Camilo Castelo Branco
A Corja (1880)
Eusébio Macário
e A Corja foram publicados por Ernesto Chardron, em 1879 e
1880, incluídos em dois volumes intitulados, respectivamente,
Sentimentalismo e História e História e Sentimentalismo.
Na secção intitulada História, incluiu Camilo ensaios de
teor histórico, ao passo que na secção Sentimentalismo
figuram as novelas, sendo A Corja a continuação de Eusébio
Macário.
Cerca de dois anos
passados sobre os acontecimentos descritos no livro anterior,
reencontramos o padre Justino, que conseguiu ser nomeado cónego no
Porto, agora na proximidade dos Macários, por quem alimenta um
ressentimento crescente, contribuindo activamente para a sua ruína,
ao mesmo tempo que executa um plano que lhe permitirá recuperar
Felícia.
Não referi
anteriormente que, no texto dedicado ao livro Eusébio Macário,
no final da obra, se tinha assistido a um outro casamento: o de José
Macário com Felícia, consideravelmente mais velha mas valorizada
pelo avultado dote que o barão do Rabaçal ofereceu à irmã. Esse
pormenor tem uma grande importância n’A Corja: José
Macário, que nunca deixou de ver em Felícia a campónia ex-amante
do padre, cedo enveredou por uma vida de devassidão que culminou na
conquista da Pascoela, uma brasileira casada com o Trigueiros, um dos
amigos do barão; no fino equilíbrio entre a cedência aos seus
instintos naturais e a dependência da fortuna da mulher, o Fístula
vive um dilema que o corrói por dentro, com desfecho na saída para
França com a amante, depois de deitar as mãos a quinze contos,
vindos da Felícia através do divórcio.
Descartada esta
personagem, a narrativa volta-se para Custódia, a quase virtuosa
esposa do barão do Rabaçal, que à primeira oportunidade se deixa
tentar pelo adultério, na pessoa de Bartolucci, um cantor de ópera.
Descoberta a traição, também ela tem o sangue-frio de se apoderar
das jóias, avaliadas em doze contos, no momento em que é posta na
rua pelo barão. Custódia embarcará pouco depois, acompanhada de
Bartolucci, rumo a Itália.
Quanto a Eusébio
Macário, com pretensões à alta-roda portuense, e filado numa
oportunidade de investimento numa fábrica de panos em Lordelo,
precisava de dez contos para entrar na sociedade; por duas vezes
tentou, no rompimento dos filhos, aliciá-los para o negócio,
prometendo-lhes rendimentos chorudos; outras tantas negações
recebeu, pois ambos destinavam o dinheiro fresco aos seus caprichos.
Ao ver-se desacompanhado, Eusébio Macário acaba por comprar uma
botica em Massarelos, cujo proprietário morrera, e levar todo o
recheio de volta para Cabeceiras de Basto, fechando a história no
local onde havia começado.
José Macário, ao
fim do primeiro mês de casado, começou de cismar na sua honra e a
sentir-se mal com a consciência e com a Felícia. Enquanto a posse
dos cem mil cruzados do dote o estonteou como uma descarga eléctrica,
a consciência esteve quieta, atordoada, num deslumbramento; mas
assim que se afez à serena convicção de que era rico, a dura
obrigação de considerar a sua fortuna uma dependência da esposa,
da fatigada fêmea do abade da Faia, entrou lá dentro a
vascolejar-lhe no fundo pântano da alma e a trazer-lhe ao de cima
uma escuma pútrida que ele chamava a sua dignidade. Felícia, numa
sossegada inércia de inteligência e coração, não compreendia a
honra nem a desonra do marido. Ela não o amava nem aborrecia; era a
sua mulher à face da Igreja, e pensava que o episódio da abadia era
uma coisa indiferente à legitimidade da sua posição. Em vez de
considerar-se agradecida, achava-se com direito à gratidão do
marido que não tinha um pataco de seu. Lembrava-se do Fístula a
pedir-lhe dois pintos, a lamber os pratos da tapioca, a fingir
cólicas para lhe apanhar copos de genebra, às escondidas do abade.
De mais a mais, tinha-o conhecido aos oito anos, um ranhoso, com a
fralda suja de fora pela fenda posterior das calças de cotim,
descalço, arregaçado até às virilhas a patinhar nos charcos com
moncos e muito piolho. A mãe, a Rosa Canelas, deixava-o andar para
aí, à-toa, esfarrapado, um pingarelho a roubar fruta pelos campos e
a pedir aos brasileiros dez-reizinhos para uma quarta de figos, e ia
comprar cigarros, o garoto. Depois, via-o nas férias, quando ele
vinha de Braga, e se metia em casa do abade, com a guitarra, a cantar
cantigas porcas, e a pedir-lhe a ela uns cobres, e dava-lhe caixas de
banha furtadas na botica. Ela tinha estas reminiscências, quando o
via chegar de fora, arrancar as luvas cor de canário, com arremesso,
atirar-se cheio de tédio sobre os cochins da sua sala no hotel,
encará-la de revés com fastio, a assobiar trechos de zarzuela,
quando Felícia lhe dizia: — Você parece que não veio bô da rua!
Hospedara-se toda a
família no Central, em Lisboa, quando recolheram de Sintra. José
Macário dissera ao pai que não voltava para o Porto tão cedo, que
receava que o abade desse à língua, e se descobrisse a sua desonra.
Eusébio começava igualmente a enxergar a honra sob outros aspectos
e feitios. A mudança do meio, as convivências, o trato com pessoas
praxistas em teorias de dignidade, viscondes, conselheiros, vários
sujeitos das salas onde a filha ia tomar chá, rasgaram horizontes
novos à sua compreensão da Moral. Também ele, bem trajado e
cevado, sentia-se na abundância, no empertigamento pessoal em que a
honra se apruma consoante a rijeza dos colarinhos e a tesura da
gravata. A Felícia, sua conhecida dezasseis anos em mancebia, também
lhe fazia uns secretos engulhos e um certo mal-estar de sogro que se
preza. Os Macários, pai e filho, entravam a regenerar-se, a
polir-se, no atrito dos pintos e dos soberanos. O dinheiro, que em
tantos casos é o motor de enormes ignomínias, levantara o Fístula
e o sogro da concubina do abade ao nível dos maridos probos e dos
sogros envergonhados.
Li anteriormente:
Eusébio Macário (1879)
Amor de Perdição (1862)
A Queda dum Anjo
(1866)