Camilo Castelo Branco
Perfil do Marquês de Pombal (1882)
No ano em que se
comemorou o centenário da morte do Marquês de Pombal, Camilo
Castelo Branco publicou este livro ao arrepio da história oficial.
Não para estragar a festa, que já tinha decorrido, mas para que os
interessados pudessem conhecer a verdadeira face de Sebastião José
de Carvalho e Melo, “neto do padre Sebastião da Mata Escura e da
preta escrava Marta Fernandes”. E, assim, desfia um inventário,
bem fundamentado e documentado, de actos despóticos, arbitrários,
corruptos, incompetentes, toda a espécie de abusos, usurpações e
vinganças mesquinhas com vista ao favorecimento pessoal ou pelo ódio
que votava aos jesuítas, durante “vinte e sete anos de terror, de
tristeza, de uma desconsolação profunda” em que o marquês, um
arrivista com toda a máquina do Estado e da Inquisição subjugada
ao seu dispor, aproveitando-se do carácter fraco do rei D. José I,
reinou como um verdadeiro tirano — e desmonta ainda, uma a uma, as
pretensas realizações do seu ministério.
No Proémio,
Camilo Castelo Branco, insuspeito de clericalismo, ao constatar as
alterações que o tempo provoca sobre a perspectiva dos eventos
históricos, faz uma pergunta retórica inquietante: «Se os
ultraliberais de 1882 estão com o Marquês de Pombal, quem nos
afirma que as confederações republicanas e ateístas de 1982 não
hão-de estar com os jesuítas?»
Talvez não “com
os jesuítas” mas com “o jesuíta”... um desvio de 30 anos.
No texto abaixo
fica a descrição de um dos últimos crimes do marquês, o incêndio
da Trafaria, cometido quando o rei estava já no seu leito de morte.
Na praia da
Trafaria, onde viviam cinco mil pessoas, campanhas remediadas de
pescadores, muitas mulheres e criancinhas, havia um centenar de
intrusos, caridosamente acolhidos pela tribo trabalhadora e boa dos
homens do mar. Eram filhos do povo foragidos ao recrutamento.
A Espanha
ameaçava-nos. O marquês dispunha de um mesquinho exército de
40.000 homens. O almirante de Castela surgira no Tejo com doze naus
alterosas como outrora os galeões de Filipe II. Toda a marinha
portuguesa era doze naus de linha e algumas fragatas. No entanto, o
erário continha 75 milhões, amuados, estéreis, escondidos como um
roubo; e o marquês era... o primeiro estadista que ainda viu
Portugal. Fazia-se um recrutamento acelerado e violento. Os mancebos
da indústria, dos ofícios e da lavoura acolhiam-se à Trafaria,
ensaiando uma república, labutando na pesca. O marquês de Pombal
tinha 78 anos e o coração de palmo e meio cada vez mais empedrado e
cheio daqueles seixos que lhe encontrou o doutor Picanço. Em víscera
tão cheia de cascalho já não cabia um sentimento generoso.
Laceravam-no por dentro os arpões da vingança — queria cevar-se,
remoçar-se no sangue daquela ralé que, ali, defronte de Lisboa,
ousara insultar a sua autoridade, fugindo-lhe.
Cercá-los,
manietá-los, chibatá-los na recruta, pô-los na dianteira do
exército em batalha, com o peito às balas, pareceu-lhe desforço
muito suave, impróprio dos seus precedentes. Resolveu queimá-los
numa grande fogueira, que enroscasse cinco mil vítimas, mulheres,
velhos, crianças, enfermos, com a serpente das suas labaredas. Na
véspera do século XIX, só ao marquês de Pombal podia acudir o
alvitre de abrasar uns rapazes que fugiam à desgraçada vida militar
em Portugal.
Chamou Diogo
Inácio de Pina Manique, intendente da polícia, deu-lhe uma ordem
lacónica, e pôs à sua disposição 300 soldados e algumas dúzias
de archotes.
A gente da
Trafaria adormecera cansada da luta do dia com os escarcéus. A
invernia fora grande. Manique, por alta hora da noite, atravessou o
Tejo em faluas com os 300 soldados. Ao romper da aurora de 24 de
Janeiro de 1777, a Trafaria estava cercada por um cordão de tropa.
Da fileira saíram alguns soldados com archotes acesos. Eram de
tabiques e colmaçadas as casas. A um tempo, rompeu o incêndio nas
choupanas circunjacentes aos arruamentos interiores onde havia
grandes depósitos de víveres em barracas de lona. O fogo cruzou em
línguas rubras que a ventania serpejava de umas casas para o colmo
das outras. Despertaram aquelas cinco mil vidas na sufocação da
fumarada e no estralejar das madeiras.
Os desgraçados
corriam nus por entre as chamas. Alguns levavam sobraçados os seus
doentes, os seus velhos e as crianças. Desses, morreram bastantes
que não puderam romper o assédio do fogo, além do qual estava o
assédio da tropa. Muitos salvaram-se porque os soldados,
compadecidos, transgredindo as ordens do Manique, abriram clareiras
por onde escapassem. E os que se escapuliram levaram consigo a nudez
e a fome, por que todos os seus haveres fumegavam nas cinzas do
pavoroso incêndio.
Li anteriormente:
A Corja (1880)
Eusébio Macário (1879)
Amor de Perdição
(1862)
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