Italo Moriconi / vários autores
Os Cem Melhores Contos Brasileiros
do Século (2000)
Esta antologia partiu da iniciativa da
Editora Objetiva, do Rio de Janeiro, que convidou Italo Moriconi para
a selecção dos textos. Moriconi, poeta, crítico literário e
professor universitário, explica na Introdução os critérios e os
métodos utilizados, e esboça um percurso do formato conto na
literatura brasileira do séc. XX. Depois, em cada uma das secções,
faz uma brevíssima apresentação prévia; e assim, desde o início
do século até aos anos 30 numa secção, anos 40 e 50 noutra, e, a
partir dos anos 60 uma secção por década, Moriconi descreve o
“espírito dos tempos” que presidiu a cada época, não ocultando
o seu entusiasmo com o boom do conto brasileiro a partir dos
anos 60 e 70, lamentando apenas não ter conseguido incluir Guimarães
Rosa, devido a restrições de direitos de autor.
Não surpreende portanto que se
encontrem aqui quase todos os nomes consagrados da literatura
brasileira — Machado de Assis, Lima Barreto, Graciliano Ramos,
Carlos Drummond de Andrade, Érico Veríssimo, Clarice Lispector e,
certamente, outros que o meu desconhecimento não identifica — e
aqueles que faltam, como Jorge Amado, deve-se ao facto de não terem
cultivado o conto com a relevância que dedicaram ao romance ou à
poesia. Entre os presentes, alguns atravessam várias secções e são
reincidentes, por exemplo Rubem Fonseca, Lygia Fagundes Telles ou
Sérgio Sant'Anna, com três ou mais inclusões.
No entanto, pessoalmente, prefiro de
longe os contos da primeira metade do século, onde mais facilmente
encontro a literatura tal como eu a entendo. Não me convencem
determinados conceitos de realismo e visceralidade que passam pelo
recurso sistemático à linguagem rudimentar dos guetos (uma
linguagem básica para um pensamento básico que, neste português do
Brasil, se torna um idioma impenetrável), ao palavrão e às cenas
escabrosas assumidas como táctica de choque. Um animal atropelado e
esventrado pode ser muito “visceral” (literalmente), mas nunca
será inspirador; o meu conceito de arte não passa por aí. Também
não sou partidário de um tipo de literatura que anda às voltas sem
chegar a lado nenhum e se faz “difícil”, para aparentar uma
profundidade que, frequentemente, não passa de um logro. Sem
generalizar, porque evidentemente nem todos os contos mais recentes
enveredam por esses caminhos, é um pouco como, em termos
cinematográficos, comparar o cinema de Carl Th. Dryer (a
preto-e-branco, mudo) com o de Pedro Almodóvar (símbolo de uma
certa modernidade): o dinamarquês é intemporal, já o espanhol, com
o decorrer dos anos, não passará de uma nota de rodapé. Pelas
mesmas razões, neste livro, prefiro os contos mais antigos. Para o
excerto escolhi «O pirotécnico Zacarias», de Murilo Rubião.
Um
dos moços, rapazola forte e imberbe — o único que se
impressionara com o acidente e permanecera calado e aflito no
decorrer dos acontecimentos —, propôs que se deixassem as garotas
na estrada e me levassem para o cemitério. Os companheiros não
deram importância à proposta. Limitaram-se a condenar o mau gosto
de Jorginho — assim lhe chamavam — e a sua insensatez em
interessar-se mais pelo destino do cadáver do que pelas lindas
pequenas que os acompanhavam.
O
rapazola notou a bobagem que acabara de proferir e, sem encarar de
frente os componentes da roda, pôs-se a assoviar, visivelmente
encabulado. Não pude evitar a minha imediata simpatia por ele, em
virtude da sua razoável sugestão, debilmente formulada aos que
decidiam a minha sorte. Afinal, as longas caminhadas cansam
indistintamente defuntos e vivos. (Este argumento não me ocorreu no
momento.)
Discutiram
em seguida outras soluções e, por fim, consideraram que me lançar
ao precipício, um fundo precipício, que margeava a estrada, limpar
o chão manchado de sangue, lavar cuidadosamente o carro, quando
chegassem a casa, seria o alvitre mais adequado ao caso e o que
melhor conviria a possíveis complicações com a polícia, sempre
ávida de achar mistério onde nada existe de misterioso.
Mas
aquele seria um dos poucos desfechos que não me interessavam. Ficar
jogado em um buraco, no meio de pedras e ervas, tornava-se para mim
uma idéia insuportável. E ainda: o meu corpo poderia, ao rolar pelo
barranco abaixo, ficar escondido entre a vegetação, terra e
pedregulhos. Se tal acontecesse, jamais seria descoberto no seu
improvisado túmulo e o meu nome não ocuparia as manchetes dos
Jornais.
Não,
eles não podiam roubar-me nem que fosse um pequeno necrológio no
principal matutino da cidade. Precisava agir rápido e decidido:
—
Alto lá! Também quero ser ouvido!
Jorginho
empalideceu, soltou um grito surdo, tombando desmaiado, enquanto os
seus amigos, algo admirados por verem um cadáver falar, se dispunham
a ouvir-me.
Sempre
tive confiança na minha faculdade de convencer os adversários, em
meio às discussões. Não sei se pela força da lógica ou se por um
dom natural, a verdade é que, em vida, eu vencia qualquer disputa
dependente de argumentação segura e irretorquível.
A
morte não extinguira essa faculdade. E a ela os meus matadores
fizeram justiça. Após curto debate, no qual expus com clareza os
meus argumentos, os rapazes ficaram indecisos, sem encontrar uma
saída que atendesse, a contento, às minhas razões e ao programa da
noite, a exigir prosseguimento. Para tornar mais confusa a situação,
sentiam a impossibilidade de dar rumo a um defunto que não perdera
nenhum dos predicados geralmente atribuídos aos vivos.
Se a
um deles não ocorresse uma sugestão, imediatamente aprovada,
teríamos permanecido no impasse. Propunha incluir-me no grupo e,
juntos, terminarmos a farra, interrompida com o meu atropelamento.
Entretanto,
outro obstáculo nos conteve: as moças eram somente três, isto é,
em número igual ao de rapazes. Faltava uma para mim e eu não
aceitava fazer parte da turma desacompanhado. O mesmo rapaz que
aconselhara a minha inclusão no grupo encontrou a fórmula
conciliatória, sugerindo que abandonassem o colega desmaiado na
estrada. Para melhorar o meu aspecto, concluiu, bastaria trocar as
minhas roupas pelas de Jorginho, que me prontifiquei a fazer
rapidamente.
Depois
de certa relutância em abandonar o companheiro, concordaram todos
(homens e mulheres, estas já restabelecidas do primitivo desmaio)
que ele fora fraco e não soubera enfrentar com dignidade a situação.
Portanto, era pouco razoável que se perdesse tempo fazendo
considerações sentimentais em torno da sua pessoa.
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