23 de decembro de 2017

La Cara Oculta de la ONU

Michel Schooyans
La Cara Oculta de la ONU (2001)

Michel Schooyans, de nacionalidade belga, doutorado em filosofia e teologia, professor universitário, sacerdote e membro da Academia Pontifícia de Ciências Sociais do Vaticano tem uma vasta obra publicada no campo da filosofia política. Não sendo uma personalidade situada nas margens (o então cardeal Joseph Ratzinger prefaciou uma das suas obras em 1997) é notável que, num tempo em que muita da hierarquia católica não se terá ainda apercebido do verdadeiro cariz da ONU – ou receará afrontá-la, a avaliar pelo seu silêncio –, Michel Schooyans tenha aqui alertado, já lá vão quase 20 anos, para os poderes e os objectivos que se ocultam sob uma aparência benigna dessa organização. Publicado originalmente em inglês em 2001, sob o título The Hidden Face of the United Nations, esta é a versão em língua espanhola, editada no México no ano seguinte, e agora oferecida na própria página do autor, após algumas dificuldades na divulgação do livro ao longo dos anos seguintes.
Considerava Michel Schooyans que a ONU se havia deslocado, 50 anos depois da sua fundação, do foco inicial nos direitos humanos e na democracia, para uma organização empenhada na engenharia social ao serviço de um novo totalitarismo. Se as suas conclusões se revelam certeiras, a análise dos precedentes parece demasiado condescendente; foi por isso uma surpresa, como leitor, constatar que Schooyans aceita sem pestanejar as bases fundacionais da ONU: o antropocentrismo, que considera uma tradição histórica, mesmo na própria Igreja. Estou convencido que neste ponto particular há um qualquer enviesamento: a Igreja sempre foi teocêntrica, pelo menos até um passado recente; e é sabido que o Papa Pio XII não nutria qualquer simpatia sobre a Declaração Universal dos Direitos do Homem, pela qual Schooyans tem tão alta consideração, pois considerava-a, com razão, infecta de jacobinismo; foi mesmo preciso esperar mais de uma década, até ao pontificado seguinte, para João XXIII subscrever a declaração, numa versão católica. Schooyans poderá queixar-se de uma deriva ideológica, mas não será ela o florescer lógico de uma sementeira daninha?
Michel Schooyans denuncia o papel da ONU na tentativa de se arvorar a um poder supranacional, ganhando predomínio sobre legislações nacionais, reduzindo a soberania das nações a uma função residual, excedendo cada vez mais o seu mandato, numa concentração de poder sem precedentes. A chamada busca do “consenso” que suporta este tipo de medidas não significa uma adesão de nações e povos a princípios-base e a valores comuns, mas decisões que configuram a tirania da maioria rumo a um governo mundial, que será implementado pelo suborno, chantagem, ou pela força se necessário. Para esse objectivo contribuem a imposição do Tribunal Penal Internacional, o acosso das ONGs, os “novos direitos humanos”, o aborto, a homossexualidade e respectiva adopção parental, as “famílias” de “modelos” múltiplos, a eutanásia, a ideologia de género, tendo já entreaberto as portas à pedofilia. Apresenta-se assim como um novo absolutismo iluminado, alicerçado no relativismo, no cientificismo darwinista, no holismo new age, que visa não só revogar os direitos humanos originalmente proclamados em 1948, como também redefinir o Direito (os capítulos XI a XIV, que analisam a concepção jurídica de Hans Kelsen, adoptada pela ONU, são particularmente preocupantes). E, por fim, fomentar uma nova religião mundial, pois a globalização exige também o domínio da consciência individual.
Na terceira parte do livro, Schooyans afirma que esta deriva ideológica da ONU, por inconsistente e antinatural está destinada ao fracasso, com o contributo da oposição firme da Igreja e dos católicos. Diz textualmente no capítulo XVIII: «A Igreja tem um serviço urgente a prestar à comunidade humana: chamar a sua atenção sobre os desvios da ONU. A sua valentia não deixará de despertar os restantes valentes.» Seria interessante saber o que ele pensa sobre isso, agora que se passaram quase 20 anos sobre a publicação e as posições da ONU têm saído fortalecidas, enquanto a Igreja permanece muda. Tanto mais que, com o pontificado de Bergoglio, muitos católicos consideram que o cheiro a enxofre invadiu já o próprio Vaticano...
A face oculta da ONU não será assim tão oculta, pois a sua actividade está publicada e ao alcance de quem a quiser ler, revelando a agenda que lhe está subjacente; uma agenda nem sempre óbvia para quem acompanha nos media as medidas avulsas e espaçadas no tempo, pouco escrutinadas e explicadas por quem teria a obrigação de o fazer. A missão de paz e segurança da ONU (a tal aparência benigna a um olhar superficial), serve agora uma lógica malthusiana e internacionalista da hidra renascida, mais tenebrosa que nunca. A sua segurança destina-se a proteger a nova ordem mundial da elite globalista, e a sua paz será a paz dos cemitérios.

La nueva concepción de los derechos humanos se origina en una concepción reductora del hombre. El clima hiperliberal actual lleva al individualismo, al paroxismo. Estamos viviendo una revolución antropológica: el hombre ya no es una persona, un ser abierto a los demás y a la trascendencia; ahora es un individuo, condenado a buscarse verdades, a buscarse una ética. Es una unidad de fuerza, de interés y de disfrute.
Esta antropología fundamentalmente materialista, traerá como resultado una concepción puramente empírica de los valores. Ya no podría haber lugar para normas morales objetivas, comunes a todos los hombres; ya no habría valores que se impusieran al hombre porque son deseables en si. Ya no es posible, por ejemplo, inclinarse ante la dignidad de todo hombre, sea el que sea. De ahora en adelante, los nuevos valores, que Gérard-François Dumont denomina valores invertidos, provienen de cálculos utilitarios regulados por consenso. Estos valores invertidos se manifiestan en la frecuencia de las elecciones que se observa entre los individuos. Los valores son en última instancia lo que provoca placer a los individuos. Ahora bien, estos valores no pueden hacer otra cosa que dividir a los hombres, porque por mimetismo yo desearé lo que el otro desea. Así pues, este concepto del valor, a final de cuentas no solo resulta destructivo para el tejido social, sino que también constituye los prolegómenos de una nueva barbarie.
Con semejante concepción del hombre y de los valores, los derechos humanos terminan por ser reducidos a un catálogo movible de reivindicaciones puntuales de los individuos, se obtienen por consensos sucesivos y son reflejo de una aritmética de los intereses. Dado que ya no hay valores objetivos, y que de todas maneras la razón no es capaz de conocerlos, el valor en su concepción invertida resulta, a final de cuentas, lo que satisface las pasiones del hombre. En resumen, el derecho fundamental del hombre es el derecho de satisfacer sus pasiones individuales, y esto es lo que deberá ratificar el derecho positivo.
La felicidad no depende ya del bien común, puesto que ya no existe más que el bien particular. Estamos en el punto opuesto del humanismo tradicional, que sostiene que la felicidad depende del bien común, gracias al cual la Ciudad atenta a la justicia general, y se esfuerza por ofrecer a todos y cada uno de sus miembros las mejores condiciones de realización personal. Con la ruina de la universalidad de los derechos humanos, la felicidad ha quedado limitada a ser el residuo del placer, e incluso de los placeres individuales.

10 de decembro de 2017

Revolta na «Bounty»

John Barrow
Revolta na «Bounty» (1831)
The Eventful History of the Mutiny and Piratical Seizure of H.M.S. Bounty (1831)

Quando um livro tem na capa a frase «texto integral» não consigo ultrapassar a desconfiança, e esta edição da Europa-América confirmou as minhas suspeitas. Procurei o texto inglês – é fácil encontrá-lo, pois caiu no domínio público há muito tempo – e os problemas começaram logo na primeira página; decidi então fazer uma leitura simultânea e comparada das duas versões.
A «Nota do Editor» da versão portuguesa não corresponde ao «Prefácio» da edição original de 1831 – mas isso seria um mal menor. O primeiro capítulo, no original, faz um resumo das viagens dos navegadores ingleses aos Mares do Sul na segunda metade do séc. XVIII, sobretudo à ilha de Otaheité (ou Taiti), como introdução à narrativa; descreve o contacto com os indígenas, o seu carácter e os costumes, tal como os encontraram Samuel Wallis e James Cook, e termina na comparação com o seu estado lamentável à data deste livro, pelo qual o autor responsabiliza a influência dos missionários. Assim se preenchem cerca de 40 páginas que a versão da Europa-América omite completamente, pois inicia-se no capítulo II. O título dos capítulos foi alterado; o resumo dos capítulos, ao início de cada um deles, sob a numeração, apenas se encontra no índice do original, num texto mais sucinto e completamente diferente. Os próprios capítulos são depois seccionados e subintitulados segundo os pontos do resumo, o que não acontece na versão inglesa; também os parágrafos mais longos são divididos. Tudo isto denota uma tendência para a simplificação do texto por parte do editor e da tradutora, ou, em alternativa, do texto que lhes serviu de original; a tradução terá sido feita a partir do francês, dado que uma referência às «Ladrone Islands», no texto inglês, é dada nesta edição como «Ilhas dos Larrons» (a sua designação em francês), quando poderia ter sido traduzida por «Ilhas dos Ladrões» – o nome português pelo qual as Ilhas Marianas eram inicialmente conhecidas.
É de lamentar, também, a eliminação de inúmeras notas de rodapé do autor – nomeadamente uma, de grande extensão, onde se faz a comparação da viagem da chalupa de Bligh com outros casos aparentados, e se descreve a viagem do português Diogo Botelho Pereira, no séc. XVI, a bordo de uma minúscula fusta, entre a Índia e Lisboa –, que resultam no empobrecimento da obra. Mais ainda, a quase totalidade dos poemas transcritos ao longo do livro (com destaque para Lord Byron e Nessy Heywood – irmã de Peter Heywood, aspirante na Bounty e personagem central deste livro) foram pura e simplesmente suprimidos, pelo que esta estranha junção de um processo jurídico com excertos de poesia romântica, perde-se completamente. Por fim, no último capítulo, dedicado à ilha de Pitcairn, onde a Bounty encontrou o seu destino em 1790, a tradução termina abruptamente, após fazer a história dos últimos nove amotinados, saltando directamente para a «Conclusão», omitindo mais de uma trintena de páginas onde se descreve em pormenor as condições de vida e qualidades da pequena sociedade fixada na referida ilha, ao longo das décadas seguintes; uma sociedade modelar, profundamente religiosa e pacífica, segundo o testemunho registado por alguns dos ocasionais visitantes, como os capitães Beechey (em 1825) e Waldegrave (em 1830), sobre a qual pairava uma única ameaça – a importação e influência de ideias vindas do exterior. Suprimida foi também uma «Nota Complementar» de nove páginas, no final do livro. Entre omissões e inexactidões, a fidelidade ao texto original e a fluência da tradução poderia ser considerada bastante satisfatória, não fosse este corte à socapa de 25 a 30 por cento do texto da edição original. Se a ideia era dar uma versão condensada, numa edição de preço acessível, o leitor devia ser avisado do facto, e não ludibriado com a chancela «texto integral»...
Quanto à história do motim, o livro de John Barrow foi o primeiro a dar um relato completo do evento, conhecido até então por excertos e referências, entre as quais se destacava o poema The Island (1823) de Lord Byron, aqui frequentemente citado (mas geralmente ignorado nesta edição E-A). Desde então muitos outros escritores e escrevinhadores, bem como a indústria cinematográfica, glosaram e romantizaram este tema apetitoso de homens ocidentais que voltam costas à sua civilização e às suas obrigações para rumar a um autêntico paraíso terrestre, onde homens e mulheres viviam na mais feliz inocência (mas que não durou muito – nem para os amotinados, nem para os ilhéus).
A missão da Bounty era transportar rebentos da árvore-do-pão desde o Taiti até às Antilhas, para introduzir esta cultura, que estava na base da alimentação dos taitianos, nas ilhas atlânticas. A viagem durou dez meses; dada a impossibilidade de passagem pelo Cabo Horne houve necessidade de fazer um desvio pelo Cabo da Boa Esperança, mas decorreu sem outros contratempos de monta. O veleiro permaneceu ancorado cerca de seis meses e, poucos dias depois de iniciar o regresso, estalou a revolta, liderada pelo imediato Fletcher Christian. O tenente William Bligh, que comandava a Bounty, e outros dezassete marinheiros, foram colocados pelos amotinados numa chalupa e abandonados no mar alto, mas conseguiram concluir, à custa de um enorme sofrimento, uma viagem de 41 dias e mais de 3600 milhas náuticas que os levou até Coupang, na costa de Timor, onde encontraram auxílio. Daí rumaram a Batávia, nas Índias Holandesas e regressaram a Londres. Bligh foi promovido pelo Almirantado e encarregado de retomar a missão destinada à Bounty, que cumpriu com êxito. Simultaneamente, foi designada a fragata Pandora para se dirigir ao Taiti e trazer os amotinados à justiça; reuniu 14 dos 25 revoltosos, mas o navio naufragou e só dez chegaram a julgamento em tribunal marcial, em Portsmouth.
Em lugar do livro de aventuras que se poderia supor, para quem já conhecia a história pelas adaptações, este Revolta na «Bounty» é conduzido, maioritariamente, como um inquérito, citando fontes e testemunhas, confrontando documentos contraditórios, tentando perceber motivações e consequências, e fazer luz sobre um caso cujos contornos careciam de nitidez.

É a mais de um título digno de nota o facto de o comandante da Pandora fazer tão pouca referência aos revoltosos. Reproduziremos agora um outro relatório, da autoria, segundo toda a verosimilhança, do tenente Corner, terceiro-oficial da Pandora, acerca de cuja autenticidade não restam dúvidas. Confirma, de maneira retumbante, que o capitão Edwards era pessoa desprovida da mais normal humanidade.
"Três homens da Bounty – Coleman, Norman e M’Intosh – foram libertados dos ferros e mandados para as bombas. Os outros ofereceram os seus préstimos e suplicaram que lhes dessem possibilidade de salvarem a vida, mas em lugar de os atender, o comandante mandou colocar duas sentinelas suplementares sobre a cobertura da prisão com ordem de abater o primeiro que tentasse livrar-se das grilhetas. Não vendo a mínima possibilidade de escaparem à horrível sorte que os esperava, os presos começaram a orar e prepararam-se para enfrentar o seu destino. Todos esperavam que, de um momento para o outro, o navio se fizesse em bocados, pois o leme e parte do cadaste já tinham sido arrancados."
O navio naufragou e não se pouparam esforços para salvar a tripulação, mas o relato atribuído ao tenente Corner precisa:
"Ninguém se preocupou com os presos, ao contrário do que escreve o autor da Pandora's Voyage, embora Mr. Heywood suplicasse ao capitão Edwards que tivesse piedade deles, quando este passou sobre a cobertura do compartimento para se atirar ao mar. Já então o navio adornara sobre o flanco e tinha o lado de bombordo da frente inteiramente submerso. Por felicidade, o mestre de armas, acidental ou voluntariamente, deixou cair as chaves dos ferros pelo alçapão de entrada, que entreabrira ao passar para se lançar por sua vez à água. Eis como os presos iniciaram a sua própria libertação. Ajudou-os quase imediatamente o generoso segundo-contramestre, William Moulter, que, com grande perigo de vida, se agarrou às braçolas e moveu as compridas barras que prendiam a vigia, gritando: "Ou vos liberto, ou vou para o fundo convosco!"
"Não era sem tempo: mal abrira a vigia, o navio afundou-se e ficaram apenas de fora as pontas do mastro grande. O mestre de armas e as sentinelas afundaram-se com ele e nunca mais foram vistos. Era apavorante ouvir os gritos e as súplicas dos que se afogavam! Decorreu mais de meia hora até os sobreviventes serem recolhidos pelas embarcações. Mr. Stewart, John Sumner, Richard Skinner e Henry Hillbrant afogaram-se, todos com as mãos ainda imobilizadas pelas algemas.
"Mr. Heywood foi um dos três últimos a saírem da prisão, onde a água já entrara pelo alçapão. Saltou para o mar, agarrou-se a uma prancha e dirigiu-se a nado para uma pequena ilha arenosa à flor da água, a três boas milhas de distância. Um escaler recolheu-o no caminho, praticamente nu. James Morrison tentou seguir o exemplo do seu jovem companheiro e, embora com as mãos ainda presas pelas algemas, conseguiu manter-se à superfície até ser recolhido."
À primeira vista, esta narrativa parece, evidentemente, incrível. É certo que os homens são, às vezes, surpreendidos a comportar-se como monstros, mas em momentos em que os cega um ódio louco. Aqui, nem isso acontecia. A sorte dos infelizes prisioneiros devia, pelo contrário, impressionar a piedade e os sentimentos humanitários do seu carcereiro.
No relato feito pelo médico de bordo consta que, logo que se soltaram as escoras, os cabos, as capoeiras das galinhas e todos os objectos susceptíveis de flutuar, "os prisioneiros foram, por ordem, libertos dos ferros." Sim, gostaríamos muito de saber que oficiais, em tão crítica situação, se resignariam a ser testemunhas de tamanha crueldade sem se rebelarem contra a manutenção a ferros daqueles desgraçados, ante a evidência de o navio estar prestes a afundar-se! Mas ver-se-á mais adiante, graças às declarações de Mr. Heywood, que os cativos ficaram encarcerados na «Boceta de Pandora» e que não houve exagero no comportamento ignóbil atribuído ao capitão Edwards.
É um momento apavorante aquele em que um navio adorna pela última vez antes de se afundar! Quando a Pandora submergiu, o médico diz que "a equipagem mal teve tempo de se lançar ao mar e de soltar um tremendo grito de pavor. O mais horrível, a princípio, foram os brados dos que se afogavam, mas à medida que se afundavam e perdiam consciência, os gritos extinguiram-se progressivamente."

18 de novembro de 2017

Minha Luta

Adolf Hitler
Minha Luta (1925-1928)

O célebre Mein Kampf, esteve oficialmente fora de circulação por 70 anos. Quando voltou ao prelo, veio acrescentado de uma enormidade de notas de rodapé, para «fazer o contraditório»; a edição do Instituto de História Contemporânea de Munique acrescentou-lhe cerca de 5000 – um cuidado que não é tomado na publicação de outras obras consideradas extremistas. Entretanto, os críticos relembraram quanto a obra é enfadonha, mal escrita e pouco clara. Demasiado empenho com um livro que «não presta», dir-se-ia...
A qualidade da escrita é uma questão premente; no entanto, é preciso ter em consideração a história das traduções do livro para inglês, as quais se tornaram na fonte de outras traduções, devido à inacessibilidade em língua alemã. A primeira tradução foi feita em 1933, pelo britânico Edgar Dugdale, motivada pela chegada de Hitler ao poder, mas cobre menos de metade do texto original. Em 1936, o próprio governo alemão decidiu patrocinar uma nova tradução, a cargo de James Murphy, outro britânico, que entrou em desacordo com os contratantes e abandonou a tarefa em 1938; os alemães terminaram a tradução por sua conta e publicaram-na no final dessa década. É a designada edição Satalag, de muito má qualidade. Até 1939 surgiram mais quatro novas versões. Regressado a Inglaterra, James Murphy reviu e completou a sua tradução, que foi publicada em 1939; esta versão foi reeditada várias vezes e é a mais difundida na internet.
Também uma equipa liderada por Alvin Johnson efectuou uma tradução, publicada pela Reynal & Hitchcock, hostil ao conteúdo do livro e ao nacional-socialismo. Outra editora estado-unidense, Stackpole and Sons, produziu uma versão dirigida por William Soskin e Ludwig Lore, dois judeus, mas foi retirada, depois de um processo por infracção dos direitos de autor.
Entretanto a casa Houghton-Mifflin, que editara a versão de Dugdale, decidiu publicar uma nova tradução, mais completa, por Ralph Manheim, com introdução do jornalista Konrad Heiden, dois judeus alemães. É, sem surpresa, uma versão descaradamente hostil, publicada em 1943, e que se tornou na tradução «oficial», citada por académicos e jornalistas.
Como muitos alemães da época, Adolf Hitler escrevia com orações longas, em parágrafos extensos e complexos. Temos assim duas traduções – a de Murphy e a de Manheim – que se agarram em demasia a esse estilo, com prejuízo do leitor. Pior ainda, o esforço de tradução é pobre, e redunda por vezes em frases difíceis, incoerentes ou incompreensíveis, onde se perde a fluidez do original alemão. Murphy toma frequentemente «liberdades de tradução» que resultam em termos e expressões injustificadas, quando não deixa de fora frases completas. Manheim, mais literal, não é por isso mais inteligível. À excepção da de Murphy, todas as outras traduções contêm comentários hostis, que comprometem a imparcialidade do trabalho dos tradutores. Daqui se poderá concluir que as traduções foram propositadamente desfocadas para dificultar a leitura. Resta mencionar a recente tradução de Thomas Dalton, que se propôs restaurar o texto original, sem enviesamentos. Apesar de tudo, Minha Luta não deixa de ser um documento histórico de grande importância, para entender o primeiro quartel do século no contexto centro-europeu, e uma oportunidade rara de testemunhar o pensamento, antes da chegada ao poder, de um dos homens mais influentes do seu tempo.
O livro surgiu originalmente em duas partes; a primeira, de 1925, subintitulada «Retrospectiva», é maioritariamente autobiográfica e versa sobretudo a juventude do autor: da sua permanência em Viena, elabora uma análise minuciosa às condições políticas e sociais do império austro-húngaro nos primeiros anos do século XX; depois, a chegada a Munique, o combate nas trincheiras na Grande Guerra e, por fim, a análise exaustiva das causas da derrocada alemã no desfecho do conflito, servem de pretexto para um extenso enquadramento e análise que lhe permitem apresentar o pano de fundo para a sua opção política, que acabou por desaguar – quase por acaso – num partido recém-criado, que se viria a transformar no NSDAP. Em 1928 foi publicada a segunda parte, «Movimento Nacional-Socialista», na qual Adolf Hitler sistematiza o seu pensamento político; os cinco capítulos iniciais, mais do que um autêntico programa de governo, tratam da doutrina para uma ordem nova, propondo uma revolução de mentalidades e a construção de uma nova sociedade. Depois retoma a narrativa histórica no ponto em que terminara a primeira parte, em 1920, para descrever a ascensão triunfal do partido na sociedade alemã, a génese das SA, e outras questões relativas à natureza da organização e da estratégia partidária, que vai intercalando com mais análise e doutrina política.
Nas edições posteriores o livro adquiriu a forma definitiva. As vendas de Mein Kampf, inicialmente modestas, foram crescendo ao longo dos anos como uma bola de neve. Do milhão e meio de cópias vendido em 1933, passou a mais de 10 milhões em 1943, com tradução em 16 línguas. Mesmo depois da sua proibição, em países ditos «democráticos», o Mein Kampf continuou a ser editado em Inglaterra e EUA (onde vende mais de 15 mil exemplares ao ano) e, em edições não autorizadas, um pouco por todo o mundo (como no Brasil, onde a edição da Centauro é considerada a melhor em língua portuguesa), acompanhadas de um cortejo de protestos e de medidas repressivas. Já nos países árabes e da Ásia, livres dos constrangimentos dos tribunais bávaros, a obra foi um imenso sucesso, tendo há muito ultrapassado os 125.000 exemplares na Índia, ou os 100.00 durante os poucos meses em que esteve à venda, em 2005, na Turquia. Mesmo hoje em dia, depois de ter caído no domínio público, em 1 de Janeiro de 2016, a impressão do livro continua a ser impedida pelo quadro legal de muitas «democracias», a começar pela Alemanha. E percebe-se a razão...

O que mais que tudo e com mais insistência me fazia refletir no exame do parlamentarismo era a falta evidente de qualquer responsabilidade individual dos seus membros. O Parlamento toma qualquer decisão — mesmo as de conseqüências mais funestas — e ninguém é por ela responsável, nem é chamado a prestar contas.
Pode-se, porventura, falar em responsabilidade, quando, após um colapso sem precedentes, o governo pede demissão, quando a coalizão se modifica, ou mesmo o Parlamento se dissolve?
Poderá, por acaso, uma maioria hesitante de homens ser jamais responsabilizada?
[...]
Negando a autoridade do indivíduo e substituindo-a pela soma da massa presente em qualquer tempo, o princípio parlamentar do consentimento da maioria peca contra o princípio básico da aristocracia da natureza; e, sob esse ponto de vista, o conceito do princípio parlamentar sobre a nobreza nada têm a ver com a decadência atual de nossa alta sociedade.
Para um leitor de jornais judeus é difícil imaginar os males que a instituição do controle democrático pelo parlamento ocasiona, a não ser que ele tenha aprendido a pensar e a examinar o assunto com independência. Ela é a causa principal da incrível dominação de toda a vida política justamente pelos elementos de menos valor. Quanto mais os verdadeiros chefes forem afastados das atividades políticas, que consistem principalmente, não em trabalho criativo e produção, mas no regatear e comprar os favores da maioria, tanto mais a atuação política descerá ao nível das mentalidades vulgares e tanto mais essas se sentirão atraídas para a vida pública.
Quanto mais tacanho for, hoje em dia, em espírito e saber, um tal mercador de couros, quanto mais clara a sua intuição lhe fizer ver a sua triste figura, tanto mais louvará ele um sistema que não lhe exige a força e o gênio de um gigante, mas contenta-se com a astúcia de um alcaide e chega mesmo a ver com melhores olhos essa espécie de sapiência que a de um Péricles. Além disso, um palerma assim não precisa atormentar-se com a responsabilidade de sua ação. Ele está fundamentalmente isento dessa preocupação, porque, qualquer que seja o resultado de suas tolices de estadista, sabe ele muito bem que, desde muito tempo, o seu fim está escrito: um dia terá de ceder o lugar a um outro espírito tão grande quanto ele próprio. Uma das características de tal decadência é o fato de aumentar a quantidade de "grandes estadistas" à proporção que se contrai a escala do valor individual. O valor pessoal terá de tornar-se menor à medida que crescer a sua dependência de maiorias parlamentares, pois tanto os grandes espíritos recusarão ser esbirros de ignorantões e tagarelas, como, inversamente, os representantes da maioria, isto é, da estupidez, nada mais odeiam que uma cabeça que reflete.
Sempre consola a uma assembléia de simplórios conselheiros municipais saber que têm à sua frente um chefe cuja sabedoria corresponde ao nível dos presentes. Cada um terá o prazer de fazer brilhar, de tempos em tempos, uma fagulha de seu espírito; e, sobretudo, se Sancho pode ser chefe, por que não o pode ser Martinho?
Mas, ultimamente, essa invenção da democracia fez surgir uma qualidade que hoje se transformou em uma verdadeira vergonha, que é a covardia de grande parte de nossa chamada "liderança". Que felicidade poder a gente esconder-se, em todas as verdadeiras decisões de alguma importância, por trás das chamadas maiorias!
Veja-se a preocupação de um desses salteadores políticos em obter a rogos o assentimento da maioria, garantindo-se a si e aos seus cúmplices, para, em qualquer tempo, poder alienar a responsabilidade. E eis aí uma das principais razões por que essa espécie de atividade política é desprezível e odiosa a todo homem de sentimentos decentes e, portanto, também de coragem, ao passo que atrai todos os caracteres miseráveis — aqueles que não querem assumir a responsabilidade de suas ações, mas antes procuram fugir-lhe, não passando de covardes pulhas. Desde que os dirigentes de uma nação se componham de tais desprezíveis, muito depressa virão as conseqüências. Ninguém terá mais a coragem de uma ação decisiva: toda desonra, por mais ignominiosa, será aceita de preferência à resolução corajosa. Ninguém mais está disposto a arriscar a sua pessoa e a sua cabeça para executar uma decisão temerária.
Uma coisa não se pode e não se deve esquecer: a maioria jamais pode substituir o homem. Ela é sempre a advogada, não só da estupidez, mas também da covardia, e assim como cem tolos reunidos não somam um sábio, uma decisão heróica não é provável que surja de um cento de covardes.

29 de outubro de 2017

O Descobrimento do Tibet

António de Andrade
O Descobrimento do Tibet (1921)

O padre jesuíta António de Andrade foi o primeiro europeu a chegar ao Tibete, em 1624. Voltou lá no ano seguinte, para estabelecer uma missão e escreveu várias cartas sobre a sua viagem àqueles confins asiáticos. A primeira foi publicada em Lisboa em 1626, com o título Novo Descobrimento do Gram Cathayo, ou Reinos de Tibet, e está disponível na Biblioteca Nacional Digital. A segunda, segundo afirma Esteves Pereira – o organizador desta edição patrocinada pela Academia das Ciências de Lisboa, em 1921 – ainda não fora, até à data da deste livro, publicada na íntegra. Entre 1626 e 1631, o Novo Descobrimento do Gram Cathayo foi traduzido para espanhol, italiano, francês, polaco e flamengo; a Carta Segunda, foi também traduzida em espanhol e italiano, em 1626 e 1628, respectivamente. A transcrição das cartas é mais ou menos fiel ao português do século XVII, e ainda hoje se consegue entender sem grandes dificuldades, tanto mais que certas formas foram adaptadas à ortografia que vigorava em 1921.
A viagem iniciou-se em Agra, no norte da Índia, e seguiu por Deli e Lahore, em direcção a Srinagar de Uttarakhand, e aos Himalaias, baseada na informação obtida junto dos mouros caxemirenses, segundo a qual existiriam reinos cristãos ao norte. Descreve ainda o antagonismo das autoridades locais perante estrangeiros que, não sendo mercadores, se tornavam suspeitos de espionagem, e as dificuldades da passagem pelas montanhas de neves perpétuas, com risco da própria vida. Depois das peripécias da viagem, chega enfim ao Tibete, onde é recebido pelo rei e pela rainha, que o tratam com benevolência. A carta refere-se depois à viagem de regresso e a um ataque ao reino acabado de visitar, por quatro reinos vizinhos, que os tibetanos, exímios guerreiros, repeliram com facilidade. A primeira carta termina com curiosas considerações sobre o Tibete e as suas gentes, que o jesuíta português considera promissoras quanto a uma futura evangelização.
A segunda carta faz um resumo da viagem anterior e prossegue com as considerações sobre as terras tibetanas e os seus reinos, usos e costumes, agora de modo muito mais pormenorizado. Descreve também as tentativas de conversão que António Andrade exerceu sobre o rei e a família real, bem como algumas discussões teológicas que manteve com os lamas tibetanos, e o modo como estabeleceu a missão nessa cidade de Chaparangue.

Tem estes Lamaz uarios costumes, dos quais apontarej breue mente algũs neste lugar. Em certo dia do anno jejuão, e chamão ao tal jejum Nhunâ, que quer dizer jejum de grande aperto, porque nelle não comem mais que hũa so uez, nem bebem o seu Cha, que pera elles he de grande mortificação. Neste dia não falão palaura, que formem com a lingua, mas por assenos se declarão; quando adoecem os animais, como caualos, vacas, e carnejros, etc. hũa casta destes Lamaz rezão sobre os ditos animais certas oraçõis polla menhã e a tarde, mas com os dentes fechados e na mesma forma falão com a gente sem os abrir em quanto dura a doença nos animais. Tem alguns outros dias de jejum, a que chamão Nhenâ, que quer dizer jejum ordinario, neste almoção duas vezes polla menhã; comem ao meyo dia carne, e tudo o mais que tem; da hi por diante comem doce, passas, leite, etc. e tudo em quanta quantidade querem, e achão que jejuão por não comerem carne, mais que hũa so uez; e bebem muitas o seu Cha, como nos outros dias, e dão por rezão, que o beber do Cha muitas vezes he couza muj agradauel a Deos, porque com elle se lhe fazem as linguas mais expeditas e promptas pera rezar.
Quando rezão costumão a tanger com trombetas de metal, mas entre ellas, uzão cada dia de outras feitas de braços e pernas de homens mortos; uzão tambem muito de contas feitas de cauejras, e perguntandolhe eu a rezão deste costume, respondeu o Lamâ Irmão del Rey, que uzauão das ditas trombetas quando fazião oração a Deos, pera que ouuindoas a outra gente, viesse em conhecimento do que muito cedo auia de uir a ser, e que polla mesma rezão rezauão por contas de ossos de mortos, e bebião por cauejras como por copos, posto que não tão de ordinajro, pera que não fosse menos frequente a lembrança da morte, que costuma concertar, e ordenar a uida, do que era o rezar pollas contas, que lha representauão de contino trazendoas entre mãos; e o beber pollas cauejras lhe seruia de gostarem menos das couzas da uida, antes lhe ficauão assim seruindo mais de triaga spiritual pera as almas contra os vicios e paixões da carne, que de sostentação corporal pera os corpos.
Não costuma a gente secular frequentar as suas Igrejas, que quasi sempre estão fechadas, sómente concorre a ellas em dous dias do anno, em que estão abertas, e então as correm três uezes em roda, e no cabo entrão a fazer reuerencia ás Imagens: os Lamaz as frequentão mais, porque no tempo dos frios por espaço de quatro ou sinco mezes, estão de contino nestes templos rezando hora em huns, hora em outros, por muitas horas, e nelles comem, e dormem; fazem grandes reuerencias neste tempo de sua oração, ajoelhandose (digo debruçando-se) muito a miude: o Canto he bem entoado, mas não aleuantão muito as uozes. No cabo concluem estas suas juntas com disputas solemnes, em que ha presidentes e defendentes, e tratasse sobre as cousas de seu liuro; ellas acabadas se recolhem a suas particulares estancias; mas primejro fazem uarias dansas polla terra uestidos com Quimões da China, com coroas na cabeça, toalhas nas mãos, ou campainhas, que tocão todos a compasso. O dansar he muito composto, e modesto; não entrão porem nestas danças, senão alguns Lamaz moços com outros, que aprendem pera o ser. Hũa uez disse eu ao Lama Irmão del Rey, que estranhaua entrarem Lamaz em danças ainda que mancebos, e que os nossos erão tão graues, que por nenhum cazo da uida se uerião nelles acção menos composta e indigna de seu estado: respondeu, que os seus Lamaz mancebos naquelle acto erão figura dos Anjos, que por isso leuauão coroas nas cabeças, e trajo differente; e que assim como nós os representauamos cantando e dançando (porque nesta forma os tinha uisto em certo painel do nacimento de Christo Senhor nosso), assim entrauão estes seus Lamaz em figura de Anjos.

24 de outubro de 2017

Nas Montanhas da Loucura

H. P. Lovecraft
Nas Montanhas da Loucura (1936)

Howard Phillips Lovecraft, hoje considerado como um dos mais carismáticos e influentes escritores de literatura fantástica do séc. XX, não publicou um único livro durante a sua vida (se descontarmos a péssima edição de The Shadow Over Innsmouth, em 1936). A sua obra – ensaio, uma novela, várias noveletas, contos e poesia – nem sempre impressa em revistas conhecidas, como a Astounding, a Amazing ou a Weird Tales, espalhou-se por edições amadoras ou jornais regionais, e parecia destinada ao esquecimento, após a sua morte prematura. O empenho dos escritores August Derleth e Donald Wandrei, pertencentes ao seu círculo de amigos e admiradores, resultou na criação da Arkham House, editora destinada inicialmente à publicação dos trabalhos de H. P. Lovecraft. Assim, os livros de Lovecraft são, por norma, colectâneas de contos, mais ou menos organizadas segundo os vários ciclos em que é possível dividir a sua obra.
Nas Montanhas da Loucura trata de uma expedição geológica e paleontológica ao continente antárctico, onde é destruída num ataque por seres primevos que encarnam o próprio mal. O relato é contado em retrospectiva, por um dos sobreviventes, como um apelo desesperado na tentativa de evitar novas incursões àquele continente. Descreve então a descoberta de uma interminável cidade ciclópica, abandonada e semiarruinada, em parte preservada pela camada de gelo glacial, velha de muitos milhões de anos, construída ao longo de eras geológicas por seres vindos do espaço, cuja história deixaram talhada em baixos-relevos omnipresentes nos salões, galerias e túneis que o narrador e um acompanhante percorreram, antes de fugir da ameaça de morte certa.
O tema das viagens ao continente desconhecido já o havia encontrado em Edgar Allan Poe (As Aventuras de Arthur Gordon Pym com o qual este livro partilha uma ligação) e Jules Verne (A Esfinge dos Gelos também relacionado com Arthur Gordon Pym) e, de forma algo diferente, em Vladimir Obrutchev (Terra de Sannikof e Viagem à Plutónia), uma vez mais, Verne (Viagem ao Centro da Terra) ou Arthur Conan Doyle (O Mundo Perdido). No entanto, H. P. Lovecraft é diferente de todos eles, pois traz uma dimensão de horror primordial e sobrenatural, que raramente passa das alusões veladas e das meias-palavras dos personagens, deixando à imaginação do leitor o trabalho de ligar os pontos para completar o desenho.
Os restantes três contos que compõem o livro – A Casa Abandonada, Os Sonhos na Casa Assombrada e O Depoimento de Randolph Carter – são, na minha opinião, mais próximos do horror à Edgar Allan Poe, e cruzam referências (remetem para particularidades de Mountains e também para títulos de outros contos que ainda não li) deixando entrever todo um universo mitológico que H. P. Lovecraft terá criado para os seus contos.

O efeito da visão monstruosa era indescritível, pois parecia fora de dúvida que em sua origem atuara alguma diabólica violação da lei natural. Ali, num altiplano infernalmente antigo, a nada menos de 6.000 metros de altitude, e num meio climático vedado à vida desde uma era pré-humana a não menos de quinhentos mil anos, estenda-se quase até o limite da visão um entrelaçamento ordeiro de pedras que só o desespero da legítima defesa mental poderia deixar de imputar a uma causa consciente e artificial. Havíamos descartado anteriormente, para todos os efeitos de cogitação séria, qualquer teoria de que os cubos e muralhas das encostas não tivessem origem natural. Como seria de outra forma, se o próprio homem mal poderia ser diferenciado dos grandes macacos à época em que aquela região sucumbira ao presente reino ininterrupto de morte glacial?
No entanto, agora a razão parecia irrefutavelmente abalada, pois aquele emaranhado ciclópico de blocos aplainados, recurvados e dispostos em ângulos possuía características que invalidavam todo e qualquer refúgio seguro. Era, com inescapável clareza, a cidade blasfema da miragem, numa realidade crua, objetiva e inelutável. Aquele prodígio maldito tivera, afinal, um fundamento material — uma camada horizontal de poeira de gelo pairara, suspensa, na atmosfera superior e aquela chocante sobrevivência de pedra havia projetado sua imagem para o outro lado das montanhas, obedecendo às leis simples da reflexão. O fantasma, naturalmente, chegara a nós distorcido e exagerado, exibindo, ademais, coisas que a fonte real não continha. Agora, porém, vendo-lhe a fonte real, nós a julgávamos ainda mais tétrica e ameaçadora que sua imagem distante.

13 de outubro de 2017

Música ao Longe

Érico Veríssimo
Música ao Longe (1935)

Sobre Música ao Longe, é o próprio Érico Veríssimo quem, no Prólogo, datado de 1961, o considera um livro medíocre, apressado (foi escrito em menos de um mês para concorrer a um prémio literário), embora não desprovido de méritos. O tema, diz, poderia ter comportado uma certa grandiosidade, e a história exigia um tratamento sério e de certa profundidade. A razão disto, segundo o autor, deve-se ao facto de ter recorrido ao diário da jovem Clarissa, sem experiência suficiente para avaliar o drama da família, nem para compreender as suas causas profundas.
Clarissa é a mesma personagem do livro de 1933, agora regressada a Jacarecanga como professora recém-formada. O drama da sua família – os Albuquerques, outrora poderosos e ilustres –, mais do que o aperto financeiro, pois o pai perdeu terras e gado, restando-lhe apenas a casa que acabará por hipotecar, é também o da decadência física e moral dos seus parentes. Música ao Longe é o confronto do desencanto pessoal de Clarissa, a jovem adulta na posse de um novo entendimento, vertido no diário, com os dias despreocupados da sua infância. São os horizontes estreitos da sua terra, que lhe prometem uma vida para a qual não consegue encontrar sentido, e Vasco, o primo considerado a ovelha-negra da família que aguarda o momento certo para partir dali. Entre os dois nascerá uma certa cumplicidade, originada no entendimento mútuo e no desconforto que a ambos assola.
Este livro acabou por ganhar o Prémio de Romance Machado de Assis, instituído em 1934, ao qual concorreu; se todos os livros “medíocres” fossem como este, certamente não ficávamos mal servidos.

Nicolina entra trazendo os pires com compota de pêssego.
— Não tem outra sobremesa? — pergunta João de Deus.
— Esta é a única.
— Por que não mandas buscar uma goiabada ali no Café do Pires?
O olhar de D. Clemência é uma resposta eloquente. João de Deus compreende.
— Ele também não quer fiar?
A mulher sacode afirmativamente a cabeça.
João de Deus empurra o prato, amarfanha o guardanapo com uma expressão de raiva na cara bronzeada, ergue-se de repente e começa a passear dum lado para outro, resmungando:
— Corja! Me negarem crédito... Logo pra mim! Pra mim!
Cleonice, de cabeça baixa, come a sua compota. D. Clemência olha para o marido. Clarissa nem ousa erguer os olhos.
Como uma fera enjaulada, João de Deus caminha da mesa até a janela, com as mãos nos bolsos e a cabeça baixa. Vai e volta, de lá pra cá, de cá pra lá...
— Patifes! O velho Olivério já matou a fome de toda essa cachorrada e agora um filho dele não tem crédito nem para uma lata de goiabada! Patifes!
D. Clemência sacode a cabeça abandonadamente. Cleonice pede mais uma metade de pêssego.
— O Pires! — continua a resmungar o bisneto do general Zé Pedro. — O Pires que andava de roupa rasgada. Papai chamou ele, deu casa, deu comida e depois ainda por cima emprestou dinheiro pra esse ordinário se estabelecer. Sim senhor! Hoje vai-se buscar uma lata de goiabada e ele diz: "Não se fia!" O Pires!
— Mas, João de Deus — observa a mulher — o coitado tem razão, já devemos cinco meses de fornecimento, também o homem não pode viver de promessas...
João de Deus estaca de repente. Olhos chispantes, ele cresce para a mulher:
— Tu também? Dando razão àquele porco? Era só o que faltava! O Pires!

Li anteriormente:
Caminhos Cruzados (1935)
Clarissa (1933)
Olhai os Lírios do Campo (1938)

10 de outubro de 2017

Tesla y la Conspiración de la Luz

Miguel A. Delgado
Tesla y la Conspiración de la Luz (2014)

O nome de Nikola Tesla está associado ao campo magnético alternado, que tornou possível a electricidade na forma de corrente alterna. Na sua época, Thomas Edison, talvez o mais prolífico inventor de todos os tempos, insistia erradamente na via da corrente contínua. Tesla era, talvez, mais visionário que Edison (com quem chegou a trabalhar) – veja-se, por exemplo as suas experiências com a ressonância –, mas, em lugar de se ter dedicado a grandiosos projectos que nunca foram levados à prática, se tivesse seguido o caminho de Edison, que se concentrou na massificação das suas invenções, talvez hoje o seu nome fosse mais reconhecido (a sua personalidade excêntrica e solitária também não o ajudou). Há mesmo quem pense que, se tivesse sido levado a sério, a sua física nos teria conduzido a um mundo diferente...
Este livro leva-nos a um 1931 paralelo, a uma Nova Iorque onde as ideias visionárias de Tesla se converteram em realidade e transformaram os EUA numa potência tecnológica (ainda) mais avançada. O Titanic não se afundou, a Grande Guerra foi ganha com a ajuda de autómatos norte-americanos, Trotsky está à frente da União Soviética, a energia eléctrica sem fios (transmitida por ondas) é abundante e barata, os céus são cruzados por enormes fusos – os “oceânicos” – dirigidos por feixes eléctricos, existem tantos veículos citadinos terrestres como aéreos, a iluminação nocturna é dada por uma aurora artificial, e o controlo do clima é uma realidade. O tempo é de prosperidade e segurança (a crise bolsista de 1929 não passou de um leve solavanco), porém, tudo isto é atribuído a Thomas Edison, herói nacional, detentor de um poderosíssimo conglomerado industrial, partilhado por Marconi e J.P. Morgan Jr., enquanto Tesla vive isolado e na pobreza.
A história gira em torno de Edgar Kerrigan, um jovem de 19 anos, um estafeta de entregas porta-a-porta, que no seu trabalho tripula um “aéreo”, mas ambiciona vir a ser piloto de “oceânicos”. Tem por Edison uma admiração ilimitada, mas as circunstâncias vão fazê-lo presenciar o ruir do relato em que sustentava a sua vida e as suas ambições. Com a morte de Edison há, aparentemente, quem pretenda desmascarar o mito e devolver a Tesla o lugar que lhe é devido, colocando em risco interesses instalados. Mas sob esse pretexto está uma gigantesca conspiração que visa apenas tomar o poder e exercer a vingança.
Tesla y la Conspiración de la Luz é, assim, uma interessante incursão no subgénero da história alternativa, ou da realidade paralela, com personagens históricas conhecidas mas onde os eventos divergem daqueles que conhecemos. Trata-se do primeiro romance de Miguel Ángel Delgado, escritor e jornalista, divulgador da figura e do legado de Tesla e co-comissário de uma grande exposição, apresentada em Madrid no mesmo ano da publicação deste livro, dedicada ao génio do inventor sérvio.

Otro sonido metálico, similar al anterior, le hizo volverse instantáneamente, cuando estaba empezando a sentarse de nuevo en su terrestre. Esta vez había sonado más cerca, en la otra fila. Y no se extinguió de manera inmediata. Quedó algo, un leve zumbido, casi imperceptible, que permaneció en el ambiente, al límite de lo audible. Un sonido que simulaba desaparecer cuando le prestabas atención, pero que volvía a estar presente en cuanto lo abandonabas, como hacían los gatos, en su infancia, cuando los perseguía.
De improviso, el mismo sonido se multiplicó, más cerca, más lejos, chasquidos metálicos que recorrieron las formaciones de autómatas. Y la suma de los zumbidos, apenas perceptibles por sí solos, formó una masa perfectamente audible, creciente, de mecanismos en espera...
... que ya no era lo único que surgía de allí. También había movimiento.
Al principio, fue más una intuición que una visión real. Hasta que percibió claramente cómo una de las decenas de cabezas que formaban en aquel almacén se alzaba y giraba con lentitud. A los ruidos mecánicos, se unieron otros prolongados, neumáticos, de articulaciones desperezándose, de sistemas recolocándose para abandonar su estado de hibernación.
Y finalmente, la luz. Desde un rincón, cuando los primeros focos de los grandes e inhumanos ojos se prendieron. Y luego, como una marea que fuera extendiéndose por la oscuridad, de las formaciones enteras que comenzaban a elevarse, mientras las máquinas abandonaban sus posiciones semiflexionadas para alzarse sobre sus poderosas patas.
Demasiado, en todo caso, para Jonathan, que logró superar la parálisis de su boca abierta y su cuerpo inmovilizado para saltar, no sin antes perder la linterna por el camino (no la necesitaba, el almacén entero era ya un hervidero de luz, ruidos y vida mecánica), hasta su terrestre y arrancarlo.
Nunca le pareció más lento aquel vehículo, apenas una modificación de los que los oficiales empleaban en los campos de golf, ridículo mientras intentaba alcanzar, con dificultad, el portalón de salida. No se atrevió a mirar hacia atrás; los retrovisores apenas dejaban ver otra cosa que grandes pechos metálicos, brazos potentes con ametralladoras y tenazas, cabezas grotescamente pequeñas con los focos de los ojos mirando en la misma dirección que él, la de salida.
Finalmente, ganó el exterior. Por un momento, se engañó pensando que todo seguía igual, que lo ocurrido en aquel almacén era tan sólo una alucinación, un momentáneo error que pronto sería devuelto al estado previo, el que debía tener. Pero no tardó en comprender que no sería así, que estruendos similares estaban surgiendo de los otros almacenes. Y, de hecho, pudo ver cómo las primeras formas levemente humanoides, pequeñas por la distancia, estaban saliendo del más alejado.
Procedió a girar el vehículo para moverse en el sentido contrario, en busca de refugio en el edificio del regimiento. Pero, en ese momento, el terrestre se detuvo, quedó muerto por más que intentara girar un volante que se había quedado inmóvil como una piedra. Las pequeñas luces de posición y el foco delantero se apagaron.
Y no sólo ellos: la entera iluminación del complejo dejó de funcionar. Todo lo que podía abarcar su vista se desvaneció. Hacia delante, fue como si una mano oscura descendiese sobre las instalaciones de Fort Dix, un viento helado suficiente para apagar de una sola vez miles de pequeñas velas de cumpleaños. Ante los ojos asombrados de Jonathan, la mancha de negrura se extendió más y más hacia el horizonte, y pronto sólo algunos resplandores a lo lejos, lo que llegaba hasta allí del gran conglomerado de la metrópolis de Nueva York, parecía arañar algo de la repentina oscuridad.

5 de outubro de 2017

The Fall of Western Man

Mark Collett
The Fall of Western Man (2017)

Mark Collett foi dirigente da juventude do British National Party, director publicitário do partido, um dos responsáveis pela sua revista «Identity», e apoiante da saída da Grã-Bretanha da UE. The Fall of Western Man retoma o tema do iminente colapso do Ocidente europeu, numa argumentação clara e sensata, por vezes circular e retro-alimentada para evidenciar a interligação dos temas, em que cada um dos capítulos é um verdadeiro tratado de análise sociológica.
Mark Collett explica a queda do Ocidente europeu como um reflexo de um assalto dirigido por aqueles que designa como «enemies of the West» a um alvo puramente mental. Assim, torna-se necessário entender o funcionamento da mente para entender como ela pode ser manipulada e atacada. Daí a descrição da sua estrutura: em primeiro lugar o id, subconsciente, ligado aos instintos e aos impulsos, regido pelo princípio do prazer, exigindo satisfação imediata sem consideração pela realidade ou pela lógica. Depois o ego, ou princípio da realidade, moderador do id, procura o modo viável de satisfazer o id, evitando a dor, as consequências negativas, ou colocar a sobrevivência em risco, independentemente de qualquer avaliação moral. Por fim, o superego, apreendido pela educação paternal e comunitária, controla os impulsos do id através de um enquadramento moral e social, funcionando em dois níveis separados: a consciência e o ideal do ego. A consciência abarca o sistema de valores e as normas sociais, levando à culpa ou vergonha cada vez que o id reclama a transgressão destes limites; quanto ao ideal do ego incorpora os modelos de referência que desejamos emular, e dá uma imagem ideal do indivíduo que aspiramos ser.
Demonstra depois a importância de um forte superego, a forma como ele foi alcançado, no seio da família nuclear como espaço formativo do indivíduo e base da sociedade ocidental, e o seu papel decisivo na partilha e transmissão de valores morais e da tradição, de pais a filhos, unificador dessa mesma sociedade coesa e forte, uma fórmula de sucesso que permitiu ao Ocidente europeu atingir os seus mais notáveis feitos. A família nuclear, como espaço fulcral no fornecimento de modelos de referência à criança e ao jovem, através da figura maternal e bondosa da mãe, bem como da figura disciplinadora e autoritária do pai, proporcionou como tal o reforço do superego colectivo, que se traduziu nas virtudes do sacrifício pessoal em prol do interesse comunitário, espelhadas no esforço, na dedicação, e na ordem. O ataque ao Ocidente europeu teria de passar, forçosamente, pelo ataque à família, dirigido precisamente ao seu âmago mais profundo: a mente.
A chave residiu na libertação do id e no enfraquecimento do superego, numa tarefa paulatinamente levada a cabo durante algumas décadas, focada na acção sobre as novas gerações, separando-as do seu passado e da sua História, destruindo assim o futuro da civilização. A ruptura deu-se em várias frentes simultâneas conjugadas nesse único objectivo. Em primeiro lugar na promoção de famílias monoparentais, desequilibrando assim o espaço formativo da criança com a ausência de um dos modelos de referência. Depois na destruição da rede de segurança que existiu no passado sob a forma de barreiras e enquadramentos sociais que nunca deixavam a criança desprotegida face a essa fatalidade: os líderes comunitários e as figuras disciplinadoras ligadas à escola, à igreja ou à autoridade, como origem de modelos de referência, foram desacreditados. A seguir, pela substituição de modelos positivos por modelos negativos, maioritariamente dados pelos media na promoção de “celebridades” e afins, com a mesma mensagem de sempre: o hedonismo e o prazer como prioridade, a supremacia do id – o que teve como consequência o exacerbar do individualismo, e a atomização do indivíduo.
Destaca-se também o papel do feminismo nesta derrocada do Ocidente europeu, ao longo de três capítulos que lhe são dedicados. Trata-se de um ataque à mulher, menosprezando o seu lugar na sociedade, levando-a a emular os atributos masculinos numa competição sem sentido, em busca de uma falsa igualdade, uma competição de consequências nefastas na taxa de natalidade e no desenvolvimento mental dos filhos, devido à alteração do papel maternal no apoio ao crescimento e formação da geração seguinte, ao mesmo tempo que induz a divisão e a desconfiança entre os sexos. Ao estabelecer uma dicotomia em que homens e mulheres são inimigos naturais, o feminismo visa a destruição da unidade familiar, base da civilização ocidental. Os filhos tornaram-se indesejados, vistos como um gasto de tempo e dinheiro que sobrecarrega a mulher, uma barreira entre ela e os seus objectivos materialistas. O feminismo visa não apenas atacar a feminilidade e a maternidade, mas também o homem e o casamento, proporcionando a quebra da natalidade como mais um meio de ataque ao futuro do Ocidente, num momento em que uma emigração descontrolada, e culturalmente agressiva, rapidamente desequilibra a balança populacional e faz o resto do trabalho.
Estes são os temas tratados na primeira metade do livro e, para não sobrecarregar este texto, direi apenas que a segunda metade é ainda mais assertiva no desmascarar dos processos infames movidos contra a nossa essência civilizacional, embora nada do que é descrito seja propriamente novidade para quem já conseguiu romper o muro da desinformação e descodificar o marxismo cultural.
The Fall of Western Man é um livro essencial e só espero que alguém tenha a ousadia de o traduzir e publicar em língua portuguesa. Para o ler em inglês basta ir ao sítio www.thefallofwesternman.com, que também o disponibiliza gratuitamente.

The rise of the id is present before the collapse of any civilisation. Every great nation or civilisation that has collapsed has embraced the cult of individualism, and the individual has been increasingly motivated by the pursuit of endless and immediate pleasure.
This is of course exactly what the enemies of Western man have planned. The enemies of the West understand the complex working of the human mind and realise that to break a community and turn that community into a group of disparate individuals all that needs to be done is to convince those people to give in to their immediate desires.
Even with immigration and multiculturalism, the enemies of the West knew that Western man would still have a fighting chance of survival – in fact better than a fighting chance. Even if Western man was outnumbered by hostile cultures and peoples, as long as Western man retained his own culture and sense of community he could always fight back – and if history has taught us one thing, it is that Western man would likely have prevailed.
It was not merely enough to flood the Western world with different groups of immigrants who viewed the West with envious eyes. The enemies of the West knew that the Western community spirit – the Western superego – must also be broken in order to ensure there would be no fight back or resistance.
The last thing Western man will see is the look of insane mirth upon the faces of the Western revellers as Western civilisation, culture and traditions collapse and are lost forever. Thousands of years of heritage will be lost in a matter of decades as the last generations of Western man compete in a desperate struggle to live for the moment and satisfy their every primal need with no thought for the future or the wider consequences their actions might have for the West.
The enemies of the West know that the rise of the id precedes the fall of Western man, and they sit rubbing their hands and biding their time as the final days of the West rapidly approach.
[...]
The death of the Western superego precedes the fall of Western man and the destruction of Western civilisation itself. The period we are now living in can be described as the end times for Western civilisation and the next few generations of Western man will bear witness to the death of the West. The conditions for a perfect storm are now in place and in that storm the West will be washed away and consigned to the history books – if indeed history books are ever written again in the absence of Western man.
The death of the West will not come about in one magnificent yet tragic final battle that eclipses all others that have gone before it. The death of the West will not occur in some 'race war' or in a series of great conflicts where battle lines are clearly drawn and armies clash in a final epic military engagement. The death of the West will be a creeping one – like a cancer that eats away at an organism, slowly weakening the suffering creature over a long period of time. The death of the West will be akin to a death of a thousand cuts rather than one significant blow.
Many have theorised that eventually immigrants that have come to settle in the West and whose communities have grown in size will one day turn on Western man – that foreign communities will form a fifth column within the West and initiate a great conflict on Western soil. This theory surmises a racial or religious conflict on a grand scale between Western man and those immigrants who have come to settle in the West yet retained a culture that is hostile to that of Western culture.
This theory of a great war is not only misguided, but is also highly damaging to the cause of saving Western man. It relies on the idea that Western man is who he once was and that he still has his mind, body, soul and heart intact. The idea of a great racial or religious war – and one where Western man would be victorious – is actually laughable. This war will never take place, but instead the death of the West will take place house by house, street by street, town by town and city by city, like a creeping shroud falling over Western nations.

23 de setembro de 2017

Tortilla Flat

John Steinbeck
Tortilla Flat (1935)

Tortilla Flat é o nome de um morro nos arrabaldes pobres de Monterey, na costa californiana, habitado por hispânicos, italianos, índios e outros desfavorecidos da escala social. Aqui conhecemos Danny, vadio e alcoólico, a quem calha em herança um par de casas degradadas. Pilon, seu amigo de desventura, faz um trato de arrendamento da casa mais pequena, que ambos sabem não ser para cumprir, pois vivem na penúria e cada dólar que conseguem arranjar serve para comprar vinho. Sucessivamente vão sendo apresentados Pablo, Jesus Maria, o Pirata e os seus cinco cães, Big Joe Portagee, outros tantos vadios, ao longo de capítulos que descrevem situações diferentes mas conclusivas, numa estrutura semelhante aos episódios de uma série televisiva. Entretanto a segunda casa arde, e todos se mudam para a casa de Danny.
Tortilla Flat, que em português foi titulado como O Milagre de S. Francisco ou Boêmios Errantes, é uma novela escrita num registo leve, com descrições cheias de humor. As personagens, quase todas dependentes do vinho, arranjam as desculpas mas esfarrapadas para justificar perante si próprias a cedência ao seu vício, tentando convencer-se que, quando fazem algo em seu próprio benefício, o fim último dos seus actos é o altruísmo. Não se pense contudo que Steinbeck atribuiu as estas personagens um mau carácter, ou que quis gozar com a pobreza. Pelo contrário, estas almas simples não regateiam a amizade e também são capazes de se entreajudar com pouco que podem oferecer.

Time is more complex near the sea than in any other place, for in addition to the circling of the sun and the turning of the seasons, the waves beat out the passage of time on the rocks and the tides rise and fall as a great clepsydra.
Danny began to feel the beating of time. He looked at his friends, and saw how with them every day was the same. When he got out of his bed in the night and stepped over the sleeping paisanos, he was angry with them for being there. Gradually, sitting on the front porch, in the sun, Danny began to dream of the days of his freedom. He had slept in the woods in summer, and in the warm hay of barns when the winter cold was in. The weight of property was not upon him. He remembered that the name of Danny was a name of storm. Oh, the fights! The flights through the woods with an outraged chicken under his arm! The hiding places in the gulch when an outraged husband proclaimed feud! Storm and violence, sweet violence! When Danny thought of the old lost time, he could taste again how good the stolen food was, and he longed for that old time again. Since his inheritance had lifted him, he had not fought often. He had been drunk, but not adventurously so. Always the weight of the house was upon him; always the responsibility to his friends.
“Tea made from yerba buena will be good,” Pilon suggested. “If you will go to bed, Danny, we will put hot rocks to your feet.”
It was not coddling Danny wanted, it was freedom. For a month he brooded, stared at the ground, looked with sullen eyes at his ubiquitous friends, kicked the friendly dogs out of his way.
In the end he gave up to his longing. One night he ran away. He went into the pine woods and disappeared.

Li anteriormente:
A um Deus Desconhecido (1933)
O Inverno do Nosso Descontentamento (1962)

10 de setembro de 2017

Las Fuerzas Extrañas

Leopoldo Lugones
Las Fuerzas Extrañas (1906)

A obra de Leopoldo Lugones estende-se à poesia, ao ensaio, aos estudos académicos e também à narrativa breve, onde foi um brilhante percursor dessa tradição argentina à qual se dedicou durante mais de quarenta anos. Esta faceta está reunida, de forma não exaustiva, em quatro livros publicados entre 1905 e 1924.
Las Fuerzas Extrañas é um desses livros, composto por doze contos seguido de uma cosmogonia esotérica, escritos entre 1897 e 1906; três ou quatro contos seguem uma linha de proto-FC com afinidades a H. G. Welles e os restantes debruçam-se sobre questões parapsicológicas ou metafísicas, ou remetem para o campo mitológico ou lendário, alguns deles em aproximação ao universo de Edgar Allan Poe. Cada um destes doze contos, segundo o prefácio, explora temas caros à teosofia. O texto final tem características diferentes: é a transcrição de um relato, em dez lições, a que se somam um prólogo e um epílogo dados pelo ouvinte desse relato, destinado a fornecer o enquadramento teórico geral para os textos que o precedem.
Las Fuerzas Extrañas vinha referenciado como um pioneiro da ficção-científica argentina. Mas não será bem assim – no cômputo geral insere-se melhor na literatura fantástica de tradição romântica. De grande utilidade é o “estudo preliminar”, à laia de prefácio, de Pedro Luis Barcia, que analisa detalhadamente cada um dos textos e fornece o adequado contexto.

Apenas dos o tres especies de aves cuyas alas no tenían plumas, sino escamas como las de las mariposas, y cuyo tornasol preludiaba el oro inexistente, remontaban su vuelo por la atmósfera fosfórica.
Era ella tan elevada, y el vuelo tan vasto, que las llevaba cerca de la luna. El arrebato magnético del astro solía embriagarlas; y como éste poseía entonces una atmósfera en contacto con la terrestre, afrontábanla en ímpetu temerario yendo a caer exánimes sobre sus campos de hielo.
Una vegetación de hongos y de líquenes gigantes arraigaba en las aún mal seguras tierras; y no lejanos todavía del animal, en la primitiva confusión de los orígenes, algunos sabían trasladarse por medio de tentáculos; tenían otros, a guisa de espinas, picos de ave, que estaban abriéndose y cerrándose; otros fosforecían a cualquier roce; otros frutaban verdaderas arañas que se iban caminando y producían huevos de los cuales brotaba otra vez el vegetal progenitor. Eran singularmente peligrosos los cactus eléctricos que sabían proyectar sus espinas.
Los elementos terrestres se encontraban en perpetua inestabilidad. Surgían y fracasaban por momentos disparatadas alotropías. La presión enorme apenas dejaba solidificarse escasos cuerpos. Las rocas actuales dormían el sueño de la inexistencia. Las piedras preciosas no eran sino colores en las fajas del espectro.
Así las cosas, sobrevino la catástrofe que los hombres llamaron después diluvio; pero ella no fue una inundación acuosa, si bien la causó una invasión del elemento líquido. El agua tuvo intervención de otro modo.

1 de setembro de 2017

Revolta Contra o Mundo Moderno



Julius Evola
Revolta Contra o Mundo Moderno (1934)

Há menos de três anos o nome de Julius Evola era para mim absolutamente desconhecido. Uma série de artigos publicados num semanário prenderam-me a atenção e, desde então, devo ter lido centenas de páginas em artigos e excertos da sua obra. Estas leituras não só o transformaram, a meus olhos, no mais importante pensador do séc. XX, como me levaram a outros filósofos – René Guénon, por exemplo nas referências aí contidas.
Datado de 1934 – e certamente objecto de revisões em edições posteriores, pois refere-se factos sucedidos após essa data – Revolta Contra o Mundo Moderno é, como eu já sabia, uma análise demolidora da modernidade, das suas crenças e fundamentos, da causas da involução e degradação civilizacional que atinge o Ocidente em geral e a Europa em particular; Evola descreve as características da civilização tradicional e os factores que, uma vez postos em marcha, a arrastam fatalmente à queda. Por isso não existe aqui qualquer réstia de esperança; identificado tempo presente como a Idade última, que antecederá uma restauração das condições primordiais (em Evola o tempo é cíclico e não linear), não nos caberá viver o novo amanhecer. Neste combate de causa perdida, «preocupemo-nos só com uma coisa: manter-nos de pé num mundo de ruínas».
Essa será a precisa razão porque Julius Evola continuará a ser um ilustre desconhecido: num mundo em que o materialismo triunfou sobre a espiritualidade, as suas ideias e os valores que promove parecem deslocados, ultrapassados, para além da “razoabilidade”ninguém gosta de más notícias, o discurso do “progresso” parece muito mais atraente. Daí a profunda cortina de silêncio sobre o autor e respectiva obra, a desvalorização e o enviesamento – basta ler o que qualquer enciclopédia corriqueira dirá sobre ele, suficiente para afugentar quem lá tiver chegado por acaso –, quando não o apagamento puro e simples.

É uma palavra de ordem que faz parte das convenções da historiografia moderna a exaltação polémica da civilização do Renascimento contra a medieval. Se não se tratasse de uma das numerosas sugestões difundidas na cultura moderna pelos dirigentes da subversão mundial, teria de se ver nisso a expressão de uma incompreensão típica. Se, depois do fim do mundo antigo, houve uma civilização que tenha merecido o nome de Renascimento foi precisamente a Idade Média. Na sua objectividade, no seu «virilismo», na sua estrutura hierárquica, na sua soberba elementaridade anti-humanística, tão frequentemente penetrada de sacro, a Idade Média foi como que uma nova chama do espírito da civilização una e universal das origens. A verdadeira Idade Média surge-nos sob características clássicas, e em nada românticas. O carácter da civilização que se lhe sucedeu tem um significado totalmente diferente. A tensão que durante a Idade Média tinha tido uma orientação essencialmente metafísica degrada-se e muda de polaridade. O potencial anteriormente recolhido sobre a direcção vertical — para cima, como no símbolo das catedrais góticas — descarrega-se no presente na direcção horizontal, para fora, produzindo, por sobressaturação de planos subordinados, fenómenos capazes de sensibilizar o observador superficial: na cultura a irrupção tumultuosa de múltiplas manifestações de uma criatividade quase totalmente privada de toda a base tradicional ou meramente simbólica, e portanto profana e dessacralizada; no plano exterior, a expansão quase explosiva dos povos europeus no conjunto de todo o mundo no período dos Descobrimentos, das explorações e das conquistas coloniais, que corresponde mais ou menos ao do Renascimento e do Humanismo. São os efeitos de uma libertação de forças idêntica à que se produz durante a decomposição de um organismo.
Pretendeu-se ver no Renascimento, em muitos dos seus aspectos, um retomar da civilização antiga, descoberta de novo e reafirmada contra o sombrio mundo do cristianismo medieval. Trata-se de um grave equívoco. O Renascimento só retomou do mundo antigo formas decadentes, e não as das origens, que estavam penetradas de elementos sacros e suprapessoais, ou então retomou-as desprezando completamente estes elementos e utilizando a herança antiga numa direcção absolutamente diferente. No Renascimento a «paganidade», de facto, serviu essencialmente para desenvolver a simples afirmação do Homem, para fomentar uma exaltação do indivíduo, que passa a inebriar-se com as produções de uma arte, de uma erudição e de uma especulação privadas de qualquer elemento transcendente e metafísico.
[...]
No seu sentido mais geral, o humanismo pode-se dizer que é o estigma e a palavra de ordem de toda a civilização que se libertou das «trevas da Idade Média». Com efeito, esta civilização já só conhecerá o homem: é no homem que começarão e acabarão todas as coisas; é só no homem que assentam os céus e os infernos, as glorificações e as maldições que agora serão conhecidas. É este mundo — o outro do verdadeiro mundo — com as suas criações da febre e da sede, com as suas vaidades artísticas e os seus «génios», com a selva das suas máquinas e das suas fábricas e, por fim, com os seus chefes populares, que constituirá o limite para o homem.
A primeira forma sob a qual aparece o humanismo é o individualismo. Este caracteriza-se pela constituição de um centro ilusório fora do centro verdadeiro, como pretensa prevaricação de um «Eu» que é simplesmente o mortal do corpo — e como construção por meio de faculdades puramente naturais, que agora criam e defendem, através das artes e ciências profanas, aparências diferentes que, fora deste centro falso e vazio, não têm a menor consistência; verdades e leis essas marcadas pela contingência e pela caducidade próprias de tudo o que pertence ao mundo do devir.
Daí, um irrealismo radical, uma radical organicidade em tudo o que é moderno. Tanto por dentro como por fora, já nada será vida, tudo será construção: ao ser agora extinto, substituem-se em todos os aspectos o «querer» e o «Eu», como que num sinistro sustentáculo racionalista e mecanicista de um corpo morto. Tal como no pulular vermicular das putrefacções, desenvolvem-se então as mil conquistas, as mil superações e as mil criações do homem novo. Abre-se o caminho a todos os paroxismos, a todas as manias inovadoras e iconoclastas, a todo um mundo de uma retórica fundamental em que, tendo-se substituído o espírito pela imagem do espírito, já não conhecerão limites as fornicações incestuosas do homem nos campos da religião, da filosofia, da arte, da ciência e da política.