Gentil Marques
Lendas de Portugal, vol. 5 (1966)
O último
tomo desta obra é dedicado às Lendas
de Amor, quase todas marcadas por
desenlaces trágicos, o que poderá muito bem significar que é a
tragédia, e não a felicidade, a marca
que assinala um
grande amor. Dos amores impossíveis às ironias do destino, estas
lendas populares percorrem um alargado espectro de personagens
e situações, desde as mais ingénuas e
singelas às mais complexas e simbólicas. Destas últimas, gostaria
de destacar a Lenda da Madalena do Mar,
decorrida na Ilha da Madeira e centrada na misteriosa personagem do
Henrique Alemão, cujo argumento poderia servir como ponto de partida
para uma interessante criação sob outra forma artística – um
filme, um romance, uma ópera.
No final da série, talvez seja tempo
de fazer um pequeno balanço. As Lendas de Portugal, neste
tempo “d'uma austera, apagada e vil tristeza” são como uma brisa
de ar fresco, vindo de um passado certamente idealizado – lendário
– que fala de valores, conceitos e princípios que forjaram uma
nação outrora forte, ajudando a conhecermo-nos, e entendermo-nos,
melhor. Esse espaço da Portugalidade, que ultrapassa as nossas
fronteiras geográficas e temporais, estende-se desde um antes
romano até um depois que termina cerca do século XVII, e
baliza um tempo quase mítico onde a assenta a nossa identidade como
povo e nação. A quem aprecia este género de
narrativa, recomendo o sítio www.lendarium.org, onde se encontram
algumas das lendas transcritas por Gentil Marques, bem como muitas
outras mais.
Para o excerto transcrito (como sempre,
a grande dificuldade foi a escolha) seleccionei um trecho da Lenda
da Vingança de Fernão Gonçalves, pela força e pelo drama.
Fernão Gonçalves, um nobre guerreiro da Reconquista, no século X,
recolhe, após uma das guerras, um menino mouro, Abdalá, a quem
poupa a vida e faz educar entre o seu povo. O rapaz cresce e
apaixona-se por Constança, a filha de Fernão Gonçalves; quando
este descobre o que se passa pretende descarregar a sua ira sobre
Abdalá, que, respondendo ao apelo do seu sangue, foge para o lado
dos mouros. A cena passa-se no reencontro dos dois inimigos, no campo
de batalha:
Um dia, a batalha
travava-se fora da região onde ele tinha os seus domínios. Ajudava
o monarca D. Ramiro II na luta contra os infiéis. No meio da
contenda, D. Fernão Gonçalves caiu do cavalo. Logo o rodeou um
turba de mouros. Mais de vinte adagas caíram sobre ele. Mas logo uma
voz possante gritou:
– Quem o vai
desarmar sou eu!
Os outros, vendo
um dos seus chefes, retiraram as armas, embora sem perder de vista o
ferido. O chefe mouro falou:
– D. Fernão
Gonçalves! Sabes quem sou?
Mal podendo ver,
pois a agonia aproximava-se, D. Fernão teve forças para responder:
– Sei quem
és... És Abdalá, o maldito a quem poupei a vida!
– Que fizeste
da tua filha?
– Que te
importa?
– Amo-a, apesar
de tudo!
– Pois... fica
feliz! Vou morrer... e ela... espera-te!
– Onde?
– No salão
nobre do meu palácio, onde cresceste e te fizeste homem!
– Porquê no
salão nobre?
– Porque lá a
fechei... antes de vir para aqui! E agora... satisfaz o teu ódio...
mata-me!
– Não matarei
o pai daquela a quem amo... Outros o farão por mim.
E dando costas,
fez sinal para que não prolongassem a agonia de D. Fernão.
Terminada a
batalha, que estava já no fim e fora ganha pelos mouros, Abdalá e
alguns dos seus obtiveram licença para se embrenharem nos domínios
de D. Fernão Gonçalves. Atravessaram rios e montanhas ligeiros como
o vento. Ao cair da noite, o jovem mouro chegou ao palácio. Parecia
deserto. Nem um criado, nem um guarda. Arranjou luz e forçou a porta
do salão nobre. Ao entrar, o quadro que se lhe deparou deixou-o
horrorizado... Gritou:
– Constança,
meu amor!
Mas ela não
respondeu. Estava morta sobre um divã estofado de rico damasco. A
seu lado, tombada no solo, ainda ensanguentada, uma das espadas de
seu pai.
Abdalá caiu de
joelhos, soluçando. Compreendia a terrível vingança de D. Fernão.
Poderia ter-lhe dito que a deixara morta para que jamais lhe
pertencesse. Mas preferiu dar-lhe a alegria de uma esperança, na
certeza de que, assim, se vingaria duplamente!
Li anteriormente:
Lendas de Portugal, vol. 4 (1965)
Lendas de Portugal, vol. 3 (1964)
Lendas de Portugal, vol. 2 (1963)