25 de febreiro de 2025

Os Romenos, Latinos do Oriente


Mircea Eliade
Os Romenos, Latinos do Oriente (1943)

Mircea Eliade foi um estudioso da filosofia da religião que, desde muito novo, se habituou a percorrer o mundo, tendo permanecido em Portugal alguns anos no início da década de 1940, como adido cultural e de imprensa na embaixada romena. Interessado pelo nosso país, esta obra data dessa altura, revelando no prólogo o desejo de escrever outro livro paralelo, em romeno e para romenos, sobre a História e cultura portuguesas. Quanto a este livro, editado pela primeira vez em português, apesar do manuscrito original estar em francês, considera-o, na sua curta extensão, uma introdução e um esboço, mais do que um resumo, acerca do lugar ocupado pelos seus compatriotas na História. Está dividido em três capítulos: Origens e formação, Momentos essenciais na História dos romenos, e Vida espiritual dos romenos. O excerto escolhido pertence ao terceiro, e respeita a ortografia original.

Há um mito central em cada cultura, que a revela e se encontra em tôdas as suas grandes criações. A vida espiritual dos Romenos é dominada por dois mitos que exprimem, com espontaneidade perfeita, a visão espiritual que têm do Universo e a sua valorização da existência. O primeiro, é a lenda de Mestre Manole, que, segundo a tradição, edificou a magnífica catedral de Curtea de Argesh. Segundo reza a lenda, tudo o que Manole e os seus operários construíam durante o dia, desaparecia de noite. Para durar, o edifício tinha necessidade duma alma e esta só se alcançava mediante o sacrifício dum ser humano. Quando Manole e os seus operários perceberam a razão da caducidade das suas obras, resolveram emparedar, viva, a primeira pessoa que se aproximasse, ao amanhecer, dos estaleiros. De madrugada, Manole viu, ao longe, a sua mulher, com o filhinho ao colo, que lhe ia levar o almôço. Manole pediu a Deus que mandasse uma trovoada que fizesse parar a mulher no caminho. Mas nem o vento terrível nem a chuva torrencial que Deus mandou, acedendo à súplica, puderam deter a espôsa dedicada. E o próprio Mestre Manole teve de emparedar a sua mulher o filho, para cumprir o juramento e fazer durar a magnífica igreja — que, efectivamente, nunca mais se desfez dêsse dia em diante.
Esta lenda não é da criação do povo romeno. Encontra-se em tôda a parte no sudoeste europeu. A lenda é, afinal, a fórmula mítica e épica dum dos mais vulgarizados ritos existentes no mundo: os chamados «ritos de construção», que implicam a crença de que tôda a construção, para durar, deve ser «animada» pelo sacrifício dum ser vivo, homem ou animal. Mas a lenda romena de Mestre Manole é, segundo os folcloristas, a mais completa, a mais bela e a mais rica em significado espiritual. A inspiração poética popular criou, com êste têma, uma obra prima, que pode suportar comparação com os mais belos exemplares da poesia popular universal. O que nos interessa é o facto de os Romenos escolherem êste têma mítico e lhe darem uma expressão artística e moral incomparável. Escolheram-no, porque a alma romena reconhece-se no mito do sacrifício supremo, que faz durar uma obra construída pela mão do homem, quer a obra seja uma catedral, uma pátria ou uma choupana. Cantaram em versos inumeráveis o sacrifício de Mestre Manole, por adivinharem que assim cantavam a sua própria vida histórica, o seu sacrifício constante. A adesão dos Romenos a esta lenda é, por si só, significativa. Não se aplicam todo o génio poético e todos os recursos espirituais a refazer um mito sem revelar por êsse ardente interêsse a ressonância que êle teve na alma colectiva.

22 de febreiro de 2025

La Casa de Matriona


Aleksandr Soljenitsine
La Casa de Matriona (1963)

Escrito em 1959 e publicado pela primeira vez em 1963 na revista literária Novyi Mir, órgão oficial da União de Escritores Soviéticos, A Casa de Matriona é uma novela curta que se conta entre as primeiras obras de Soljenitsine, e considerada também como uma das mais conseguidas.
Aqui se conta a história de Ignatich, um professor que passou longos anos preso e decide isolar-se numa pequena aldeia nos confins da Rússia. Fica em casa de Matriona, uma velha viúva que vive sozinha e possui como único valor uma casa de madeira a caminho da decrepitude, infestada por ratos e baratas. Em determinado ponto, por pressão do cunhado, Matriona cede a gornitza, um grande salão anexo à casa, a uma sobrinha recém-casada, que precisava de construir algo em determinado terreno para garantir o seu direito de propriedade. O salão é desmontado e transportado em dois trenós puxados por um tractor. Mas o frete corre mal e do acidente resulta uma tragédia que abala a pequena aldeia.
O livro inclui ainda um segundo texto, um discurso feito em Harvard, em Junho de 1978, quando Soljenitsine levava já quatro anos de exílio nos Estados Unidos. Ao fazer o contraponto entre a sociedade que o expelira e aquela que o acolheu, é impressionante constatar que o diagnóstico feito sobre o Ocidente, há quase cinco décadas, não só não perdeu a actualidade como previu de forma cristalina a consequência no tempo presente.

Apartándose un poco de su rutinario ajetreo cotidiano, Matriona empezó a escuchar con más atención mi radio (no omití instalar a mi lado un parlador, como llamaba al altavoz).
Al oír que habían sido inventadas nuevas máquinas, refunfuñó desde la cocina:
—Nuevas, todas nuevas, y nadie quiere trabajar con las viejas. ¿Dónde vamos a amontonarlas?
Transmitieron que los aviones pueden ahuyentar a las nubes. Matriona, ante su estufa, sacudió la cabeza diciendo:
—¡Ay, ay, ay! Nos volverán algo del revés, el invierno o el verano.
Dieron canciones rusas interpretadas por Shalyapin. Matriona escuchó con atención y luego su concluyente sentencia fue:
—Extraño modo de cantar. Nosotros no lo hacemos así.
—Pero ¿qué dice, Matriona Vasilievna? ¡Escuche, escuche bien!
Volvió a escucharle y, apretando los labios, insistió:
—No. No es así. No canta a nuestro modo. Y se recrea con su voz.
En cambio, en otra ocasión me recompensó. Radiaban un concierto de romanzas de Glinka. De repente, después de oír cinco arias en música de cámara, surgió Matriona del otro lado del tabique, con el mandil entre las manos, emocionada, con sus ojos sin brillo velados por las lágrimas:
—Así, así es como cantamos nosotros... —musitó.

20 de febreiro de 2025

História da Literatura Universal, VII - IX


Eduardo Iáñez
História da Literatura Universal, VII - IX
Vol. VII – O Século XIX - Realismo e Pós-Romantismo (1992)
Vol. VIII – A Literatura Contemporânea até 1945 (1993)
Vol. IX – A Literatura Contemporânea depois de 1945 (1993)


O Vol. VII tem uma primeira parte dedicada ao realismo. Refere o realismo e o naturalismo francês, o romance vitoriano em Inglaterra, e a difusão do realismo pela Rússia, Espanha, Portugal, Itália, Alemanha e Estados Unidos. A segunda parte versa o pós-romantismo e ocupa-se, quase exclusivamente, da poesia nos diferentes espaços culturais e geográficos: França, Inglaterra, Alemanha, Espanha, Portugal, Itália, Estados Unidos e Hispano-América.
O Vol. VIII, o mais extenso da obra, trata das literaturas de transição para o séc. XX e, de modo geral, o seu desenvolvimento durante a primeira metade desse século. São abordadas as literaturas da França, Espanha, Hispano-América, Inglaterra, Estados Unidos, Alemanha, Itália, Rússia e União Soviética, Portugal, e um capítulo final dedicado a outros países europeus.
O Vol. IX, o tomo final, percorre sobretudo as literaturas da segunda metade do séc. XX. Analisa as suas características na RFA e RDA, em Espanha, na Hispano-América, em França, nas Ilhas Britânicas e outros (ex-)territórios do império e cujos autores inscrevem-se na cultura inglesa, nos Estados Unidos, na Itália, em Portugal (incluindo uma perspectiva geral sobre a literatura brasileira), e na URSS. O capítulo final inclui uma panorâmica sobre as literaturas não-ocidentais (japonesa, árabes, etc.), à qual se segue um olhar sobre as literaturas centro-europeias, nórdicas e algumas outras de línguas mais exíguas do espaço europeu.
Uma vez mais, inclui-se um excerto de cada um dos volumes.

Durante o período realista entrecruzam-se e confundem-se diversos contributos e influências. Em muitos autores podemos encontrar vestígios românticos, traços de estilo realista — embora quase sempre sem qualquer intenção crítica — e tímidos decalques das inovações da literatura estrangeira do final do século. No entanto, de um ponto de vista histórico, há que reconhecer no Realismo o primeiro movimento literário alemão que, produzido por um sector da burguesia, superou o idealismo dos séculos XVIII e XIX e transformou a literatura num modo de produção inequivocamente ideológico, feito por e para usufruto da burguesia. Os principais problemas com que realmente se debateram os mais lúcidos e coerentes realistas germânicos foram a debilidade das suas próprias armas, a tendência para a literatura de evasão e a consequente escassez de produções realmente críticas e a sua necessidade de aliança com o poder dadas as vacilações dos seus pensadores, a quem faltava um corpo doutrinal e que, de algum modo, estavam paralisados por uma poderosa sensação de fracasso.
O panorama mudou durante o período naturalista. A carência de objectivos que poderíamos atribuir ao Realismo é agora sobejamente suprida com a adopção de um Naturalismo abraçado por muitos como se de um credo religioso se tratasse. O Naturalismo implicava, em primeiro lugar, uma filosofia de vida que comprometia totalmente o indivíduo. Não se pode minimizar o papel que teve para esta concepção a filosofia de Friedrich Nietzsche (1844-1900), cujo materialismo voluntarista prendeu com força o pensamento da época: máximo artífice ideológico do Naturalismo, a sua obra filosófica lançou as bases da revolução cultural do fim do século e da sua correspondente tradução política. Apenas graças a este pensamento materialista a literatura pôde desligar-se do idealismo imperante na cultura alemã desde o século XVIII. Depois de quase dois séculos, a arte germânica estava em condições de superar a vulgar e empobrecedora visão tradicionalmente burguesa do mundo, de apostar numa vontade modernizadora radical — na qual não faltam traços decadentes — e de conseguir a objectividade científica para que os novos tempos a pareciam chamar.

Entre 1910 e 1925, aproximadamente, a literatura alemã foi dominada pelo Expressionismo, designação por que se conhece um movimento artístico de difícil caracterização. O Expressionismo não se limitou à literatura nem à Alemanha: foi um termo que surgiu entre os pintores adversos ao Impressionismo e, devido à acção dos seus representantes, tornou-se um movimento que se estendeu, rapidamente, por toda a Europa Central. Não é estranho que não possamos situar rigorosamente os seus limites nem defini-lo satisfatoriamente, já que quase todos os movimentos artísticos do princípio do século possuem este carácter indefinido, ecléctico na sua intransigência e radicalmente individualista.
No âmbito da literatura, o Expressionismo foi a última forma que permitiu aos artistas expressarem o seu inconformismo — enquanto parte de uma classe — com um mundo pós-industrial em franca decadência. Foi, portanto, o último grito de rebeldia do espírito romântico, praticamente esgotado na Alemanha com a implantação do movimento expressionista; não foi por acaso que o seu primeiro órgão editorial teve o nome Der Sturm (A Tempestade), em memória desse «Sturm und Drang» que constituiu o arranque do Romantismo na Europa. Esta atitude rebelde, discordante e revolucionária está presente, de uma ou de outra forma, em todos os autores expressionistas que pertenciam ou julgavam pertencer a uma elite intelectual, à qual se continuava a negar a possibilidade de transformar o mundo. Sobre este pressuposto assentam as características fundamentais do Expressionismo alemão: a rejeição de uma sociedade em decomposição, decrépita e em ruínas e os sentimentos de desespero, de absurdo ou de horror que, face a esta situação, invadem o artista (e cuja expressão plástica encontramos na significativa tela de Edvard Munch graficamente intitulada O Grito). Destas características derivam outras, tais como uma vontade pseudo-revolucionária e neo-humanista, um tom profético e visionário — acentuado durante a Primeira Guerra Mundial —, o anticonvencionalismo, etc. A questão formal não é de somenos importância, visto que frequentemente se pretendeu que fosse a única relevante: o tom radicalmente anticonvencional do Expressionismo alemão que, em determinados casos colide com o decadentismo e o Simbolismo, motivou uma autêntica revolução da linguagem e formas literárias. Tal situação podia levar determinados autores a algum destes extremos: um certo patetismo e excessos emotivos em que incorriam figuras de segunda fila; à ostentação experimentalista ou um certo maneirismo cujo atrevimento tocava o exagero.
Os expressionistas, como bons neo-românticos, defendiam que a arte tinha de ser uma exteriorização, uma recriação do «eu» do artista. Portanto, não havia maior beleza que a surgida do interior do sujeito, nem melhor norma que a que este quisesse impor a si próprio — se é que queria impor alguma — em honra da expressividade, verdadeira pedra de toque do ideário expressionista.

Durante os anos 20, a União Soviética viveu um período de transição que possibilitou a efervescência cultural e a ebulição de diversos movimentos, entre os quais se destacou o Futurismo. Foi talvez a grande época das letras soviéticas, que a partir da década de 30 conheceram um inusitado período de progressiva repressão e controlo ideológico por parte do Estado e do Partido, a cujas instruções, enquanto «produção», todas as artes estavam subordinadas.
A situação agravou-se quando o estalinismo pôs em marcha a imensa máquina burocrática que acabou por sufocar o funcionamento do país. Na verdade, eram muito poucos os escritores que podiam agradar ao partido e, por consequência, era também elevado o grau de desconfiança em relação aos «burgueses cultos», que de forma alguma estavam em sintonia com a «arte proletária» preconizada pelo Estado. A União dos Escritores Soviéticos, órgão máximo dos autores do país, tornou-se uma associação de trabalhadores da produção literária. Opôs-se, portanto, a qualquer tipo de indiferença para com a realidade e, evidentemente, a quaisquer mostras de formalismo, e defendeu uma conciliação com a tradição realista como elemento de formação e de educação das massas. Paradoxalmente, tudo isso ocorreu num clima de terror estalinista, que forçou os camponeses à colectivização, deportou aldeias inteiras, abriu campos de concentração e levou a fome a vastas regiões do país. O culto da personalidade em que degenerou o regime com Estaline deixou na literatura a marca de um chauvinismo provinciano, que durante décadas impediu que se conseguisse atingir o nível que seria de esperar num país como a União Soviética.
O resultado foi, inicialmente, uma literatura documentalista e falseadora, que via os autores como «engenheiros da alma» (uma frase de Estaline), conhecedores e transformadores da realidade revolucionária; a literatura assumia assim o papel de instrumento de formação do espírito socialista. Tudo o que significasse afastamento relativamente a estas linhas mestras merecia a censura, a repressão ou mesmo a «purga», efectuada pelo sistema: recordemos os casos de escritores como Anna Akmatova, Tikonov e Pasternak. [...]
Entre 1953, ano da morte de Estaline, e 1956 sucederam-se uma série de acontecimentos de grande importância para a política e cultura soviéticas. Se nos concentrarmos nos aspectos mais relevantes para a vida literária da época, diremos que se respiravam novos ares no II Congresso de Escritores (1954) — no qual, por causa das «purgas» e da desilusão, apenas um quinto dos que participaram nos anteriores repetia a presença —, apesar de se continuar a insistir na necessidade de uma adequação ao realismo socialista. Além de reivindicar a tradição russa e de se abrir ao «decadente» cosmopolitismo ocidental, esse congresso foi palco para a reabilitação de nomes de alguns autores purgados por Estaline. O mesmo faria Krutchev em 1956 com os nomes de Olescha e dos defuntos Babel e Pilniak no XX Congresso do PCUS, onde anunciou a dissolução do Estalinismo e do culto da personalidade, bem como uma maior liberdade criativa a nível literário. Era o final de um período que se resumia, simbolicamente, no suicídio daquele que até então fora o presidente da União de Escritores: Fadeiev, o autor estalinista por antonomásia.


Li anteriormente:
Vol. VI – O Século XIX - Literatura Romântica (1991)
Vol. V – As Literaturas no Século XVIII (1990)
Vol. IV – As Literaturas no Século XVII (1989)