16 de xullo de 2016

Clarissa

Érico Veríssimo
Clarissa (1933)

Érico Veríssimo foi, para mim, a melhor descoberta da literatura brasileira. Gostei sobretudo do tríptico O Tempo e o Vento, de uma dimensão épica, uma epopeia familiar entretecida na própria História da sua pátria, comparável a um Guerra e Paz. Já Clarissa é completamente diferente: trata-se do primeiro romance de Veríssimo, com o nome que viria a dar à sua primeira filha.
Clarissa é a história de uma adolescente a completar 14 anos, filha de agrários, no seu último ano de escola, à descoberta da vida. Vive na cidade, com a tia D. Eufrasina, proprietária de uma pensão, e ali se assiste ao desfilar das personagens secundárias que com ela se cruzam: O Tio Couto, desempregado e, aparentemente, pouco amigo do trabalho, permanentemente a zurzir no governo; Nico Pombo, o major reformado que conta e reconta as suas velhas histórias de guerra; Amaro, o apagado e ausente empregado bancário e compositor frustrado; Tonico, o menino inválido da casa ao lado, cuja deficiência tolhe até os seus sonhos; Dudu, a desinibida amiga de Clarissa, detestada por D. Zina que a considera uma “desfrutável”; as eternas discussões entre Levinsky, o judeu marxista, e o farmacêutico protestante Gamaliel; e todas as peripécias que, com frescura e algum humor, Érico Veríssimo vai alinhando nesta novela despretensiosa.

— Clarissa, vem prà mesa!
A voz aguda de D. Eufrasina apaga impiedosamente a imagem do palhaço e do cortejo de moleques. Amaro volta à tona...
— Que história é essa? — pergunta Tio Couto. — O seu Amaro está enjoando a nossa comida?
Só agora Amaro percebe que nem tocou nos talheres. Balbucia desculpas.
Estava esquecido até do almoço. Sempre o velho vício. Sonhando, devaneando, enquanto os outros conversam, gesticulam, vivem de verdade. É por isso que não há-de passar nunca de simples funcionário de banco. A música não lhe dá dinheiro. Os editores sempre vêm com a mesma desculpa:
— Nós sabemos que o senhor tem talento, que sabe compor, mas infelizmente o nosso público quer é sambas e fox-trotes. Escreva uma marchinha para o Carnaval que vem, um samba ou coisa que o valha e nós editaremos a música por nossa conta.
Nestas ocasiões Amaro pensava sempre no carão severo e inflexível de Beethoven. E tinha vontade de dizer num cicio de oração: «Mestre, não faça caso, eles não sabem o que dizem...»
E assim vivia ele dentro do sonho, alheio ao mundo objectivo. Perdia aquilo a que os homens práticos chamam oportunidade. Cumpria o seu destino obscuro, de contemplativo.
Mas ia ficando para trás: sem dinheiro, sem amigos, sem glória, sem nada — na sombra: uma vida mais apagada que a do Micefufe, o gato da casa. Porque o Micefufe, enfim, se afirma: luta contra os camundongos; luta e vence-os. O Micefufe anda pelos telhados nas noites de lua e ama as gatas da vizinhança.
— Se o senhor, seu Amaro, não fosse tão distraído, seria um óptimo funcionário. Tem até uma letra muito boa...
Só de pensar na opinião do contador do banco, Amaro sente um mal-estar desconfortante. Quando terminará o conflito? Conflito com a vida, com os homens que andam pela vida a se magoarem uns aos outros, a disputar lugares aos encontrões e cotoveladas? Cada dia que passa é uma tortura que se repete. O expediente do banco, o tá-tá-tá das máquinas de escrever, os cavalheiros que discutem juros de mora, taxas, câmbios; contínuos que passam com pastas gordas de papéis cheios de algarismos; e homens inclinados sobre as carteiras, escrevendo, registando, calculando... E a fúria de uns para conseguirem juros mais vantajosos, e o desespero de outros por não poderem pagar os títulos vencidos, e as ameaças de protesto, e mais juros, e mais cálculos, e números, números, números, afogando, esterilizando, complicando, matando.
Só de pensar naquelas coisas Amaro sente arrepios.

Li anteriormente:
Olhai os Lírios do Campo (1938)
O Tempo e o Vento, vol. III – O Arquipélago (1962)
O Tempo e o Vento, vol. II – O Retrato (1951)

3 de xullo de 2016

O Avatar

Poul Anderson
O Avatar (1978)

De Poul Anderson, um autor estado-unidense com inúmeros títulos publicados e razoavelmente conhecido nos meios FC, já tinha lido meia dúzia de livros – o último dos quais há mais de 20 anos. Desses seis livros, apenas um não tinha sido editado nos anos 50 e, ao decidir ler O Avatar, sabia que corria um certo risco: em 1978 a Era Dourada da FC tinha ficado muito para trás, e as críticas ao livro eram globalmente desfavoráveis, tanto ao nível do argumento como da extensão do texto. Foi por isso com baixas expectativas que me dediquei à leitura desta obra.
O argumento parte de uma ideia recorrente na literatura deste género: o ser humano encontra uma máquina alienígena que lhe permite fazer viagens interplanetárias, mesmo sem entender o seu princípio de funcionamento. Neste caso particular, inspirado por alguma especulação científica da época acerca da utilização do força gravitacional como forma de dominar o espaço-tempo, conforme se explica no prefácio.
A história inicia-se num ponto em que o ser humano coloniza já um segundo planeta, Deméter, após ter encontrado uma máquina T no Sistema Solar. Essa máquina T, encontrada numa órbita estável, com uma mensagem de boas-vindas, permite o acesso a Deméter no Sistema de Febo, uma espécie de «oferta» dos Outros, nome que designa os seus desconhecidos construtores. E embora o método de acesso a Deméter e o regresso à Terra tenha sido revelado, todas as outras tentativas humanas na procura de outros destinos, com sondas enviadas pelas máquinas T, fracassaram.
A trama complica-se no momento em que uma nave de exploração, guiada por uma nave alienígena, consegue fazer o percurso de ida e volta ao Sistema de Febo, depois de conseguir o contacto e a ajuda desses alienígenas: os betanos – também simples utilizadores das máquinas T, embora um pouco mais evoluídos tecnologicamente do que os humanos. Uma facção política da Terra (e Deméter) na posse dessa informação, esforça-se por mantê-la secreta a todo o custo, por considerar que a descoberta iria desviar os recursos da humanidade e dispersá-los na exploração espacial.
É aqui que entra em acção Dan Brodersen, que com uma pequena nave e uma tripulação composta de alguns fiéis e de elementos resgatados à nave de exploração já mencionada, decide arriscar tudo para divulgar a verdade que os políticos desejam ocultar. Afrontando forças poderosas, decide fugir num rumo desconhecido, através da máquina T, o que dá origem a um périplo por uma série de mundos, na procura dos Outros, e da própria sobrevivência.
O Avatar é, de facto, desnecessariamente extenso; alguns capítulos poderiam ter sido cortados sem se perder nada de essencial. Com metade das páginas, e despojado de uma certa pseudo-espiritualidade que o autor nos tenta impingir, O Avatar podia ter sido bem mais interessante.

Trevas, nada. Negrura e absoluto. Aquela gente lamentava-se numa espécie de terror.
As balizas em torno da máquina T não eram candeias — vermelha, violeta, esmeralda, âmbar — acesas na maldita escuridão. Brilhavam perdidas e débeis, como se de um momento para o outro se pudessem apagar. Depois ao longe, no meio de luzes mais frouxas que mal se viam, os olhos descobriam um simples ponto de luz.
— Acalma-te — ordenava uma parte de Joelle que ela destacava de si mesmo para isso. — Não corremos perigo imediato. Vou investigar.
Reunificou a sua mente. Com os órgãos da nave e com os seus próprios sentidos começou a desbravar o desconhecido.
O radar trouxe-lhe a imagem daquele cilindro a girar. Era o maior que até aí haviam encontrado. Na ausência de gravidade, Joelle sentia, apesar de tudo, aquela massa e a energia que ela continha. Os meios ópticos e a rádio, vastamente ampliados, mostravam-lhe estrelas espalhadas em pequeno número e por largas distâncias, como brasas já a cobrirem-se de cinzas, a caminharem para a extinção. Em torno do casco era quase o vácuo total. Toda a radiação e todas as partículas materiais que ela conhecia tinham desaparecido quase por completo, deixando uma cavidade a que não fazia sentido chamar vazia ou fria. Joelle procurou e encontrou galáxias próximas, tão calcinadas como esta. As suas formas eram caóticas. Joelle tentou encontrar agrupamentos completos delas, e teria possibilidade de vislumbrar algumas das mais próximas, tais como as do grupo da Virgo, pelos derradeiros fotões que houvessem irradiado; mas não conseguiu. Haviam desaparecido demasiado rapidamente.
A atenção de Joelle voltou-se de novo para o que mais próximo a rodeava. Os instrumentos haviam acumulado dados suficientes para ela deduzir que a máquina girava em órbita em torno de um sol completamente extinto. Semelhante ao Sistema Solar, ele nunca tinha explodido, por ser demasiado pequeno, mas passou pelas fases de gigante vermelho e por outras fases variáveis, contraiu-se até ficar um globo do tamanho de um planeta de densidade máxima, onde os átomos podiam ainda continuar a ser átomos, e arrefecer lentamente, de calor branco para uma massa de escórias. Ficaram alguns verdadeiros planetas, rochas nuas ou cobertos pelas suas próprias atmosferas geladas.
Salvo um...
Joelle lembrou-se de que tinha de descer das alturas para dizer à sua gente aquilo que havia sido revelado dentro dela.
— Estamos no futuro remoto... Espacialmente, de novo no interior da galáxia, mas no tempo qualquer coisa entre setenta e cem biliões de anos depois de termos nascido. Não restam mais estrelas vivas a não ser as mais pálidas (bem-aventurados os simples porque deles é o reino dos céus) e estão agora a morrer, enquanto a própria galáxia se está a desintegrar. O universo expandiu-se e atingiu quatro ou cinco vezes as dimensões que tinha nos nossos dias. Se avançarmos muito ainda, julgo que saberemos se ele realmente se continuará a expandir para todo o sempre ou se, no fim de contas, é verdadeira a velha ideia de que acabará por implodir, retraindo-se para o interior de si mesmo e transformando-se em nova bola de fogo e em novo cosmos.

Li anteriormente:
Essas Estrelas São Nossas (1959)
A Hora da Inteligência (1954)
Espião Interestelar (1966)