriota, e por isso dizia coisas que às vezes nos separavam, mas era ao mesmo tempo um excelente moço, e eu compreendia que ele fosse patriota. Tinha nascido assim. Regressou no carro a Gorizia, juntamente com Peduzzi.

Li anteriormente:
Ilhas na Corrente (1970)
Na Outra Margem entre as Árvores (1950)
O Jardim do Éden (1986)