Fernando
Pacheco de Amorim
Portugal
Traído (1975)
De
Fernando Pacheco de Amorim tinha já lido 25 de Abril – Episódio
do Projecto Global, que me impressionou vivamente. Tive agora a
oportunidade de ler Portugal Traído, talvez ainda mais
impressionante, pela quantidade de informação habitualmente
suprimida pelos historiadores do regime, quando se trata da época à
qual se refere: dos antecedentes do 25 de Abril ao PREC. Um dia,
esperemos que não tarde muito, haverá uma História oficial a rever
e corrigir...
Para
não alongar esta entrada deixo dois trechos significativos, entre os
muitos que poderia seleccionar – um mais analítico e outro mais
factual, ambos impossíveis de ignorar.
Os
Capitães não se aperceberam, ao tomarem conta do Poder, que não
passavam de continuadores da situação anterior, no que ela tinha de
negativo, como o revela com toda a evidência a pressa com que
alijaram os territórios ultramarinos. No grande banquete dos
interesses este era o prato de resistência. Os capitães não se
aperceberam que ao servi-lo estavam a obedecer ao programa dos
grandes interesses internacionais: o da Rússia Soviética, que, a
coberto da sua ideologia, apenas cumpre o seu programa imperialista e
o do clube euro-americano que, a coberto de outros mitos, cumpre
igualmente o seu.
Temos
de reconhecer que a força destes mitos é tão grande que as
populações de pequenos países, como o português, acabam por
perder o sentido dos seus legítimos interesses, bem como o
equilíbrio mental, o sentido da justa medida e até a intuição no
julgamento das situações e na avaliação do valor e da integridade
dos que aparecem na cena política a falarem em seu nome. O 25 de
Abril é, neste domínio, um exemplo pungente. A mediocridade, a
ignorância e a imbecilidade mais chapada da nova classe dirigente
parece não ter sido notada pelo homem da rua (entenda-se dos centros
urbanos), antes parece por ele ter sido adoptado como expressão no
poder da sua própria mediocridade e insuficiência. Nesta
identificação, talvez se sinta como um verdadeiro detentor do
Poder, sacrificando ao que se sabe ser um erro com dolorosas
consequências, o momentâneo prazer de dar satisfação à sua tola
vaidade. Ocupa, por isso, quando é porteiro, um lugar no Conselho de
Administração; quando é enfermeiro, um lugar na direcção do
Hospital; quando é aprendiz, o de dirigente da oficina; quando é
servente, um lugar na direcção da Faculdade; quando é militar, um
chorudo lugar, disputado a soco, num Conselho de Administração.
Como
surpreender-nos? Ao mesmo título, o coronel Vasco Gonçalves,
medíocre oficial de engenharia e desequilibrado mental, ocupa a
Presidência do Conselho; o comandante Jesuíno, oficial de baixa
patente na Marinha e inteiramente desconhecido mesmo nesta, agarra a
pasta da Comunicação Social; o major Melo Antunes, oficial igual a
tantos outros, que nem pelo saber nem pelo sabre jamais se
distinguira, produz um plano económico de emergência que não
chegou a emergir e, a seguir, sem mais aquelas, ocupa a pasta dos
Estrangeiros; um tenente-coronel farmacêutico, de uma ignorância
pasmante fora da botica do Regimento, senta-se na cadeira do
Ministério da Educação e Cultura de maneira tão desastrada que
logo é substituído por outro que apenas dele se distingue
fisicamente; e por aí fora, de cima para baixo e para todos os
lados, pois em todos os postos de importância na vida do País se
encontram militares medíocres, porteiros, delinquentes, lésbicas
agressivas e prostitutas diplomadas. É a versão pornográfica do
negativo anterior. Nesta montureira da mediocridade até os cravos se
desvalorizaram. Tal é a Revolução Portuguesa que a imprensa de
trusts e os trusts de imprensa, por ordem do capital que a
sustenta, tanto e tanto louvou enquanto julgava que ela servia os
seus interesses. A mediocridade e a insuficiência dos novos
dirigentes foi cuidadosamente escondida da opinião pública
internacional, pois era nessa mediocridade e nessa insuficiência que
jogavam os interesses, pois só através delas era possível trair de
maneira tão clamorosa e indigna os legítimos interesses do aliado
e amigo.
Os
senhores do Clube de Bildelberg, o Prof. Marcello Caetano, e os seus
amigos, os capitães do Movimento até 16 de Março, todos foram
habilmente ultrapassados pelo PC.
Acabado
o processo, só haverá uma vítima digna de lástima: o Povo
Português!
[...]
Ora
a revolta foi, de facto, uma manifestação espontânea – e por
isso não teve êxito – uma inequívoca demonstração de repulsa
contra a entrega de Moçambique a um movimento terrorista que não
tinha qualquer expressão representativa no interior do território.
E
precisamente pela sua total espontaneidade, não surpreende que o MFA
a tenha dominado em poucos dias. Estão gravadas as ordens dadas
através da rádio pelo Chefe do Estado Maior das Forças Armadas,
general Costa Gomes, decretando o esmagamento de tão legítima
sublevação popular por meio de bombardeamentos aéreos e massacres
e, se necessário, com o concurso mesmo das forças militares da OUA,
para as quais chegou a apelar. A tanto desceu a aberração do
traidor! Sufocada a revolta, deram entrada em prisões de toda a
Província milhares de pessoas, na sua maioria membros dos movimentos
políticos representativos das etnias contrárias à Frelimo e
numerosas personalidades. Foi grande o número de mortos,
calculando-se que tenha ultrapassado os doze mil. A imprensa de
Lisboa como aliás a internacional, minimizou o grave acontecimento,
classificando-o de pequeno incidente provocado pelos fascistas,
com a intenção de sabotarem o processo de descolonização.
A
situação, embora dominada pela força implacável das fardas de
traição estacionadas no território, continuou inquietante para o
governo e para os dirigentes locais do MFA. O alto-comissário –
que prudentemente se quedara em Luanda até ao completo esmagamento
da heróica insurreição – não se atrevia a sair do palácio
senão de helicóptero e, segundo se afirma, o seu estado normal
era a embriaguez. A ideia dos massacres que lhe foi sugerida por
Costa Gomes fica gravada na memória de Crespo. As autoridades tinham
perfeita consciência de que a população, branca e preta, tinha
sido dominada mas não vencida. Impunha-se, assim, quebrar de uma vez
para sempre a sua resistência.
Sem
que nada, na aparência, o fizesse esperar, no mês de Outubro, um
banho de sangue selou o pacto diabólico logo após a instalação do
governo provisório da Frelimo e da entrada no território dos 6.000
guerrilheiros que o acompanharam – de resto tão transidos de medo,
pela consciência de não serem nada no imenso território e na
multidão das cidades, que só se atreveram a aparecer nas ruas
acompanhados pelas tropas traidoras do exército português.
Surgiram, assim, em Lourenço Marques, bandos de pretos drogados e
embriagados, munidos de armas de catanas e de latas de gasolina, que
matavam e incendiavam, de maneira bárbara e indiscriminada. As
tropas portuguesas assistiam impassíveis a estes crimes, afirmando
os oficiais que as comandavam que tinham ordens rigorosas para não
interferir, pois se tratava de ajustes de contas entre
moçambicanos. Os dirigentes da Frelimo afirmaram que não lhes
assistia a mais pequena responsabilidade nestes trágicos
acontecimentos. Perante tão firme declaração só fica uma hipótese
e, diga-se desde já, a mais plausível: a matança terá sido
organizada pelas autoridades portuguesas locais. O alto-comissário,
o pseudo-almirante Vítor Crespo, teria dado o seu aval ao plano de
um grupo de oficiais esquerdistas do MFA, destinado a quebrar o moral
dos seus compatriotas que segundo se afirmara, preparavam um ataque
às Forças Armadas. Milhares de homens, mulheres e crianças,
brancas e pretas, foram esquartejadas nas ruas de Lourenço Marques.
Viram-se corpos humanos pendurados nos talhos da cidade e a avenida
que conduz ao aeroporto, na extensão de alguns quilómetros, foi
ornamentada com cabeças humanas espetadas em paus. Era tal o número
de mutilados que chegava ao hospital Miguel Bombarda, que os
depositavam nos corredores e nos pavimentos das salas, a esvairem-se,
enquanto os médicos com as batas cheias de sangue e os olhos cheios
de lágrimas, procuravam minorar os seus sofrimentos. Ante tão
pavorosa hecatombe, o pessoal médico do hospital exigiu, sob pena de
se refugiar nas representações diplomáticas acreditadas em
Moçambique, que o chefe do governo provisório, Joaquim Chissano,
comparecesse no hospital para se dar conta da extensão do crime e de
tamanho horror. Perante o calvário que se lhe deparou, Chissano saiu
a soluçar, salpicado pelo sangue dos que eram também suas vítimas.
A
imprensa de Lisboa e a imprensa internacional limitaram-se a
transmitir os comunicados oficiais, dando a entender que se tratara
de um pequeno incidente, perfeitamente compreensível num
quadro de passagem do colonialismo à liberdade. O
número de mortos que, de forma comedida, lamentavam, afirmava-se ser
de cerca de 80, a que juntavam alguns feridos, para dar, uma certa
credibilidade à informação. Escondeu-se, assim, à opinião
pública nacional e internacional que tinham sido barbaramente
assassinadas mais de 2.500 pessoas, só em Lourenço Marques, ante a
indiferença criminosa das Forças Armadas. Onde se terão escondido
os bons sentimentos das comissões humanitárias, os zelos
desinteressados dos correspondentes estrangeiros em Lourenço
Marques, a piedade e o sentido de justiça dos padres Hastings, tão
espontaneamente mobilizados à mais pequena calúnia, para
agora se calarem ante a verdade?
Li anteriormente:
25
de Abril – Episódio do Projecto Global (1996)
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