30 de abril de 2016

A Ilustre Casa de Ramires

Eça de Queiroz
A Ilustre Casa de Ramires (1900)

O meu primeiro contacto com Eça de Queiroz foi através d'Os Maias, leitura obrigatória na disciplina de Português quando fiz o então 11.º Ano. A forma como o ensino me foi ministrado fez-me ganhar uma profunda aversão a essa obra, — tal como tinha ficado “vacinado” contra outros autores portugueses que faziam parte do currículo escolar — de tal forma que, durante muito tempo, não dei uma oportunidade à literatura nacional (e então eu conseguia ler muito mais do que hoje). Voltei a Eça de Queiroz uma dúzia de anos depois dos fatídicos Maias, com A Cidade e as Serras, e depois fui lendo outras obras, sempre com um prazer crescente. E ainda hei-de reler Os Maias...
Este livro, o último publicado em vida do autor (em rigor, começou a ser publicado em fascículos na «Revista Moderna» em 1897, e só em 1900 foi publicado em livro, sem que Eça de Queiroz tenha terminado a totalidade da revisão), conta a história de Gonçalo Mendes Ramires, último representante de uma casa fidalga que «descende dos reis de Leão».
Gonçalo, findos os estudos em Coimbra, vê-se encerrado numa vida sem perspectivas entre Vila-Clara e Oliveira, dedicando-se à escrita de uma novela histórica, incentivado por um amigo e ex-condiscípulo que deseja renovar o panorama literário nacional com o lançamento de uma nova revista. Pelo meio atravessa-se a vontade de entrar na política e surge a hipótese de ser eleito deputado às Cortes, o que lhe vai custar alguns dissabores e cedências incómodas. Nestas peripécias de província, saborosamente descritas por Eça, vai Gonçalo abrindo o seu caminho para, num momento de triunfo final, ao fazer um balanço, chegar à conclusão que tudo não passou de uma amarga futilidade.

Despido, soprada a vela, depois de um rápido sinal-da-cruz, o Fidalgo da Torre adormeceu. Mas no quarto, que se povoou de sombras, começou para ele uma noite revolta e pavorosa. André Cavaleiro e João Gouveia romperam pela parede, revestidos de cotas de malha, montados em horrendas tainhas assadas! E lentamente, piscando o olho mau, arremessavam contra o seu pobre estômago pontoadas de lança, que o faziam gemer e estorcer sobre o leito de pau-preto. Depois era, na Calçadinha de Vila-Clara, o medonho Ramires morto, com a ossada a ranger dentro da armadura, e el-rei D. Afonso II, arreganhando afiados dentes de lobo, que o arrastavam furiosamente para a batalha das Navas. Ele resistia, fincado nas lajes, gritando pela Rosa, por Gracinha, pelo «Titó»! Mas D. Afonso tão rijo murro lhe despedia aos rins, com o guante de ferro, que o arremessava desde a hospedaria do Gago até à Serra Morena, ao campo da lide, luzente e fremente de pendões e de armas. E imediatamente seu primo de Espanha, Gomes Ramires, Mestre de Calatrava, debruçado do negro ginete, lhe arrancava os derradeiros cabelos, entre a retumbante galhofa de toda a hoste sarracena e os choros da tia Louredo trazida como um andor aos ombros de quatro reis!... Por fim, moído, sem sossego, já com a madrugada clareando nas fendas das janelas e as andorinhas piando no beiral dos telhados, o Fidalgo da Torre atirou um derradeiro repelão aos lençóis, saltou ao soalho, abriu a vidraça — e respirou deliciosamente o silêncio, a frescura, a verdura, o repouso da quinta. Mas que sede! Uma sede desesperada que lhe encortiçava os lábios! Recordou então o famoso fruit salt que lhe recomendara o dr. Matos, arrebatou o frasco, correu à sala de jantar, em camisa. E, a arquejar, deitou duas fartas colheradas num copo de água da Bica Velha, que esvaziou de um trago, na fervura picante.
— Ah! que consolo, que rico consolo!...


Li anteriormente:
O Mandarim (1880)
O Primo Basílio (1878)
A Relíquia (1887)