7 de xuño de 2015

Lendas de Portugal, vol. 5

Gentil Marques
Lendas de Portugal, vol. 5 (1966)

O último tomo desta obra é dedicado às Lendas de Amor, quase todas marcadas por desenlaces trágicos, o que poderá muito bem significar que é a tragédia, e não a felicidade, a marca que assinala um grande amor. Dos amores impossíveis às ironias do destino, estas lendas populares percorrem um alargado espectro de personagens e situações, desde as mais ingénuas e singelas às mais complexas e simbólicas. Destas últimas, gostaria de destacar a Lenda da Madalena do Mar, decorrida na Ilha da Madeira e centrada na misteriosa personagem do Henrique Alemão, cujo argumento poderia servir como ponto de partida para uma interessante criação sob outra forma artística – um filme, um romance, uma ópera.
No final da série, talvez seja tempo de fazer um pequeno balanço. As Lendas de Portugal, neste tempo “d'uma austera, apagada e vil tristeza” são como uma brisa de ar fresco, vindo de um passado certamente idealizado – lendário – que fala de valores, conceitos e princípios que forjaram uma nação outrora forte, ajudando a conhecermo-nos, e entendermo-nos, melhor. Esse espaço da Portugalidade, que ultrapassa as nossas fronteiras geográficas e temporais, estende-se desde um antes romano até um depois que termina cerca do século XVII, e baliza um tempo quase mítico onde a assenta a nossa identidade como povo e nação. A quem aprecia este género de narrativa, recomendo o sítio www.lendarium.org, onde se encontram algumas das lendas transcritas por Gentil Marques, bem como muitas outras mais.
Para o excerto transcrito (como sempre, a grande dificuldade foi a escolha) seleccionei um trecho da Lenda da Vingança de Fernão Gonçalves, pela força e pelo drama. Fernão Gonçalves, um nobre guerreiro da Reconquista, no século X, recolhe, após uma das guerras, um menino mouro, Abdalá, a quem poupa a vida e faz educar entre o seu povo. O rapaz cresce e apaixona-se por Constança, a filha de Fernão Gonçalves; quando este descobre o que se passa pretende descarregar a sua ira sobre Abdalá, que, respondendo ao apelo do seu sangue, foge para o lado dos mouros. A cena passa-se no reencontro dos dois inimigos, no campo de batalha:

Um dia, a batalha travava-se fora da região onde ele tinha os seus domínios. Ajudava o monarca D. Ramiro II na luta contra os infiéis. No meio da contenda, D. Fernão Gonçalves caiu do cavalo. Logo o rodeou um turba de mouros. Mais de vinte adagas caíram sobre ele. Mas logo uma voz possante gritou:
– Quem o vai desarmar sou eu!
Os outros, vendo um dos seus chefes, retiraram as armas, embora sem perder de vista o ferido. O chefe mouro falou:
– D. Fernão Gonçalves! Sabes quem sou?
Mal podendo ver, pois a agonia aproximava-se, D. Fernão teve forças para responder:
– Sei quem és... És Abdalá, o maldito a quem poupei a vida!
– Que fizeste da tua filha?
– Que te importa?
– Amo-a, apesar de tudo!
– Pois... fica feliz! Vou morrer... e ela... espera-te!
– Onde?
– No salão nobre do meu palácio, onde cresceste e te fizeste homem!
– Porquê no salão nobre?
– Porque lá a fechei... antes de vir para aqui! E agora... satisfaz o teu ódio... mata-me!
– Não matarei o pai daquela a quem amo... Outros o farão por mim.
E dando costas, fez sinal para que não prolongassem a agonia de D. Fernão.
Terminada a batalha, que estava já no fim e fora ganha pelos mouros, Abdalá e alguns dos seus obtiveram licença para se embrenharem nos domínios de D. Fernão Gonçalves. Atravessaram rios e montanhas ligeiros como o vento. Ao cair da noite, o jovem mouro chegou ao palácio. Parecia deserto. Nem um criado, nem um guarda. Arranjou luz e forçou a porta do salão nobre. Ao entrar, o quadro que se lhe deparou deixou-o horrorizado... Gritou:
– Constança, meu amor!
Mas ela não respondeu. Estava morta sobre um divã estofado de rico damasco. A seu lado, tombada no solo, ainda ensanguentada, uma das espadas de seu pai.
Abdalá caiu de joelhos, soluçando. Compreendia a terrível vingança de D. Fernão. Poderia ter-lhe dito que a deixara morta para que jamais lhe pertencesse. Mas preferiu dar-lhe a alegria de uma esperança, na certeza de que, assim, se vingaria duplamente!

Li anteriormente:
Lendas de Portugal, vol. 4 (1965)
Lendas de Portugal, vol. 3 (1964)
Lendas de Portugal, vol. 2 (1963)