John
Barrow
Revolta na
«Bounty» (1831)
The Eventful
History of the Mutiny and Piratical Seizure of H.M.S. Bounty (1831)
Quando um livro
tem na capa a frase «texto integral» não consigo ultrapassar a
desconfiança, e esta edição da Europa-América confirmou as minhas
suspeitas. Procurei o texto inglês – é fácil encontrá-lo, pois
caiu no domínio público há muito tempo – e os problemas
começaram logo na primeira página; decidi então fazer uma leitura
simultânea e comparada das duas versões.
A «Nota do
Editor» da versão portuguesa não corresponde ao «Prefácio» da
edição original de 1831 – mas isso seria um mal menor. O primeiro
capítulo, no original, faz um resumo das viagens dos navegadores
ingleses aos Mares do Sul na segunda metade do séc. XVIII, sobretudo
à ilha de Otaheité (ou Taiti), como introdução à narrativa;
descreve o contacto com os indígenas, o seu carácter e os costumes,
tal como os encontraram Samuel Wallis e James Cook, e termina na
comparação com o seu estado lamentável à data deste livro, pelo
qual o autor responsabiliza a influência dos missionários. Assim se
preenchem cerca de 40 páginas que a versão da Europa-América omite
completamente, pois inicia-se no capítulo II. O título dos
capítulos foi alterado; o resumo dos capítulos, ao início de cada
um deles, sob a numeração, apenas se encontra no índice do
original, num texto mais sucinto e completamente diferente. Os
próprios capítulos são depois seccionados e subintitulados segundo
os pontos do resumo, o que não acontece na versão inglesa; também
os parágrafos mais longos são divididos. Tudo isto denota uma
tendência para a simplificação do texto por parte do editor e da
tradutora, ou, em alternativa, do texto que lhes serviu de original;
a tradução terá sido feita a partir do francês, dado que uma
referência às «Ladrone Islands», no texto inglês, é dada nesta
edição como «Ilhas dos Larrons» (a sua designação em francês),
quando poderia ter sido traduzida por «Ilhas dos Ladrões» – o
nome português pelo qual as Ilhas Marianas eram inicialmente
conhecidas.
É de lamentar,
também, a eliminação de inúmeras notas de rodapé do autor –
nomeadamente uma, de grande extensão, onde se faz a comparação da
viagem da chalupa de Bligh com outros casos aparentados, e se
descreve a viagem do português Diogo Botelho Pereira, no séc. XVI,
a bordo de uma minúscula fusta,
entre a Índia e Lisboa –, que resultam no empobrecimento da obra.
Mais ainda, a quase totalidade dos poemas transcritos ao longo do
livro (com destaque para Lord Byron e Nessy Heywood – irmã de
Peter Heywood, aspirante na Bounty
e personagem central deste
livro) foram pura e simplesmente suprimidos, pelo que esta
estranha junção de um processo jurídico com excertos de poesia
romântica, perde-se completamente. Por fim, no último capítulo,
dedicado à ilha de Pitcairn, onde a Bounty
encontrou o seu destino em
1790, a tradução termina abruptamente, após fazer a
história dos últimos nove amotinados, saltando directamente para a
«Conclusão», omitindo mais de uma trintena de páginas onde se
descreve em pormenor as condições de vida e qualidades da pequena
sociedade fixada na referida ilha, ao longo das décadas seguintes;
uma sociedade modelar, profundamente religiosa e pacífica, segundo o
testemunho registado por alguns dos ocasionais visitantes, como os
capitães Beechey (em 1825) e Waldegrave (em 1830), sobre a qual
pairava uma única ameaça – a importação e influência de ideias
vindas do exterior. Suprimida foi também uma «Nota Complementar»
de nove páginas, no final do livro. Entre omissões e inexactidões,
a fidelidade ao texto original e a fluência da tradução poderia
ser considerada bastante satisfatória, não fosse este corte à
socapa de 25 a 30 por cento do texto da edição original. Se a ideia
era dar uma versão condensada, numa edição de preço acessível, o
leitor devia ser avisado do facto, e não ludibriado com a chancela
«texto integral»...
Quanto à
história do motim, o livro de John Barrow foi o primeiro a dar um
relato completo do evento, conhecido até então por excertos e
referências, entre as quais se destacava o poema The Island
(1823) de Lord Byron,
aqui frequentemente citado (mas geralmente ignorado nesta edição
E-A). Desde então muitos outros escritores e escrevinhadores, bem
como a indústria cinematográfica, glosaram e romantizaram este tema
apetitoso de homens ocidentais que voltam costas à sua civilização
e às suas obrigações para rumar a um autêntico paraíso
terrestre, onde homens e mulheres viviam na mais feliz inocência
(mas que não durou muito – nem para os amotinados, nem para os
ilhéus).
A missão da
Bounty era transportar rebentos da árvore-do-pão desde o
Taiti até às Antilhas, para introduzir esta cultura, que estava na
base da alimentação dos taitianos, nas ilhas atlânticas. A viagem
durou dez meses; dada a impossibilidade de passagem pelo Cabo Horne
houve necessidade de fazer um desvio pelo Cabo da Boa Esperança, mas
decorreu sem outros contratempos de monta. O veleiro permaneceu
ancorado cerca de seis meses e, poucos dias depois de iniciar o
regresso, estalou a revolta, liderada pelo imediato Fletcher
Christian. O tenente William Bligh, que comandava a Bounty, e
outros dezassete marinheiros, foram colocados pelos amotinados numa
chalupa e abandonados no mar alto, mas conseguiram concluir, à custa
de um enorme sofrimento, uma viagem de 41 dias e mais de 3600 milhas
náuticas que os levou até Coupang, na costa de Timor, onde
encontraram auxílio. Daí rumaram a Batávia, nas Índias Holandesas
e regressaram a Londres. Bligh foi promovido pelo Almirantado e
encarregado de retomar a missão destinada à Bounty, que
cumpriu com êxito. Simultaneamente, foi designada a fragata Pandora
para se dirigir ao Taiti e trazer os amotinados à justiça; reuniu
14 dos 25 revoltosos, mas o navio naufragou e só dez chegaram a
julgamento em tribunal marcial, em Portsmouth.
Em lugar do livro
de aventuras que se poderia supor, para quem já conhecia a história
pelas adaptações, este Revolta na «Bounty» é conduzido,
maioritariamente, como um inquérito, citando fontes e testemunhas,
confrontando documentos contraditórios, tentando perceber motivações
e consequências, e fazer luz sobre um caso cujos contornos careciam
de nitidez.
É a mais de um
título digno de nota o facto de o comandante da Pandora fazer
tão pouca referência aos revoltosos. Reproduziremos agora um outro
relatório, da autoria, segundo toda a verosimilhança, do tenente
Corner, terceiro-oficial da Pandora, acerca de cuja
autenticidade não restam dúvidas. Confirma, de maneira retumbante,
que o capitão Edwards era pessoa desprovida da mais normal
humanidade.
"Três
homens da Bounty – Coleman, Norman e M’Intosh – foram
libertados dos ferros e mandados para as bombas. Os outros ofereceram
os seus préstimos e suplicaram que lhes dessem possibilidade de
salvarem a vida, mas em lugar de os atender, o comandante mandou
colocar duas sentinelas suplementares sobre a cobertura da prisão
com ordem de abater o primeiro que tentasse livrar-se das grilhetas.
Não vendo a mínima possibilidade de escaparem à horrível sorte
que os esperava, os presos começaram a orar e prepararam-se para
enfrentar o seu destino. Todos esperavam que, de um momento para o
outro, o navio se fizesse em bocados, pois o leme e parte do cadaste
já tinham sido arrancados."
O navio naufragou
e não se pouparam esforços para salvar a tripulação, mas o relato
atribuído ao tenente Corner precisa:
"Ninguém se
preocupou com os presos, ao contrário do que escreve o autor da
Pandora's Voyage, embora Mr. Heywood suplicasse ao capitão
Edwards que tivesse piedade deles, quando este passou sobre a
cobertura do compartimento para se atirar ao mar. Já então o navio
adornara sobre o flanco e tinha o lado de bombordo da frente
inteiramente submerso. Por felicidade, o mestre de armas, acidental
ou voluntariamente, deixou cair as chaves dos ferros pelo alçapão
de entrada, que entreabrira ao passar para se lançar por sua vez à
água. Eis como os presos iniciaram a sua própria libertação.
Ajudou-os quase imediatamente o generoso segundo-contramestre,
William Moulter, que, com grande perigo de vida, se agarrou às
braçolas e moveu as compridas barras que prendiam a vigia, gritando:
"Ou vos liberto, ou vou para o fundo convosco!"
"Não era
sem tempo: mal abrira a vigia, o navio afundou-se e ficaram apenas de
fora as pontas do mastro grande. O mestre de armas e as sentinelas
afundaram-se com ele e nunca mais foram vistos. Era apavorante ouvir
os gritos e as súplicas dos que se afogavam! Decorreu mais de meia
hora até os sobreviventes serem recolhidos pelas embarcações. Mr.
Stewart, John Sumner, Richard Skinner e Henry Hillbrant afogaram-se,
todos com as mãos ainda imobilizadas pelas algemas.
"Mr. Heywood
foi um dos três últimos a saírem da prisão, onde a água já
entrara pelo alçapão. Saltou para o mar, agarrou-se a uma prancha e
dirigiu-se a nado para uma pequena ilha arenosa à flor da água, a
três boas milhas de distância. Um escaler recolheu-o no caminho,
praticamente nu. James Morrison tentou seguir o exemplo do seu jovem
companheiro e, embora com as mãos ainda presas pelas algemas,
conseguiu manter-se à superfície até ser recolhido."
À primeira
vista, esta narrativa parece, evidentemente, incrível. É certo que
os homens são, às vezes, surpreendidos a comportar-se como
monstros, mas em momentos em que os cega um ódio louco. Aqui, nem
isso acontecia. A sorte dos infelizes prisioneiros devia, pelo
contrário, impressionar a piedade e os sentimentos humanitários do
seu carcereiro.
No relato feito
pelo médico de bordo consta que, logo que se soltaram as escoras, os
cabos, as capoeiras das galinhas e todos os objectos susceptíveis de
flutuar, "os prisioneiros foram, por ordem, libertos dos
ferros." Sim, gostaríamos muito de saber que oficiais, em tão
crítica situação, se resignariam a ser testemunhas de tamanha
crueldade sem se rebelarem contra a manutenção a ferros daqueles
desgraçados, ante a evidência de o navio estar prestes a
afundar-se! Mas ver-se-á mais adiante, graças às declarações de
Mr. Heywood, que os cativos ficaram encarcerados na «Boceta de
Pandora» e que não houve exagero no comportamento ignóbil
atribuído ao capitão Edwards.
É um momento
apavorante aquele em que um navio adorna pela última vez antes de se
afundar! Quando a Pandora submergiu, o médico diz que "a
equipagem mal teve tempo de se lançar ao mar e de soltar um tremendo
grito de pavor. O mais horrível, a princípio, foram os brados dos
que se afogavam, mas à medida que se afundavam e perdiam
consciência, os gritos extinguiram-se progressivamente."
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