21 de agosto de 2016

A Selva


Ferreira de Castro
A Selva (1930)

Ferreira de Castro foi, em tempos, o escritor português com maior número de traduções no estrangeiro. Da sua juventude passada no Brasil, à qual se refere no prólogo deste romance, recolheu certamente a inspiração para o enredo, a história de Alberto, um português a quem as circunstâncias levam aos confins da Amazónia, nas margens do rio Madeira, para trabalhar num seringal – na extracção da borracha – na época em que a matéria-prima começa a desvalorizar imparavelmente. É a descrição da grandiosidade desta selva indómita, e a sujeição dos homens a uma Natureza implacável, agravada por uma exploração quase esclavagista do seu trabalho, que fazem de A Selva um imenso quadro, que se percorre com curiosidade crescente.

Por toda a parte havia uma orquestra invisível, feita de aves trinando melodias diferentes, que se diluíam frequentemente num ritmo tão suave que era quase o silêncio verificado, na véspera, por Alberto, mas agora mais vivo, mais alvoroçante e integrado no esplendor da manhã.
De quando em quando, como se alternassem, subia pelas narinas, perturbando o olfacto, um cheiro forte de húmus em combustão, de troncos e folhagem apodrecendo no solo negro e húmido; ou então errava, por largos trechos, um aroma de ignorado jardim, perfume original e precioso como nunca o recolheram os frascos caprichosos da França.
Adivinhava-se a luta desesperada de caules e ramos, ali onde dificilmente se encontrava um palmo de chão que não alimentasse vida triunfante. A selva dominava tudo. Não era o segundo reino, era o primeiro em força e categoria, tudo abandonando a um plano secundário. E o homem, simples transeunte no flanco do enigma, via-se obrigado a entregar o seu destino àquele despotismo.
O animal esfrangalhava-se no império vegetal e, para ter alguma voz na solidão reinante, forçoso se lhe tornava vestir pele de fera. A árvore solitária, que borda melancolicamente campos e regatos na Europa, perdia ali a sua graça e romântica sugestão e, surgindo em brenha inquietante, impunha-se como um inimigo. Dir-se-ia que a selva tinha, como os monstros fabulosos, mil olhos ameaçadores, que espiavam de todos os lados.
Nada a assemelhava às últimas florestas do velho mundo, onde o espírito busca enlevo e o corpo frescura; assustava com o seu segredo, com o seu mistério flutuante e as suas eternas sombras, que davam às pernas nervoso anseio de fuga.
Vista uma légua parecia ter-se visto tudo. Só a água, presa nos lagos ou deslizando nos rios e igarapés, quebrava, com a abertura de clareiras, o emaranhado aparentemente uniforme. E, contudo, havia ali uma variedade vegetal assombrosa, com milhentos indivíduos diferentes a confundirem-se e a engalfinhar-se mutuamente, como numa raiva surda, – eviterna, mas quase sempre com a mesma expressão. Daquela bárbara grandiosidade e da sua estranha beleza, uma só forte impressão ficava – a inicial; que nunca mais se esquecia e nunca mais também se voltava a sentir plenamente. Solo de constantes parturejamentos; obstinado na ânsia-de-criar, a sua cabeleira, contemplada por fora, sugeria vida liberta num mundo virgem, ainda não tocado pelos conceitos humanos, vista por dentro, oprimia e fazia anelar a morte. Só a luz obrigava o monstro a mudar de fisionomia, revelando as suas pesadas atitudes, mas persistindo sempre no seu ar enigmático.

17 de agosto de 2016

Wilt on High


Tom Sharpe
Wilt on High (1984)

Na terceira dose das desventuras de Henry Wilt, reencontramos o nosso protagonista nas alhadas habituais, acompanhado das personagens já conhecidas: a sua mulher Eva, as quatro filhas gémeas, o inspector Flint, o sargento Yates, e alguns professores e funcionários da escola de adultos onde Henry tenta dar lições de literatura a alunos desinteressados.
Desta vez, a morte por overdose da filha de um lorde na escola de Wilt, à qual se junta outra morte, em circunstâncias idênticas, de um presidiário a quem Wilt proporcionava explicações de literatura, é o pretexto encontrado por Flint para pôr a investigação – mais concretamente o Inspector Hodge, dos Narcóticos, a quem despreza – no encalço de Wilt, na tentativa de exercer a sua vingança, por razões descritas nos livros anteriores da série, e simultaneamente fazer com que Hodge enfie o pé na argola.

Twenty minutes later, Eva, who had been intercepted by Mavis on her way home, drove up to the house.
'Henry,' she shouted as soon as she was inside the front door. 'You come straight down here and explain what you were doing with Mavis.'
'Sod off,' said Wilt.
'What did you say?'
'Nothing. I was just groaning.'
'No, you weren't. I distinctly heard you say something,' said Eva on her way upstairs.
Wilt got out of bed and girded his loins with the water bottle. 'Now you just listen to me,' he said before Eva could get a word in. 'I've had all I can stand from everybody, you, Mavis-moron-Mottram, that poisoner Kores, the quads and the bloody thugs who've been following me. In fact the whole fucking modern world with its emphasis on me being nice and docile and passive and everyone else doing their own thing and to hell with the consequences. (A) I am not a thing, and (B) I'm not going to be done any more. Not by you, or Mavis, or, for that matter, the damned quads. And I don't give a tuppenny stuff what received opinions you suck up like some dehydrated sponge from the hacks who write articles on progressive education and sex for geriatrics and health through fucking hemlock--'
'Hemlock's a poison. No one...' Eva began, trying to divert his fury.
'And so's the ideological codswallop you fill your head with,' shouted Wilt. 'Permissive cyanide, page three nudes for the so-called intelligentsia or video nasties for the unemployed, all fucking placebos for them that can't think or feel. And if you don't know what a placebo is, try looking it up in a dictionary.'
He paused for breath and Eva grabbed her opportunity. 'You know very well what I think about video nasties,' she said, 'I wouldn't dream of letting the girls see anything like that.'
'Right,' yelled Wilt, 'so how about letting me and Mr bleeding Gamer off the hook. Has it ever occurred to you that you've got genuine non-video actual nasties, pre-pubescent horrors, in those four daughters? Oh no, not them. They're special, they're unique, they're flipping geniuses. We mustn't do anything to retard their intellectual development, like teaching them some manners or how to behave in a civilized fashion. Oh no, we're your modern model parents holding the ring while those four ignoble little savages turn themselves into computer-addicted technocrats with about as much moral sense as Ilse Koch on a bad day.'
'Who's Ilse Koch?' asked Eva.
'Just a mass murderess in a concentration camp,' said Wilt, 'and don't get the idea I'm on a right-wing, flog 'em and hang 'em reactionary high because I'm not, and those idiots don't think either. I'm just mister stick-in-the-middle who doesn't know which way to jump. But my God I do think! Or try to. Now leave me in peace and discomfort and go and tell your mate Mavis that the next time she doesn't want to see an involuntary erection, not to advise you to go anywhere near Castrator Kores.'
Eva went downstairs feeling strangely invigorated. It was a long time since she'd heard Henry state his feelings so strongly and, while she didn't understand everything he'd said, and she certainly didn't think he'd been fair about the quads, it was somehow reassuring to have him assert his authority in the house. It made her feel better about having been to that awful Dr Kores with all her silly talk about...what was it?...'the sexual superiority of the female in the mammalian world'. Eva didn't want to be superior in everything and anyway, she wasn't just a mammal. She was a human being. That wasn't the same thing at all.

Li anteriormente:
Wilt (1976)
The Alternative Wilt (1979)