Uma Viagem ao Amazonas (1883)
Cheguei aqui absolutamente por acaso,
quando procurava o livro de Cristóbal de Acuña; sem nenhuma
referência, fiquei na esperança de me deparar com uma boa narrativa
de viagem. David Correia Sanches de Frias era para mim um nome
desconhecido, e tudo quanto descobri sobre ele está numa página
alojada no município de Arganil, de onde era natural. Nasceu em 1845
e partiu muito jovem para o Brasil, em busca de fortuna, que alcançou
graças ao trabalho e esforço pessoal. Ao mesmo tempo cultivou as
suas aspirações literárias, que levara deste lado do Atlântico,
dedicando-se à poesia, conto, romance, biografia. Regressou a
Portugal em 1880, foi-lhe atribuído o título de visconde,
integrou-se no ambiente literário da época, colaborou com jornais e
revistas, e foi co-proprietário dos jornais Capital e O
Globo.
Uma Viagem ao Amazonas não é
um livro de viagem, entendido como relato de uma experiência
pessoal; Sanches de Frias, que permaneceu no Rio de Janeiro alguns
anos, antes de se estabelecer em Belém do Pará, terá elaborado
esta ficção a partir da informação e de conversas que escutou. Os
protagonistas são Paulo da Silveira e Gastão de Mascarenhas,
estudantes em Washington que, acabado o curso, devem regressar às
suas origens; Silveira, brasileiro, convence o português Mascarenhas
a acompanhá-lo à sua terra, na Amazónia, antes de voltar a
Portugal. E temos, assim, o pretexto para as descrições das
maravilhas e prodígios da natureza, a fauna e a flora que a cada
passo surpreendem o português naquela terra estranha e primitiva, a
gastronomia e os costumes, bem como as particularidades linguísticas
e culturais daquelas gentes. Foi o reencontro com o tema do europeu
confrontado com o exotismo de outros continentes, que tantos livros
preencheu as minhas leituras, antes dos 20 anos. Não é em vão que
se faz aqui uma referência explícita: «E a verdade é que as
nossas aventuras, pequenas como são, poderiam fornecer a Júlio
Verne meia dúzia de páginas menos más.» — diz a certo ponto
Paulo da Silveira (e não é a única alfinetada ao escritor
francês). Nesta edição de Uma Viagem ao Amazonas, impressa
em Lisboa em 1883, consta uma série de belas gravuras de Armando
Pedroso, ao estilo do que era uso na época, com capa de Rafael
Bordalo Pinheiro.
Os dois amigos pararam de conversar,
vendo que o capitão dava ordens apressadas, recommendando ao homem
do leme toda a cautela e vigilancia.
O navio jogava cada vez mais.
— Orça! tudo á esquerda! carrega a
bombordo! — gritava o capitão.
Paulo e Gastão correram para elle.
— O que é isto, se me é permittida
a pergunta? — disse este.
—Uma pequena surpreza. . . nada mais.
Carrega para terra! toda a força! — bradou de novo.
Tudo isto se executou em pouco tempo.
— Prolonga o navio com a corrente,
não venha o diabo encontrar-nos a travez!
— Mas o que é isto? — insistiu
Mascarenhas.
— Olhe para alli — respondeu o
fazendeiro.
Chegaram-se todos para a borda, e
viram, com grande pasmo de Mascarenhas, uma enorme serra de agua,
franjada de escuma branca, crescendo, ennovelando-se para a direita,
como uma muralha fantastica.
De repente, como por encanto,
produziu-se um estampido medonho, como de um rouco trovão, e a
furiosa e collossal massa liquida, como que a debater-se com um corpo
gigantesco, estranho, mysterioso, subiu e desceu por tres vezes, a
poucos metros de distancia do vapor.
Este, lambido apenas por uma
insignificante parte das aguas, que escorriam dos furiosos e
altissimos vagalhões, deu ainda assim tres corcovos assustadores,
recebendo no convez uma onda consideravel, que parecia poder
submergil-o.
Mascarenhas julgou-se perdido e com
elle quasi todos os passageiros, que ficaram completamente molhados.
Quando Paulo acabou de desempastar o
cabello da testa, e tentou abrir os olhos, viu o seu companheiro
agarrado a Francisco de Andrade, que caira de costas.
As ondas fugiam em carreira vertiginosa
e a longa distancia já: o vapor balouçava-se tranquillamente, e
seguia viagem, como se nada tivesse acontecido.
— Acabou tudo, meus senhores. Vamos
despir-nos — exclamou o capitão, a sorrir-se.
— Ó sr. Mascarenhas, — disse o
fazendeiro — confesse que teve mais medo do que eu, apesar de ter
caído. Olhe que não foi de susto, creia.
—Mas. . . senhores, isto não se faz
mais depressa, nem melhor n’uma mutação de theatro! —exclamou o
mancebo. — Não comprehendo nada. Que phenomeno! que phenomeno
este! Ó Paulo, a tua terra é muito hospitaleira e amavel, mas a
continuarmos assim, arripio carreira, e vou mandar ao diabo o teu
Amazonas.
— Socega. A pororoca. . .
— O que?
— A pororoca é muito
conhecida dos nossos maritimos; pouco ha a receiar.
— Mas. . . que demonio vem a ser
isso?
— Um phenomeno, que. . . Ó capitão,
faz-me o favor de explicar ao meu amigo o que acaba de passar-se?
Um criado apresentava calices de boa
aguardente de canna, e o capitão instava pela mudança de roupa,
offerecendo para isso o seu camarim.
Abertas as mallas, e uma vez alli
entrados, começou elle:
— Todos os que navegámos por aqui
conhecemos muito bem a pororoca, mas não sabemos
explical-a. Sobre um phenomeno tão extraordinario correm diversas
versões. Uns dizem que só se pode attribuir á influencia
vulcanica, que põe momentaneamente em evolução enormes massas de
agua; outros ao simples movimento da maré, que procura conter a
corrente; uns dão a isto uma interpretação sobrenatural; outros
finalmente, attribuindo ao leito dos rios certo declive, em lugares
determinados, querem que duas correntes oppostas, onde tem entrada a
influencia de certas marés, ao encontrar-se, estabeleçam entre si
uma lucta, erguendo-se ambas, quebrando, e levando de vencida tudo
quanto se collocar ao alcance da sua furia.
— O que sei — interrompeu o
fazendeiro — é que é um perigo dos diabos. Já perdi um barco de
gado com toda a gente, que o governava.