26 de xaneiro de 2017

Contos Proibidos – Memórias de um PS Desconhecido


Rui Mateus
Contos Proibidos – Memórias de um PS Desconhecido (1996)

Não tenho por hábito ler livros sobre política escritos por esquerdistas, mas este Contos Proibidos tem um rasto de lenda que me espicaçou a curiosidade. Publicado em 1996 pela Dom Quixote, o livro, da autoria de um dos fundadores do PS, rapidamente desapareceu dos escaparates para nunca mais voltar a ser reeditado; aparentemente, na "democracia consolidada" portuguesa, ainda há livros proibidos. Quanto a Rui Mateus, diz-se que deixou Portugal desde então, por uma questão de segurança pessoal, tendo como destino a Suécia e os EUA; o certo é que foi "apagado" da memória do partido que ajudou a fundar.
Contos Proibidos descreve a história do Partido Socialista, desde os tempos em que não passava de uma obscura agremiação clandestina, maioritariamente formada por burgueses exilados com ligações à maçonaria, até ao caso Emaudio no início dos anos 90, tendo por pano de fundo as constantes e pouco claras situações do financiamento partidário. Diga-se, de passagem, que foi o caso Emaudio, aqui minuciosamente explicado e dissecado, que levou o autor à ostracização pelo partido, e não a publicação deste livro.
Descrevem-se igualmente numerosas viagens e encontros no estrangeiro em que Rui Mateus, como responsável pelas relações internacionais do PS, esteve presente. Entre as mais pitorescas, estão uma viagem a Milão, em Setembro de 1977, onde foi recolher meio milhão de dólares «oferecido» pelo PSI do futuro foragido à justiça Bettino Craxi, de cuja origem e justificação não fez a mais pequena ideia (e muito menos perguntas); e também a descrição de uma viagem à República Dominicana em 1978, acompanhando Soares e outros delegados da Internacional Socialista, para ajudar à eleição de um candidato presidencial nas eleições locais, descrevendo um comício que foi uma autêntica fantochada, terminando tudo com um bom golpe militar à moda sul-americana.
Sobre a sua figura de proa, Mário Soares, é-nos descrita a sua colossal ambição, aliada a uma superficialidade ideológica e uma impreparação para o exercício do poder verdadeiramente notáveis. Particularmente impressionante é a descrição da forma como Soares, ex-militante comunista, recorde-se, concebeu o PS como um partido satélite do PCP, sem maior ambição que um conceito de "unicidade" que tomou de empréstimo a François Mitterrand; e, enquanto procurava o financiamento do PS entre os partidos social-democratas europeus inscritos na IS, na frente interna os aliados escolhidos eram Santiago Carrillo, Cuba, Roménia ou Coreia do Norte, por exemplo. É necessário compreender o que se passou no I Congresso do PS, em Dezembro de 1974, quando os infiltrados do PCP (a sucursal da União Soviética em Portugal) quase se apoderaram do partido, para interpretar a absurda viagem que Soares fez a Moscovo, duas semanas depois, para prestar vassalagem ao Kremlin – o que lhe valeu o epíteto de «Kerensky português».
Apesar de discordar frontalmente de muitos considerandos e avaliações de Rui Mateus, valorizo a descrição crua dos factos (apesar das frequentes gralhas e, até, erros de ortografia), profusamente documentada por notas de rodapé. Confirma-se que devemos agradecer a Mário Soares o ter levado os comunistas pela mão para o I Governo Provisório, após o golpe de 25 de Abril, no cumprimento de um acordo que tinha assinado com eles em 1973 em Paris, com todas as consequências que ainda hoje se fazem sentir. A situação a que Portugal chegou tem muitos responsáveis, e Mário Soares está entre os principais, apesar da "canonização" que as televisões e a generalidade da imprensa tentou promover aquando da sua recente morte.

Os incidentes do 1.º de Maio, felizmente para o PS, contribuíram para a ruptura definitiva, dado que muitos observadores internacionais, depois de tudo o que se passara até então, ainda se perguntavam porque razão quereriam ainda os socialistas celebrar o 1.º de Maio conjuntamente com o PCP. O assalto ao jornal República, a 19 de Maio, juntamente com a vitória eleitoral nas eleições para a Assembleia Constituinte seriam a «gota de água» que levaria a Europa a seguir o caminho que os EUA já tinham iniciado por sugestão de Carlucci, com o apoio dos homens de Langley contra o Departamento de Estado. Aliás o receio de alguns governos europeus de não ficar atrás dos Americanos serviria de leit motiv, para a determinação europeia. Contudo, se é evidente para muitos, mesmo muitos socialistas, que foi o discurso de Zenha que desencadeou a ruptura com o PC, não é ainda claro para a grande maioria que a mudança de Mário Soares só teria lugar após os incidentes do 1.º de Maio, no estádio com o mesmo nome. Foi a sua «vaidade» ferida, ao não o deixarem entrar na tribuna daquele estádio, impedindo-o de estar ao lado de Costa Gomes, Vasco Gonçalves e Álvaro Cunhal, para onde este se dirigira, que precipitou a sua ruptura com o PC. Até então, como comprova todo o seu comportamento até àquela data, Henry Kissinger tinha razão em o considerar o «Kerensky» português. Durante os últimos doze meses alimentara esperanças em relação ao Programa Comum com o PC, que só não se concretizara porque os comunistas o não quiseram a seu lado. «A falta deve-se unicamente aos comunistas». Senão tivesse então ocorrido tal incidente e Soares, despeitado, não passasse também ao ataque, que viria a ter como pano de fundo o conhecido slogan — «Soares e Zenha não há quem os detenha» — é provável que ainda em 1975 tivesse ocorrido uma cisão no seio do próprio Partido Socialista, com o afastamento do secretário-geral. A tal não acontecer, dada a lealdade demonstrada por Salgado Zenha, o resultado teria sido, pelo menos, a transferência do apoio americano para Sá Carneiro, que atrairia a si grande parte do movimento socialista. E, por essa via, o posterior reconhecimento do seu partido pela Internacional Socialista.
[...]
Mário Soares é quase unanimemente considerado um homem de grande coragem política. Pode ser essa a ideia que ele faz de si próprio, mas eu considero que uma mistura de «ousadia calculada» com um apurado sentido da contra-informação seria uma descrição mais adequada. Em Janeiro de 1975, o primeiro socialista a romper com o PCP seria Salgado Zenha. Entretanto e apesar de Soares só ter seguido o seu exemplo quatro meses depois seria ele que viria a ser conotado com esse rompimento curricular. O enfrentamento de Mário Soares com os comunistas é relativamente serôdio e teve lugar quando o País já se apercebera de que o PCP era minoritário. Em Novembro, Soares seria a face visível da «Resistência», mas a partir do Norte do País e com a garantia de que os serviços secretos anglo-americanos não ficariam parados. Em 1975 e 1976 Salgado Zenha abriria o caminho ao apoio económico ocidental a Portugal, mas não seria «convidado» para integrar o I Governo Constitucional. Os louros dessa tarefa viriam todos cair na mão de Mário Soares. Em 1978, enquanto primeiro-ministro, enfrentaria militares indispostos na sua visita à República Dominicana mas, além de ser primeiro-ministro, tinha o apoio do presidente Carter e chegara num avião da Presidência da República do México e sairia noutro da Presidência da República da Venezuela. Fizera também nesse ano um arriscado acordo político com o CDS, mas após obtida a cobertura de esquerda dos «ex-MES». Decidiu finalmente enfrentar Eanes em 1980, mas tinha apoios financeiros e apoiantes suficientes para arriscar e sabia de antemão que não fazê-lo representaria o fim da sua carreira política. Foi um acto de ousadia calculada, em que teria sempre a garantia de apoio dos chamados «históricos» do PS.

7 de xaneiro de 2017

Caminhos Cruzados

Érico Veríssimo
Caminhos Cruzados (1935)

Caminhos Cruzados é o segundo romance de Érico Veríssimo. Dividido em cinco partes, cada uma com o nome dos dias da semana de sábado a quarta-feira, subdivide-se depois em capítulos breves que acompanham a vida diária e as pequenas peripécias que sucedem aos seus protagonistas. Deste modo, acompanhamos gente e famílias de todos os estratos sociais, como o professor Clarimundo, que um dia há-de escrever um livro a descrever a verdade das coisas mas, por enquanto, anda a magicar no que será o prefácio; Chinita, a filha do novo-rico coronel Pedrosa, com a cabeça à roda numa vida fútil onde se tenta comparar ao que julga ser a vida das estrelas de Hollywood; Teotônio Leitão Leiria, um burguês abastado de modos ridículos; a desgraça de Maximiliano, tuberculoso entre a vida e a morte; João Benévolo, amante de leituras e de ilusões, caído no desemprego e sem dinheiro, vê a miséria montar o cerco à sua família. Entre tanta gente, destacam-se duas mulheres que, pela sua força interior, escapam a este descritivo quase caricatural: Fernanda, por oposição ao apagamento de Noel, seu amigo de infância, e D. Maria Luísa, a mulher do coronel Pedrosa, que cedo se apercebe que o dinheiro não traz a felicidade. Na impessoalidade da grande cidade, por vezes, os caminhos destas personagens cruzam-se, as decisões de uns afectam outros, justificando o título.

Mas um dia Zé Maria sonhou que a casa do coletor tinha prendido fogo e que o Madruga havia morrido queimado. Levantou-se, impressionado. Estava-se em véspera de Natal, a Loteria do Estado anunciava uma extração de dois mil contos. Zé Maria foi olhar a casa do coletor. Tinha o número 1063. Tomou uma resolução heróica. Uma vez na vida e outra na morte não fazia mal arriscar... Desgraça pouca é bobagem. Juntou a féria de três dias e foi à Agência de Loteria do Bianchi.
— O 1063 não tem... — disse o italiano.
Zé Maria ficou amolado.
— Encomende. Pago telegrama, pago tudo.
Estava nervoso. O Bianchi telegrafou. A resposta veio. O 1063 já estava vendido, mas o 3601 estava livre. Servia?
— Servia! Mande buscar urgente.
Em casa ninguém sabia de nada. O 3601 veio. Zé Maria andava preocupado. Algumas firmas ameaçavam protestar duplicatas vencidas e não pagas. O negócio estava meio parado.
Um dia Zé Maria não agüentou aquela coisa esquisita que se lhe avolumava no peito, aquela angústia, aquele peso. Contou tudo à mulher. Tinha comprado um bilhete!
— Um bilhete inteiro? Inteiro?
D. Maria Luísa levou as mãos à cabeça. Zé Maria estava aniquilado.
— Quanto custou?
— Trezentos...
D. Maria Luísa enxergava, via com nitidez os trezentos mil-réis diante dos olhos. Sentiu uma tontura. Foi para o quarto e chorou toda a tarde.
Na véspera de Natal ao anoitecer estralaram foguetes lá para as bandas da praça.
Zé Maria apareceu à porta da loja.
— É na agência do Bianchi — disse uma voz.
Assomavam cabeças às janelas. Corria gente para a rua. Contra o céu claro faiscavam os foguetes que explodiam, e as pequenas nuvens de fumaça ficavam no ar por alguns instantes...
O coração de Zé Maria começou a bater com mais força. Enfiou o chapéu na cabeça e saiu.
— Deve ser a bruta! — gritou-lhe alguém.
Zé Maria caminhava como um ébrio, os olhos turvos, a cabeça tão tonta que nem podia pensar. A uma esquina encontrou o Madruga.
— Onde vais com tanta pressa, homem?
Zé Maria afastou-o com a mão.
— Me deixa.
Madruga ficou rindo, o palito tremeu-lhe nos lábios.
— Pensas que tiraste a sorte grande, animal?
Na frente da agência do italiano Bianchi havia gente amontoada, procurando ler o número escrito no quadro-negro. Bianchi, rindo com toda a cara vermelha e enrugada, emergiu da maçaroca humana e correu para Zé Maria, de braços abertos:
— Felizardo! Felizardo! A bruta!
Zé Maria negava-se a compreender, a acreditar. Era demais. Aquilo não lhe podia acontecer. Ah! Não podia.
— Mas é a bruta. Dois mil contos! Eu mandei na loja lhe avisar!
Diante dos olhos do coronel tudo dançava: o italiano, as árvores, as pessoas... Os foguetes continuavam a subir para o céu e estouravam lá em cima, provocando ecos atrás da igreja. Agora em torno de Zé Maria havia muitas pessoas, conhecidas umas, desconhecidas outras. Ele tinha vontade de gritar. Sons confusos lhe chegavam aos ouvidos: — Parabéns! Felizardo! Qual foi o número? Nasceu empelicado! Sim senhor!
Depois que se livrou dos abraços da primeira hora, examinando com os próprios olhos o telegrama que trouxera o resultado da extração; depois que bebeu um copo d'água fria é que Zé Maria começou a se habituar à realidade maravilhosa. Quando serenou, o seu primeiro pensamento foi para o amigo: “Eu só quero é ver a cara do Madruga.” E viu. Madruga chegou, fingindo indiferença.
— Ouvi dizer que tiraste a sorte grande.
O sorriso largo de Zé Maria era uma confirmação. Madruga segurou o palito, fleumático, fez uma careta de dúvida e disse:
— Não sei se te felicito... Bem diz o ditado que a fortuna é cega. Deus às vezes dá osso pra cachorro sem dente. Dentro de dois anos não tens mais um miserável níquel. Por falar nisto, me empresta vinte mil-réis.
Zé Maria tirou do bolso uma cédula de cinqüenta.
— Leva cinqüenta! Estou louco da vida.

Li anteriormente:
Clarissa (1933)
Olhai os Lírios do Campo (1938)
O Tempo e o Vento, vol. III – O Arquipélago (1962)

3 de xaneiro de 2017

O Véu Pintado

W. Somerset Maugham
O Véu Pintado (1925)

O Véu PintadoThe Painted Veil no título original – é uma história de adultério. Ao terceiro livro deste escritor, fico com a impressão de que Somerset Maugham parece ter uma especial propensão para escavar no lado mais obscuro das fraquezas humanas, num exercício metódico de dissecação psicológica.
Kitty Garstin, uma mulher de 25 anos, bonita mas fútil, é cortejada por Walter Fane, bacteriologista numa cidade do extremo oriente, que passa um temporada em Londres. Quando Walter lhe propõe casamento ela aceita, mesmo sem gostar dele, porque, já com escassez de pretendentes, considera que aquela poderá ser a sua última oportunidade. Com o marido de volta à China (à cidade fictícia de Tching-Yen, dado que Somerset Maugham foi impedido, por um processo em tribunal, de usar Hong Kong), Kitty é seduzida por Charlie Townsend, titular de um cargo secundário na administração local. Descoberta a traição, Kitty supõe, erradamente, que Charlie se divorciaria para se casar com ela, mas o escândalo significa o fim das suas ambições profissionais, das quais ele não abdicaria por nenhum preço. Kitty vê assim gorados os seus planos e com a obrigação de acompanhar Walter a outra cidade, Mei-tan-fu, assolada pela cólera, sem compreender inteiramente os motivos que levaram o marido, que passou a tratá-la friamente, a tomar essa decisão.
Com o desenrolar do tempo e dos acontecimentos, Kitty desenvolve uma auto-repulsão pelo seu comportamento, tanto mais angustiante quanto ela reconhece o seu mau proceder e se sente incapaz de conjurar a vontade para o evitar.

Ela fitou-o sem expressão. O que ele acabava de dizer era tão inesperado que no primeiro momento o sentido de suas palavras quase lhe escapara.
– Mas de que diabo está você falando? – gaguejou.
Até para ela essa pergunta soava falso, e no rosto grave de Walter a resposta foi um olhar de desprezo.
– Quer me parecer que você me julgou um tolo maior do que sou.
Ela não sabia ao certo o que dizer. Hesitava entre uma indignada manifestação de inocência e uma furiosa torrente de censuras. Ele pareceu ler-lhe os pensamentos.
– Tenho todas as provas necessárias.
Kitty começou a chorar. As lágrimas lhe caíam sem angústia, e ela não as enxugava; o choro lhe dava certo tempo para recompor-se. Mas nenhuma ideia lhe ocorria. Ele a observava sem interesse, e sua calma assustava-a. Walter impacientou-se.
– Não é chorando que você remediará a situação.
O tom áspero e frio com que ele disse estas palavras despertou nela certa indignação. Kitty começou a recuperar o domínio de si mesma.
– Pouco me importa. Acho que você não se oporá ao divórcio. Para um homem isso não significa coisa alguma.
– Permita-me perguntar-lhe por que motivo eu me daria o menor incómodo por sua causa?
– Isso não lhe fará nenhuma diferença. Não é muito pedir que você proceda como um cavalheiro.
– Tenho demasiada consideração pelo seu bem-estar.
Ela aprumou-se na cadeira e enxugou os olhos.
– Que quer dizer com isso?
– Townsend somente se casaria com você se houvesse um processo e o caso fosse tão vergonhoso que a mulher dele se visse forçada ao divórcio.
– Você não sabe de que está falando – exclamou ela.
– Sua tola!
Havia tal desprezo na voz dele que Kitty ficou vermelha de raiva. E essa raiva talvez fosse maior porque ela nunca lhe ouvira senão palavras doces, agradáveis e lisonjeiras. Estava habituada a vê-lo submisso diante de todos os seus caprichos.
– Se você quer saber a verdade, pode saber. Ele está ansioso por casar-se comigo. Dorothy Townsend está perfeitamente disposta a conceder o divórcio, e nós nos casaremos assim que estivermos livres.
– Ele lhe disse tal coisa com essas mesmas palavras ou é você que tem essa impressão?
Os olhos de Walter brilhavam com acerba zombaria. E faziam-na sentir-se um tanto inquieta. Ela não estava muito certa de que Charlie tivesse dito aquilo com tantas palavras.
– Disse e redisse.
– Isso é mentira, e você sabe que é mentira.

Li anteriormente:
Um Gosto e Seis Vinténs (1919)
Servidão Humana (1915)