Hermenegildo Capelo & Roberto Ivens
De Angola à Contracosta (1886)
Já me referi anteriormente a
Hermenegildo Brito Capelo e Roberto Ivens aquando da leitura do livro
Como eu Atravessei África de Serpa Pinto. Capelo e Ivens
acompanharam Serpa Pinto no início da expedição de 1877,
separando-se dele no Bié, e dessa viagem deram conta no livro De
Benguela às Terras de Iaca (1881).
Este De Angola à Contracosta – Descrição de uma
viagem através do Continente Africano, respeita à
expedição seguinte, comandada pelos dois oficiais da marinha real,
novamente patrocinada pela Sociedade Geográfica de Lisboa e pelo rei
D. Luís.
As dificuldades da viagem não foram
muito diferentes das descritas por Serpa Pinto no livro atrás
referido, com algumas cambiantes: estes exploradores preveniram-se
contra as febres e, atravessando normalmente zonas ricas em caça,
não os afligiu demasiadamente a fome, pese embora a monotonia do
cardápio; em compensação, atravessaram regiões infestadas pela
mosca tsé-tsé que lhes dizimou o gado acompanhante, e tiveram de
suportar tempestades quase diárias combinadas com uma temperatura e
humidade elevadas nas regiões mais setentrionais que percorreram.
Após uma partida em falso em Porto
Pinda, na costa angolana, frustrada pela fuga de 42 carregadores, o
trajecto iniciou-se em Moçâmedes em 24 de Abril de 1884. Prosseguiu
por Huíla (Sá da Bandeira), atravessou os rios Cunene, Cubango,
Cuito, a confluência do Quembo com o Cuando e, a partir daqui, num
percurso aproximado ao que Serpa Pinto trilhara quatro anos antes
para atingir o Zambeze, pelos pântanos e lameiros entre o Lobale e o
Barótze. A travessia deu-se na proximidade de Libonta, e a viagem
continuou a par do Liambae (na verdade o Zambeze, no seu curso
superior) e logo pelo Nordeste para transpor o Cabompo, afluente do
Zambeze. Pouco depois determinaram a nascente do Lualaba (a origem do
ramo médio do rio Zaire) e internaram-se na região do Garanganja
(Katanga) com o objectivo de assentar em definitivo a posição aos
seus numerosos afluentes. Em Bunqueia permaneceram duas semanas em
recuperação e, partindo depois em busca do Luapula a 24 de
Dezembro, deambularam perdidos pelas matas de Caponda, por
incapacidade do guia, até 1 de Fevereiro, data em que finalmente
encontraram a margem do dito rio. Nessa área permaneceram até ao
final de Fevereiro, sem conseguir convencer o régulo local a
abrir-lhes o caminho para o lago Bangueolo — uma repetição do que
tinha sucedido em Bunqueia, quando pretendiam seguir para o lago
Moero. Sem possibilidade de seguir para Norte ou Este, e com os
recursos a caminho do esgotamento, a expedição cortou para Sul,
rumo ao Zambeze, avistado finalmente no dia 25 de Abril, na
proximidade de Chôa, após semanas de árduas marchas. Esta era já
uma região colonizada por portugueses, e descreve-se o seu
estabelecimento na Zambézia, desde Kabora-bassa até às margens do
Cafué, considerando o Zambeze uma via fluvial comparável ao Zaire,
mas numa geografia mais favorável e mais rica, que urgia consolidar.
A partir daqui a conclusão da viagem estava assegurada; a expedição
seguiu até Zumbo pela margem esquerda do rio, onde repousou, antes
de abalar rio abaixo a 23 de Maio. Desembarcados em Caxomba, para
evitar as cachoeiras de Kabora-bassa, o percurso atravessou uma
região seca na margem direita, então palco de guerras e rebeliões,
até chegar à vila de Tete, onde se podia dar por terminada a
missão. Três dias depois voltaram a embarcar descendo o rio até
Mazaro, onde fizeram transbordo, prosseguindo pelo Cuácua durante
dois dias, até chegar por fim a Qelimane e à embocadura oceânica
de onde avistaram o Índico, no dia 26 de Junho de 1885, após 4.500
milhas percorridas.
O livro inicia-se com uma breve resenha
histórica da exploração portuguesa no interior do continente, um
percorrer constante desde 1445, quando João Fernandes foi o primeiro
europeu a fazer este tipo de expedições, em busca do lendário
reino do Preste João, que se acreditava então poder situar-se em
África. Contém depois um resumo do historial do reino do Congo, um
vastíssimo território reconhecido como vassalo da coroa portuguesa
já nos sécs. XVI e XVII; a insalubridade, letal para o europeu,
impediu de fazer do rio Zaire o mesmo que no Amazonas, caso contrário
teria nascido aqui um segundo Brasil. Donde se conclui que,
contrariamente ao que a Conferência de Berlim (1884-85) predicou
acerca da prevalência da «ocupação efectiva» sobre a «ocupação
histórica» (um modo de as potências europeias, com o Reino Unido,
a França e a Alemanha à cabeça, justificarem a partilha de África
segundo os seus interesses), Portugal se viu de facto pilhado de um
imenso território que tinha reconhecido ao longo de 440 anos.
Incapaz de fazer valer o seu direito por manifesta falta de meios
humanos e materiais, estas explorações de 1877 e 1881 são a
tentativa final de salvar o que era possível, ajudando a delinear o
«mapa cor-de-rosa», o território compreendido entre Angola e
Moçambique, com a zona central que os ingleses viriam a colonizar
nas duas Rodésias e na Niassalândia. Isto colidia uma vez mais com
os interesses britânicos, determinados a unir o Cairo ao Cabo sem
descontinuidades, e levou ao humilhante ultimatum de 1890
pelos nossos «velhos aliados» — uma aliança que, diga-se de
passagem, descontando talvez 1385, só nos tem trazido prejuízos.
Este acontecimento foi mais uma machadada no prestígio da monarquia;
o hino nacional, A Portuguesa, nasceu por esses dias entre os
republicanos, e nunca se deve esquecer que o último verso era, na
verdade, Contra os bretões, marchar, marchar!
N'um logar chamado
Quiúla deu-se com elle certo caso que nos deixou vexados aos olhos
dos nossos, arreigando-se ainda uma vez em seu espirito a idéa de
que os n'gangas possuem o segredo de poder adivinhar.
Eis o facto.
Quando proseguiamos
por meio das planuras, passando proximos de plantações ou senzallas
desertas de ba-nhengo, avisou-nos ao segundo dia o n'ganga,
de que urgia tomar toda a cautela com os povoadores, porque, sendo
pelo geral hostis, como quasi todos os ba-lobale, eram sobretudo e
muito especialmente consummados ladrões!
Esta declaração
na bôca de um preto do mato não nos mereceu grande confiança, pois
o gentio, por andar sempre fugido, parecia extremamente timido, e
pouco disposto a qualquer tentativa audaciosa.
Desprezando assim
as suas indicações, alvitrámos-lhe um outro modo de ganhar a vida,
pela improficuidade d'aquelle; recommendação que ouviu attento, e
depois afastou-se para o mato, procedendo de cabaça na mão a outras
adivinhações, ás quaes de longe assistiamos, quando por vezes nos
davamos ao trabalho de observal-o.
Approximava-se o
sol do horisonte, e tinhamos acabado de jantar, quando o nosso homem
de novo se apresentou, encontrando-nos então em melhor disposição
que de manhã.
Vinha satisfeito e
com ar de quem decidíra questão importante, após as profundas
locubrações a que se entregára.
Chamado o
interprete Pedro, rapaz da nossa comitiva, acocoraram-se os dois,
começando o n'ganga a fallar. A complicada oração
prolongou-se por um bom quarto de hora.
—Então, que
disse elle? inquirimos nós a Pedro, esperando alguma revelação
estupenda.
—Por ora,
respondeu este muito fleugmaticamente, ainda não disse nada!
Escusado será
descrever aqui o nosso espanto perante similhante facto, que só
julgavamos apanagio dos tribunos da velha Europa, e, silenciosos,
esperámos se dignasse proferir alguma cousa.
Então?
Tornando a tomar a
palavra, arengou longo tempo o quer que fosse. Pedro nos explicou ser
uma especie de fabula, relativa a scenas passadas entre corpulento
elephante que se não arreceára das ameaças de um grupo de bissonde
(formigas guerreiras), as quaes, colhendo-o a dormir pela noite, se
lhe enfiaram pela tromba, levando o animal no desespero a
suicidar-se, batendo com ela pelas arvores.
Additou outra,
concernente á entrada dos ratos pela noite nos celleiros, etc., que,
por mal interpretada, ficámos sem comprehender o que elle desejava e
se nos eram applicaveis similhantes narrativas, até que dispostos a
deixar de escutal-o, íamos levantar a sessão, quando o mysterioso
interlocutor se decidiu por fim a explicar-se.
Queria primeiro que
tudo quatro jardas de fazenda, como pagamento do serviço que se
propunha fazer-nos; logo depois de recebidas, declarou que acabava de
adivinhar que dentro de limitadissimo espaço, quando muito de dois
sóes, seriamos infallivelmente roubados pelos naturaes da terra onde
estavamos.
Até aqui não
offerece originalidade a historia, nem credito deviam valer as
indicações do negro; o certo, porém, é que n'essa noite ás duas
horas eramos effectivamente roubados, sendo para lamentar que elle
n'ganga não tivesse aproveitado para si a parte que
lhe cabia da revelação, pois foi tambem uma das victimas, perdendo
o proprio machado!
Introduzindo-se de
subito no acampamento, os ba-nhengo furtaram-nos uma arma, uma
espada, os pannos de um homem e o machado; caso estupendo, e que
jamais em nossa viagem se tornou a repetir, pois não ousam os
indigenas penetrar nos acampamentos pela noite, ficando os nossos
convencidos que nada ha como um n'ganga
para adivinhar, sendo tambem certo não haver quem como elle fique
tão tranquillo quando o expoliam!