14 de decembro de 2014

O Leopardo


Tomasi di Lampedusa
O Leopardo (1958)

O Leopardo é a única novela entre a reduzida obra deixada por Giuseppe Tomasi di Lampedusa, e publicada postumamente. Passada maioritariamente no período conturbado da unificação italiana, tem como tema geral a desagregação da aristocracia siciliana num tempo que deixou de ter lugar para ela, em que campeiam os arrivistas burgueses. Inspirado na vida de familiares próximos, O Leopardo tem uma força visceral, do primeiro ao último parágrafo, sem prescindir de uma linguagem cuidada e criteriosa. Li algures, há tempos, que a qualidade da literatura se media pelo comprimento das frases. É uma afirmação discutível, mas, se reflectirmos no que ali está implícito, é impossível não deixar de concordar. Sendo, apesar de tudo, uma obra mal vista em determinados círculos "bem-pensantes", é-se levado a supor, tendo em conta o exemplo, que tal pode funcionar como um cartão de recomendação.

Don Ciccio continuava a bramar:
— Para vós, senhores, há outra coisa. Pode-se ser ingrato por causa de mais uma propriedade; mas por causa de um bocado de pão, o reconhecimento é uma obrigação. E há muito pano para mangas para os traficantes como Sedara, para quem o lucro é uma lei da natureza. Para nós, a arraia-miúda, as coisas ficam na mesma. Sabeis bem, Excelência, que aquela boa alma do meu pai era guarda-caça do pavilhão real de S. Onófrio, já no tempo de Fernando IV, quando aqui estavam os ingleses. É certo que se levava uma vida dura mas o uniforme real e a placa de prata davam autoridade. Foi a Rainha Isabel, a espanhola, que nessa altura era Duquesa da Calábria, que me mandou estudar, que me permitiu ser aquilo que hoje sou, organista da Igreja Matriz, honrado pela benevolência de Vossa Excelência; e nos anos de maior necessidade, quando minha mãe enviava uma súplica à Corte, chegavam sempre as cinco onças de socorro, tão certas como a morte, pois lá em Nápoles estimavam-nos, sabiam que éramos boa gente, súbditos fiéis; quando vinha o Rei, este dava umas palmadas nas costas do meu pai e dizia: «Don Leonardo, precisava de muita gente como você; sustentáculos fiéis do trono e da minha pessoa.» Depois, vinha o ajudante-de-campo e distribuía moedas de ouro. Agora dizem que eram esmolas, essas generosidades de verdadeiros Reis; dizem-no por não serem dadas a eles; tratava-se porém de justas recompensas da nossa dedicação. E hoje se esses santos Reis e Rainhas nos olhassem lá do céu, que diriam eles? «O filho de don Leonardo Tumeo atraiçoou-nos!» Ainda bem que no Paraíso se conhece a verdade. Eu sei, Excelência, eu sei, as pessoas como vós já me disseram que essas coisas por parte dos Reis não significam nada, fazem parte do ofício. Será verdade, é mesmo certamente verdade. Mas o facto é que havia as cinco onças e com elas sempre se ajudava a passar o Inverno. E agora que podia pagar a minha dívida, não há nada a fazer, nada, «tu não percebes patavina», o meu não transforma-se num sim. Era «súbdito fiel», tornei-me um bourbónico sujo. Agora toda a gente é «saboiana»! Mas os «saboianos» mastigo-os eu ao café! — E empunhando, entre o polegar e o indicador, um biscoito fictício, mergulhava-o numa chávena imaginária.