9 de agosto de 2015

Regresso ao Admirável Mundo Novo


Aldous Huxley
Regresso ao Admirável Mundo Novo (1959)

Regresso ao Admirável Mundo Novo (Brave New World Revisited, no título original) é uma compilação de ensaios publicados na revista “Newsday”, 26 anos após a apresentação da novela Admirável Mundo Novo, em que Huxley analisa a evolução da sociedade ocidental no tempo entretanto decorrido, e constata que “o futuro chegou demasiado depressa”, para utilizar uma expressão em voga por estes dias.
Traçando frequentes paralelismos entre a sua própria novela e o 1984 de Orwell, Huxley considera que a distopia de Orwell já não parece realizável, na sua brutalidade totalitária, à luz das recentes evoluções históricas e sociais; quanto ao Admirável Mundo Novo, mais “benigno” na sua aparência, encontra-lhe ainda demasiados motivos de preocupação, bem como determinadas facetas que parecem estar a materializar-se. Quase 60 anos volvidos, pode-se dizer que vivemos já, em vários aspectos, nesse Admirável Mundo Novo.
Os ensaios debruçam-se sobre diversas questões, como as preocupações malthusianas acerca da superpopulação e o esgotamento dos recursos, os prós e contras do eugenismo, o preço do chamado progresso técnico, a alienação dos mass media, a propaganda e manipulação das massas, etc., na urgência com que se colocavam – e ainda se colocam... cada vez mais! – no confronto com as soluções preconizadas no Admirável Mundo Novo.
Huxley previu neste livro um futuro superpopulado, dominado por ditaduras comunistas; mas também fala dos perigos de uma democracia puramente formal, onde os destinos das pessoas são decididos por aquilo que designa como o “Alto Negócio” e o “Grande Governo”. Se a previsão falhou na segunda metade da primeira afirmação, acertou em cheio na segunda.

No que diz respeito à propaganda, os primeiros defensores da instrução obrigatória e de uma Imprensa livre só enfrentavam duas possibilidades: a propaganda podia ser verdadeira ou falsa. Não previam o que realmente sucedeu, principalmente nas nossas democracias capitalistas acidentais – o crescimento de uma vasta indústria de comunicações com as massas, que na sua maior parte não se preocupa nem com o verdadeiro nem com o falso, mas com o irreal, o mais ou menos totalmente irrelevante. Numa palavra, não levaram em conta o quase infinito apetite humano de distrações.
No passado, a maioria das pessoas nunca teve oportunidade de satisfazer completamente este apetite. Desejavam demais distrações, mas não lhas forneciam. O Natal só surgia uma vez por ano, as festas eram “solenes e raras”, havia poucos leitores e muito pouco que ler, e o que havia mais aproximado de um cinema de bairro era a igreja paroquial, onde os espetáculos, se bem que freqüentes, eram bastante monótonos. Para encontrar condições, mesmo de longe comparáveis às atualmente existentes, temos de recuar até à Roma Imperial, onde o povo era mantido de bom humor graças a doses repetidas e gratuitas das mais variadas distrações – desde os dramas em verso até os combates dos gladiadores, desde recitais de Virgílio até os combates de pugilismo, desde festivais de música até paradas militares e execuções públicas. Mas, mesmo em Roma, não havia nada de semelhante à distração contínua agora fornecida por jornais e magazines, pelo rádio, televisão e cinema. No Admirável Mundo Novo, as distrações contínuas da mais fascinante natureza são deliberadamente empregadas como instrumentos de governo, com a finalidade de obstar o povo de prestar demasiada atenção às realidades da situação social e política. O mundo da religião é diferente do mundo do divertimento; mas parecem-se um com o outro por, decididamente, “não serem deste mundo”. Ambos são divertimentos e, se vivemos neles de forma excessivamente contínua, ambos podem tornar-se, segundo a frase de Marx, “o ópio do povo”, tornando-se assim uma ameaça à liberdade. Só uma pessoa vigilante consegue conservar a liberdade, e apenas os que estão constante e inteligentemente despertos podem alimentar a esperança de se governar a si próprios eficazmente por meios democráticos. Uma sociedade, cuja maioria dos membros dissipa uma grande parte do seu tempo não na vigília, não aqui e agora e no futuro previsível, mas em outra parte, nos outros mundos irrelevantes do prazer e das obras superficiais, da mitologia e da fantasia metafísica, terá dificuldade em resistir às investidas daqueles que quiserem orientá-la e controlá-la.
Na sua propaganda, os ditadores atuais limitam-se, na maioria das vezes, à repetição, supressão e racionalização – repetição de estribilhos que pretendem sejam aceitos como verdades, à supressão de fatos que eles pretendem sejam ignorados, ao desencadeamento e à racionalização de paixões que podem ser aplicadas nos interesses do Partido ou do Estado. Quando a arte e a ciência da manipulação vierem a ser mais bem conhecidas, os ditadores do futuro aprenderão, sem dúvida, a combinar estas técnicas com as distrações ininterruptas que, no Ocidente, ameaçam agora submergir num mar de irrelevância a propaganda racional indispensável à manutenção da liberdade individual e à sobrevivência das instituições democráticas.

Li anteriormente:
A Ilha (1962)
As Portas da Percepção / Céu e Inferno (1954 / 1956)
Admirável Mundo Novo (1932)

3 de agosto de 2015

Count Zero


William Gibson
Count Zero (1986)

Quando o Neuromancer foi editado despoletou um imenso burburinho; William Gibson era anunciado como uma nova estrela da literatura, e passou-se por cima do preconceito de ter publicado um livro de FC. Não o li então; deixei assentar a poeira e li-o há cinco anos, quando o autor possuía já uma obra de certa dimensão e continuidade. Chegou agora a vez de Count Zero, cujas peripécias têm por fundo a violenta disputa industrial de uma nova tecnologia, o biochip, enquanto o multimilionário Virek parte em busca da imortalidade, por interposta pessoa. A narrativa desdobra-se em três vectores simultâneos, centrados nas personagens de Turner (um mercenário ao serviço de uma poderosa multinacional), Bobby Newmark (um hacker novato mas com sonhos ambiciosos, auto-denominado “Count Zero”) e Marly Krushkhova (uma parisiense, obscura negociante de arte, que ganha um contrato astronómico ao serviço de Virek), mas estas tramas mal chegam a se interceptar (aliás, Marly não converge de todo).
Criado numa época em que a internet mal dava os primeiros passos, reencontra-se aqui toda a ambiência do Neuromancer — passa-se uns anos depois, com algumas referências a um par de personagens desse romance — tal como o futuro era imaginado em meados da década de 80: o ciberespaço e a experiência de imersão numa realidade virtual; o Japão ascendido a uma posição dominante a nível mundial (o contemporâneo Blade Runner partilhava desta ideia), com as multinacionais da época tornadas em enormes potentados globais e o iene a fazer as vezes do dólar. Menciona-se também a Alemanha Ocidental (em 1986 o Muro de Berlim parecia que ia durar para sempre) e o fax é de uso óbvio — então em processo de massificação... quando hoje se tornou numa peça de museu!
A escrita de Gibson é um tanto angulosa e difusa, e tende a deixar o leitor para trás — nesse particular faz-me lembrar o Philip K. Dick mais tardio. Depois de ter lido o Neuromancer em pt-br, senti-me um tanto intimidado em abordar este Count Zero no original. Há uma catadupa de neologismos e palavras inventadas pelo autor que me dificultariam a leitura e optei, novamente, pela versão em português do Brasil. Infelizmente não foi a decisão correcta.
Costumo dizer, um pouco na brincadeira, que o “brasileiro” é a língua estrangeira que melhor entendo. Depois deste livro já não tenho a certeza. Para além de ter achado a tradução atabalhoada, com a manutenção desnecessária de demasiadas palavras em inglês (eu, que normalmente me queixo do contrário, porque gosto de perceber o texto original “atrás” da tradução), o recurso a um vocabulário coloquial (ou gíria, talvez), empobrece fortemente o texto, na minha opinião. Fora as frequentes vezes em que pura e simplesmente não consegui entender, e me vi obrigado a pesquisar o original para tirar dúvidas. Neste confronto, tornaram-se evidentes as más opções de tradução, não no fio narrativo, mas na escolha da sintaxe. Um nomeado para os prémios Hugo e Nebula merecia melhor; quando voltar a ler William Gibson vou ter isto em consideração...

Os sonhos de computador continham uma vertigem especial. Turner se deitou em uma placa virgem de espuma verde, no dormitório improvisado, e conectou o dossiê de Mitchell. Começou devagar: teve tempo de fechar os olhos.
Dez segundos depois, os olhos estavam abertos. Agarrou a espuma verde e lutou contra a náusea. Fechou os olhos de novo... Mais uma vez, começou aos poucos, um fluxo bruxuleante e não linear de fatos e dados sensoriais, um tipo de narrativa transmitida em planos interrompidos e justaposições surreais. Era um pouco como andar em uma montanha-russa que aleatoriamente entrasse e saísse da existência, em intervalos impossivelmente rápidos, mudando de altitude, ângulo e direção a cada pulso de inexistência. Exceto que os deslocamentos não tinham nada a ver com qualquer orientação física, mas sim com alternâncias instantâneas no sistema de símbolos e paradigmas. Aqueles dados nunca se destinaram a acesso humano.
Com os olhos abertos, tirou o objeto do soquete e segurou-o na mão, lisa de suor. Era como acordar de um pesadelo. Não um de horror, no qual os temores internos assumiam formas simples e terríveis, mas o tipo de sonho, infinitamente mais perturbador, em que tudo é perfeita e terrivelmente normal... e em que tudo está completamente errado.

Li anteriormente:
Neuromancer (1984)