Ferreira de Castro
A Selva (1930)
Ferreira de Castro foi, em tempos, o
escritor português com maior número de traduções no estrangeiro.
Da sua juventude passada no Brasil, à qual se refere no prólogo
deste romance, recolheu certamente a inspiração para o enredo, a
história de Alberto, um português a quem as circunstâncias levam
aos confins da Amazónia, nas margens do rio Madeira, para trabalhar
num seringal – na extracção da borracha – na época em que a
matéria-prima começa a desvalorizar imparavelmente. É a descrição
da grandiosidade desta selva indómita, e a sujeição dos homens a
uma Natureza implacável, agravada por uma exploração quase
esclavagista do seu trabalho, que fazem de A Selva um imenso
quadro, que se percorre com curiosidade crescente.
Por toda a parte havia uma orquestra
invisível, feita de aves trinando melodias diferentes, que se
diluíam frequentemente num ritmo tão suave que era quase o silêncio
verificado, na véspera, por Alberto, mas agora mais vivo, mais
alvoroçante e integrado no esplendor da manhã.
De quando em quando, como se
alternassem, subia pelas narinas, perturbando o olfacto, um cheiro
forte de húmus em combustão, de troncos e folhagem apodrecendo no
solo negro e húmido; ou então errava, por largos trechos, um aroma
de ignorado jardim, perfume original e precioso como nunca o
recolheram os frascos caprichosos da França.
Adivinhava-se a luta desesperada de
caules e ramos, ali onde dificilmente se encontrava um palmo de chão
que não alimentasse vida triunfante. A selva dominava tudo. Não era
o segundo reino, era o primeiro em força e categoria, tudo
abandonando a um plano secundário. E o homem, simples transeunte no
flanco do enigma, via-se obrigado a entregar o seu destino àquele
despotismo.
O animal esfrangalhava-se no império
vegetal e, para ter alguma voz na solidão reinante, forçoso se lhe
tornava vestir pele de fera. A árvore solitária, que borda
melancolicamente campos e regatos na Europa, perdia ali a sua graça
e romântica sugestão e, surgindo em brenha inquietante, impunha-se
como um inimigo. Dir-se-ia que a selva tinha, como os monstros
fabulosos, mil olhos ameaçadores, que espiavam de todos os lados.
Nada a assemelhava às últimas
florestas do velho mundo, onde o espírito busca enlevo e o corpo
frescura; assustava com o seu segredo, com o seu mistério flutuante
e as suas eternas sombras, que davam às pernas nervoso anseio de
fuga.
Vista uma légua parecia ter-se visto
tudo. Só a água, presa nos lagos ou deslizando nos rios e igarapés,
quebrava, com a abertura de clareiras, o emaranhado aparentemente
uniforme. E, contudo, havia ali uma variedade vegetal assombrosa, com
milhentos indivíduos diferentes a confundirem-se e a engalfinhar-se
mutuamente, como numa raiva surda, – eviterna, mas quase sempre com
a mesma expressão. Daquela bárbara grandiosidade e da sua estranha
beleza, uma só forte impressão ficava – a inicial; que nunca mais
se esquecia e nunca mais também se voltava a sentir plenamente. Solo
de constantes parturejamentos; obstinado na ânsia-de-criar, a sua
cabeleira, contemplada por fora, sugeria vida liberta num mundo
virgem, ainda não tocado pelos conceitos humanos, vista por dentro,
oprimia e fazia anelar a morte. Só a luz obrigava o monstro a mudar
de fisionomia, revelando as suas pesadas atitudes, mas persistindo
sempre no seu ar enigmático.