17 de novembro de 2024

História da Literatura Universal, IV - VI



História da Literatura Universal, IV - VI
Vol. IV – As Literaturas no Século XVII (1989)
Vol. V – As Literaturas no Século XVIII (1990)
Vol. VI – O Século XIX - Literatura Romântica (1991)


O Vol. IV é dedicado à literatura barroca, uma derivação da literatura renascentista que floresceu sob formas muito diferenciadas nos diversos estados europeus, e ao classicismo, que pressupunha um regresso aos pressupostos do renascimento. Este tomo abarca o barroco espanhol, italiano, português, inglês, holandês e alemão; debruça-se também sobre o classicismo francês e a literatura inglesa da Restauração. O Vol. V integra o Iluminismo, neoclassicismo e pré-romantismo, com um grande destaque para as literaturas francesa e inglesa; aborda também a literatura portuguesa, espanhola, italiana e alemã, e inclui ainda um resumo acerca do aparecimento das literaturas escandinavas e eslavas: sueca, noruego-dinamarquesa e russa. O Vol. VI refere os diferentes romantismos, por vezes quase antagónicos, surgidos em várias geografias. O maior destaque vai para o romantismo inglês e alemão, seguindo depois pelas literaturas francesa, espanhola, italiana, portuguesa e russa, bem como um resumo do romantismo dinamarquês, escandinavo e eslavo. Inclui depois um capítulo mais alargado dedicado à literatura dos Estados Unidos, e encerra com outro capítulo relativo às literaturas hispano-americanas.
De novo, como exemplo, fica um excerto de cada um dos volumes.

A tradição do Renascimento português, muito rico em obras de natureza histórica e geográfica, ou com pretensões a isso, seria continuada no século XVII e de certo modo completada e fechada na interpretação da sua grandeza e poderio ultramarino iniciado no século anterior.
O mais ambicioso e sintomático dos projectos foi, neste sentido, a redacção da Monarquia Lusitana, primeira tentativa de uma historiografia portuguesa realmente moderna. Concebida e redigida no mosteiro beneditino de Santa Maria de Alcobaça, foi iniciada pelo cronista Frei Bernardo de Brito (1568-1617), que tomou como princípio – num sentido medievalista próprio da redacção eclesiástica – a criação do mundo, recolhendo lendas, tradições e relatos populares. Frei António Brandão (1584-1637) continuou esse trabalho com uma mais rigorosa comprovação das fontes, restaurando em grande parte o sentido da moderna historiografia portuguesa e esse trabalho seria prosseguido por outros monges até ao século XVIII.
A obra do dominicano Frei Luís de Sousa (1555-1632), menos importante, costuma limitar-se à hagiografia, mas devemos referir também os inacabados Anais do Rei Dom João III, redigidos por incumbência de Filipe IV entre 1630 e 1632, sobretudo pelo seu documentado carácter estritamente histórico.

A configuração da novela como género literário na Inglaterra do século XVIII tem algumas causas pelo menos imprecisas, embora se possam referir alguns condicionalismos muito concretos: em primeiro lugar, existiam nesse país as condições materiais necessárias para a consolidação de uma nova classe média capitalista, da qual se salientará a literatura enquanto produto inserido no prometedor mercado nacional; em segundo lugar, existia um precedente claro para o êxito da nova fórmula narrativa: Robinson Crusoé, uma obra que acertou com o modelo próprio da novela até aos nossos dias; em terceiro lugar – tal como se adivinha justamente na obra de Defoe –, a descoberta do subjectivismo e do sentimentalismo, que se deixava já antever desde a prosa da Restauração inglesa, possibilitou uma nova concepção do Mundo cuja tradução directa seria a novela moderna.
Na verdade, o aparecimento da novela moderna, não somente na Inglaterra, mas em toda a Europa, está determinada pela configuração de um gosto «sensível» cifrado na subjectividade e confrontada esta com a «razão universal». Por isso, assiste-se então ao culminar de um processo ideológico que, começado com o Renascimento europeu, nos alvores da modernidade, se manifesta abertamente neste século XVIII e chega aos nossos dias com alguns traços críticos devidos à crise ideológica de finais do século XIX. O subjectivismo que impregna o novo gosto literário, próprio da classe média e satisfeito com os autores dela saídos, faz com que a novela moderna se diferencie da anterior no seu abandono da «aventura exterior» pela «interior»: a estrutura narrativa não se sustenta já no encadeamento de acontecimentos, mas na exploração dos sentimentos e da consciência dos personagens, seres individuais, e não poucas vezes individualistas, que se confrontam com condições adversas no desenvolvimento ou confirmação da própria personalidade.

O século XIX vai conhecer uma grande diversificação do campo literário como meio de expressão da própria literatura. Até esse momento, a literatura necessitou do tratado teórico para se pensar a si própria. O grande achado do Romantismo neste âmbito foi o da estrita subjectividade do literário e, portanto, a descoberta de múltiplas formas para a expressão de ideias literárias. O interesse pela crítica e pela teoria literária não era novo, pois tinha nascido com a definição plena da consciência burguesa no século XVIII, precisamente em Inglaterra, onde essa classe se tinha servido de um novo género, o jornalismo, para a difusão dos ideais burgueses ilustrados. Seguindo essa tendência, os românticos tratarão os assuntos literários, culturais, sociais e ideológicos em geral, não só com base em determinados modelos formais, como socorrendo-se de outros anteriores – o ensaio –, dando-lhes uma forma moderna – por exemplo, a autobiografia – ou, inclusivamente, fazendo-os surgir da confluência de outros – por exemplo, a crítica impressionista. Produz-se desta forma a especialização de um certo sector da classe culta como «intelectuais», pensadores teóricos e críticos da sociedade e da cultura do seu tempo, com uma consciência de profissionalização e especialização que tem as suas origens no século XVIII. Resultado igualmente desta especialização do saber literário, tanto como da sua associação a uma classe burguesa altamente politizada, é a formação de «grupos» de intelectuais – geralmente associados a sectores conservadores e liberais – que irão proliferar a partir do início do século XIX.


Li anteriormente:
Vol. III – O Renascimento Literário Europeu (1989)
Vol. II – A Idade Média (1989)
Vol. I – As Literaturas Antigas e Clássicas (1989)

21 de outubro de 2024

La Increíble y Triste Historia de la Cándida Eréndira y su Abuela Desalmada



Gabriel García Márquez
La Increíble y Triste Historia de la Cándida Eréndira y su Abuela Desalmada (1972)

Este livro é composto por seis contos e uma novela curta, que lhe dá o título e ocupa sensivelmente metade das páginas. Os sete textos, da época de Cem Anos de Solidão, são muito diferentes entre si; alguns são muito breves, mas em todos se reconhece facilmente o universo literário de Gabriel García Márquez, com um par de personagens que reaparecem em diferentes contos. O texto principal, a novela, conta como uma rapariguinha órfã é explorada como criada pela sua avó, até ao dia em que causa, inadvertidamente, um incêndio na sua mansão. A velha determina que a neta vai ter de pagar o prejuízo, por ela avaliado em um milhão de pesos, literalmente com o corpo; parte então em viagem constante por vilas e aldeias, vendendo o corpo da rapariga, juntando ouro, e manejando as circunstâncias de modo que a dívida nunca possa chegar a ser paga – uma metáfora do funcionamento da especulação financeira global. O excerto escolhido pertence ao terceiro conto, El ahogado más hermoso del mundo.

Los primeros niños que vieron el promontorio oscuro y sigiloso que se acercaba por el mar, se hicieron la ilusión de que era un barco enemigo. Después vieron que no llevaba banderas ni arboladura, y pensaron que fuera una ballena. Pero cuando quedó varado en la playa le quitaron los matorrales de sargazos, los filamentos de medusas y los restos de cardúmenes y naufragios que llevaba encima, y sólo entonces descubrieron que era un ahogado.
Habían jugado con él toda la tarde, enterrándolo y desenterrándolo en la arena, cuando alguien los vio por casualidad y dio la voz de alarma en el pueblo. Los hombres que lo cargaron hasta la casa más próxima notaron que pesaba más que todos los muertos conocidos, casi tanto como un caballo, y se dijeron que tal vez había estado demasiado tiempo a la deriva y el agua se le había metido dentro de los huesos. Cuando lo tendieron en el suelo vieron que había sido mucho más grande que todos los hombres, pues apenas si cabía en la casa, pero pensaron que tal vez la facultad de seguir creciendo después de la muerte estaba en la naturaleza de ciertos ahogados. Tenía el olor del mar, y sólo la forma permitía suponer que era el cadáver de un ser humano, porque su piel estaba revestida de una coraza de rémora y de lodo.
No tuvieron que limpiarle la cara para saber que era un muerto ajeno. El pueblo tenía apenas unas veinte casas de tablas, con patios de piedras sin flores, desperdigadas en el
extremo de un cabo desértico. La tierra era tan escasa, que las madres andaban siempre con el temor de que el viento se llevara a los niños, y a los pocos muertos que les iban causando los años tenían que tirarlos en los acantilados. Pero el mar era manso y pródigo, y todos los hombres cabían en siete botes. Así que cuando encontraron el ahogado les bastó con mirarse los unos a los otros para darse cuenta de que estaban completos.


Li anteriormente:
Los Funerales de la Mamá Grande (1962)
El Coronel no Tiene Quien le Escriba (1961)
La Mala Hora (1962)

14 de outubro de 2024

El Terrorismo que Creó al Estado Sionista



Bassam Bishuti
El Terrorismo que Creó al Estado Sionista (1969)

Não se encontra facilmente informação sobre o autor, além da referência à versão inglesa deste livro (The Role of the Zionist Terror in the Creation of Israel) aparentemente editado pela primeira vez em Beirute no ano de 1969, bem como um outro título, La Violencia Encubierta del Sionismo Mundial, de 1976.
Este livro, aparecido na ressaca da Guerra dos Seis Dias, em 1967, dedica o grosso da atenção ao período decorrido entre a Declaração Balfour (1917) – onde a Inglaterra se comprometeu perante o Barão Rothschild e a Federação Sionista da Grã-Bretanha em proporcionar ao povo judeu um território, em troca da ajuda aos Aliados na Grande Guerra – e 1948, data da proclamação da independência do Estado de Israel. Quanto ao território mencionado, claro que não se situava no vastíssimo Império Britânico, mas na Palestina, então pertencente ao Império Otomano, que ficaria do lado dos derrotados. Repartidos, depois da guerra, os territórios do Médio Oriente entre a França e a Inglaterra, a Palestina ficou sob mandato britânico, com a finalidade do futuro Estado de Israel ser uma salvaguarda dos interesses britânicos na região.
Dois anos após a Declaração Balfour, devido à emigração fomentada pelos sionistas, habitavam já 65 mil judeus na Palestina, 7% da população total, que detinha 2% das terras. A emigração massiva continuou, para favorecer a mudança étnica, e doze anos decorridos, o número de judeus aproximava-se já dos 120 mil. Apesar do esforço, em 1948, os judeus não possuíam mais de 6% das terras. Algures durante este percurso, os ingleses aperceberam-se que a independência de Israel poderia arrastar à independência os países árabes da vizinhança, e fizeram tudo para limitar a emigração dos judeus para a Palestina, o que foi entendido como uma “traição” ao acordo e esteve na origem dos ataques terroristas contra as tropas britânicas. Organizações terroristas judias, como a Haganah, dirigida e supervisionada pela Agência Judaica, a Stern e a Irgun, assassinos profissionais, “dissidentes”, levaram os britânicos ao rápido abandono do território sob mandato internacional e a passagem das suas responsabilidades para a ONU entre 1947 e 1948. O plano de partilha da ONU foi um esboço impraticável que ofereceu aos judeus 60% das melhores terras (eles eram já 32% da população em 1945), e deixou-os de mãos livres para se desembaraçar dos palestinos, que ali habitavam há séculos. O excerto abaixo refere-se ao massacre de Deir Yassin, em 1948, uma aldeia sem importância nem valor estratégico, situada na zona internacional de Jerusalém, uma das primeiras façanhas de Israel, um estado criado e sustentado pelo terror desde a sua fundação.

En la mañana de aquel día, "una fuerza del IZL (Irgun) y del Grupo Stern de unos doscientos hombres atacó a la aldea árabe". Los hombres de la aldea estaban trabajando fuera. Begin describe el principio del incidente. Dice que "...uno de los nuestros, que llevaba un altavoz, se colocó a la entrada de la aldea y exhortó en árabe a todas las mujeres, niños y viejos a marcharse de sus casas y refugiarse en las faldas de la colina"; algunas de las mujeres y niños lo hicieron, pero no todos. Parece que hubo alguna defensa por parte de los árabes, porque hubo lucha. Según Begin otra vez, sus hombres "se vieron compelidos a luchar casa por casa; (y) para derrotar al enemigo utilizaron un gran número de granadas de mano" que lanzaron a las casas. En este ataque, Begin dice que sus terroristas "tuvieron cuatro muertos y casi cuarenta heridos"; sin embargo, según el comandante del Irgun de la fuerza atacante, en un discurso que dirigió a los judíos de Nueva York durante una visita a los EE.UU. más tarde, las víctimas terroristas fueron "8 muertos y 57 heridos"; de los habitantes de Deir Yassin, sin embargo, "unos 250 murieron, alrededor de la mitad de ellos eran mujeres y niños", según una investigación británica de aquel período. La manera en que estos árabes fueron asesinados causó horror y pánico entre los árabes de Palestina.
Después que la defensa árabe se había acallado, los terroristas del Irgun y del Grupo Stern agruparon a los habitantes de Deir Yassin, de los cuales más de la mitad eran mujeres y niños y les dejaron de pie bajo vigilancia en la plaza de la aldea, mientras ellos entraban en las casas y saqueaban todas las cosas de valor que pudieran coger. En seguida empezaron la carnicería, que es conocida por todo árabe como "la matanza de Deir Yassin". Los terroristas judíos clavaron sus bayonetas y asesinaron a las mujeres que estaban embarazadas, cortaron a los niños que gritaban en pedazos, delante de los ojos de sus madres. Mutilaron a las mujeres jóvenes y muchachas, cortando sus miembros después de violarlas. Ancianos y hombres jóvenes fueron deliberadamente torturados hasta la muerte, mientras que las mujeres y muchachas que quedaban fueron despojadas de toda su ropa y metidas en camiones y llevadas a Jerusalén para hacer con ellas un desfile en el barrio judío de la Ciudad Santa.
Inmediatamente después de la matanza, la Haganah llegó y bloqueó la aldea durante dos días para evitar la entrada mientras quemaban los cadáveres y echaban los restos en los pozos de la aldea en un esfuerzo para borrar toda huella de las atrocidades. Cuando el representante en Palestina de la Cruz Roja Internacional, monsieur De Reynier, pudo visitar la aldea dos días más tarde, logró ver alguna de las huellas de lo que había ocurrido. Quedó horrorizado por lo que vio, la impresión de la acción de la IZL que se formó fue que había sido "una matanza deliberada". [...]
Las noticias de la matanza de Deir Yasin causaron honda impresión en Palestina y el mundo árabe. Los árabes de Tierra Santa quedaron estupefactos. De pronto comprobaron que ser apacibles campesinos no les salvaba del salvajismo judío-sionista. De esta manera, cuando los terroristas sionistas se acercaban a una aldea para atacarla, los habitantes árabes huían aterrorizados. Pronto, pueblos y ciudades fueron evacuados, y cuando los sionistas se enfrentaron con obstinados árabes que rehusaron marcharse, los terroristas con gusto repetían algunos de los actos de la tragedia de Deir Yassin en su beneficio. Los pateaban los golpeaban y los obligaban a correr a tiros, o torturaban a cuantos tuvieran tiempo para hacerlo. Abundan los relatos del salvajismo judío en Palestina; han sido repetidos de forma ilimitada por Israel en tierras árabes ocupadas como resultado de la guerra de junio de 1967.

9 de outubro de 2024

O Duplo e a Quimera



Ivan Turgueniev
O Duplo e a Quimera (1864)

O título original desta noveleta, em russo, é algo como Prizraki, que se traduz em português como “Fantasmas”, distante do imaginativo título que o editor português lhe atribuiu – o que não é, infelizmente, um procedimento demasiado invulgar no nosso país. Sendo um pequeno livro que não chega às 70 páginas, metade das quais ocupadas por uma espécie de prefácio ficcionado, em forma de diálogo com Turgueniev, acerca do texto principal, O Duplo e a Quimera é um produto acabado do romantismo, apesar de Turgueniev ser mais conhecido pelas suas obras no realismo.
Um jovem aristocrata russo, narrador na primeira pessoa, conta os encontros, em noites sucessivas, com um ser espectral – uma jovem mulher chamada Ellis, que vai ganhando corporalidade com o decorrer das noites, enquanto o narrador se vai debilitando. Ela transporta-o em voos vertiginosos até vários lugares e cidades do continente europeu, viajando também pelo tempo numa dessas noites, de visita à Roma Antiga e a um barco de piratas cossacos do séc. XVII. «Na realidade, quem era Ellis?» pergunta-se no final. «Uma aparição, uma alma penada, um espírito mau, um vampiro...»

Os últimos ecos da minha voz ainda ressoavam, quando ouvi... mas desisto de descrever a que experimentei. — Primeiro, foi um ruído confuso, dificilmente perceptível ao ouvido, e repetindo-se incessantemente, de trombetas e palmas. Parecia que nalgum lado, prodigiosamente longe, ou num abismo sem fundo, se agitava uma multidão numerosa — erguia-se, levantava-se em vagas concentradas, sempre a dar gritos abafados, semelhantes àqueles que se escapam do peito, nesses sonhos pesados que parecem durar séculos; depois, o ar foi perturbado e ficou mais sombrio por cima da ruína. Tive então a sensação de ver sombras surgir e desfilar, miríades de sombras, milhões de formas, umas arredondando-se em elmos, outras projectando-se como lanças. Os raios da lua dividiam-se em inúmeras centelhas azuis nestas lanças e capacetes, e todo este exército, toda esta multidão se apressava, se empurrava, avançava, crescia... Sentia-se que era animada por uma energia indizível, capaz de revolver o mundo. Contudo, não havia uma única forma que se destacasse... De repente, toda esta multidão é agitada por um movimento estranho — dir-se-iam vagas imensas que se afastam, que recuam. Caesar! Caesar venit! repetem mil vozes confusas, semelhantes ao estremecimento das folhas numa floresta sobre a qual se abate um furacão. Um toque surdo ressoou, e uma cabeça pálida, severa, com as pálpebras fechadas, cingida por uma coroa de louros, a cabeça do imperator, saiu lentamente da ruína.
Não, não há palavras numa língua humana para exprimir o terror que se apossou de mim. Disse a mim próprio que se aquela cabeça abrisse os olhos, se os seus lábios se descerrassem, nesse instante morreria. «Ellis, gritei, não quero, não posso!... Leva-me para longe de Roma, desta brutal e terrível Roma! Partamos!»

8 de outubro de 2024

El Mito de la Inteligencia Artificial



Erik J. Larson
El Mito de la Inteligencia Artificial (2021)

Erik J. Larson, cientista da computação e doutorado em filosofia, tendo trabalhado em vários projectos empresariais de IA, é um escritor cuja opinião se fundamenta em bases sólidas, não em palpites nem em estados de espírito. Este livro, cujo título original é The Myth of Artificial Intelligence: Why Computers Can’t Think the Way We Do, faz um resumo histórico do desenvolvimento da IA e dos limites encontrados nesse percurso (tradução automática, programação, aprendizagem automática, etc.). Sem colocar de parte a possibilidade de se alcançar uma verdadeira IA, o autor identifica o “mito”, tanto no aspecto científico como no da cultura popular, na inevitabilidade da sua chegada, tomando como certo o caminho iniciado para a sua hipotética implantação – o que não passa, diria eu, de mais uma das expressões da crença no progresso, contínuo e ilimitado, que caracteriza o mundo moderno.
Uma das premissas para a existência da IA é o completo domínio da linguagem, coisa que terá de ser fundamentada numa teoria geral do conhecimento, que está muito longe de existir. A programação numa máquina daquilo que é a “intuição” ou o “senso comum” dos seres humanos, essencial para evitar erros grosseiros numa IA, é ainda uma miragem. O caminho que se tem seguido é o chamado “big data”, esperando que, do processamento de cada vez maiores quantidades de informação, as máquinas descubram um método para preencher os vazios da nossa própria compreensão sobre o cérebro, para depois replicar os processos – e não está a resultar, porque se atinge uma “saturação” na qual, a partir de determinado limite, a aprendizagem não só não melhora como tende a decair. Segundo o autor, seria necessário valorizar novamente o factor humano e apostar na descoberta de uma teoria forte que orientasse as hipóteses criativas e estimulasse a investigação.

Fijaos en que no estoy diciendo que la IA verdadera sea imposible. Como les gusta señalar a Stuart Russell y a otros investigadores de IA, algunos científicos del siglo XX, como Ernest Rutherford, pensaron que era imposible construir una bomba atómica, pero Leó Szilárd descubrió la manera en que operan las reacciones nucleares en cadena —y lo hizo apenas veinticuatro horas después de que Rutherford diera la idea por muerta—. Es un buen recordatorio de que no se debe apostar contra la ciencia. Pero piensa que la reacción nuclear en cadena se desarrolló a partir de unas teorías científicas comprobables. Las teorías acerca de la evolución tecnológica de un poder mental no lo son.
Las declaraciones de Good y Bostrom, presentadas como una inevitabilidad científica, son más bien una concesión a la fantasía: ¡imagínate que esto fuera posible! Y no cabe duda de que sería genial. Y quizá peligroso. Pero imaginar escenarios hipotéticos nos aleja mucho de una discusión seria sobre lo que nos espera.
Para comenzar, una capacidad de superinteligencia general debería estar conectada al resto del mundo de manera que pudiera observar y «hacer conjeturas» de manera más productiva que nosotros. Y, si la inteligencia también es social y situacional, tal y como parece que debe de ser, se requerirá una inmensa cantidad de conocimiento contextual para diseñar algo más inteligente. El problema de Good no es mecánico y restrictivo, sino que más bien atrae hacia su órbita la totalidad de la cultura y la sociedad. ¿Dónde está el plano más simple y remotamente plausible para ello?
En otras palabras, la propuesta de Good se basa, una vez más, en una visión de la inteligencia simplista e inadecuada. Presupone el error original de la inteligencia y le añade otro juego de manos reduccionista: que una inteligencia mecánica individual puede diseñar y construir otra inteligencia mecánica individual superior. Que una máquina pueda situarse en tamaño punto de creación arquimédica parece improbable, por decirlo con suavidad. En realidad, la idea de la superinteligencia es una multiplicación de errores, y representa la esencia del punto al que ha llegado la fantasía en relación con el advenimiento de la IA.
[…]
Hay otros ejemplos ya célebres —o quizá deberíamos decir tristemente célebres—. En 2016, Microsoft lanzó su esperadísimo bot conversacional, Tay. El gigante del software publicitó a Tay como un salto espectacular sobre los sistemas antiguos basados en reglas, como aquella famosa ELIZA de apariencia humana salida de los años sesenta, ya que de hecho podría aprender de la interacción con el usuario y los datos online. Pero diríase que no se estudiaron bien las lecciones de la inducción y sus límites, pues Tay se tragó feliz la secuencia de clics racistas y sexistas con que lo trolearon, además de otros discursos de odio que encontró en la red. Tay se convirtió en un alumno aventajado en metadatos, dedicándose a soltar tuits que decían «Es que odio a las feministas, joder» o «Hitler tenía razón: odio a los judíos» para consternación de Microsoft, que tardó menos de un día en cancelar esa exhibición de odio. Pero deberían haber previsto ese resultado, dada la naturaleza esencial que se escogió para su diseño, basada en el concepto de «basura entra, basura sale» (GIGO en sus siglas inglesas). Tay fue un ejemplo de miopía corporativa acerca del propio enfoque técnico —y un ejemplo más de IA débil—. En este caso, una comprensión real habría otorgado a Tay un mínimo de capacidad para filtrar aquellos tuits que resultaran ofensivos. Pero, puesto que para comenzar no disponía de esa comprensión real sobre el lenguaje o los tuits, se puso a regurgitar todo lo que consumía. Tay es un ejemplo memorable (pero, por desgracia, fácil de olvidar) del carácter de sabio idiota que tiene la IA basada en datos.

29 de setembro de 2024

Madame Bovary



Gustave Flaubert
Madame Bovary (1857)

Madame Bovary é por certo a obra mais conhecida de Gustave Flaubert. Objecto de polémica na época da sua edição, levou o autor aos tribunais, acusado de ofensa à moral e à religião, acusações das quais foi absolvido. O livro aborda um tema recorrente da literatura realista do séc. XIX – o adultério da mulher –, e o inevitável anticlerialismo é expressado principalmente por uma personagem não muito favorecida, o farmacêutico Homais, um burguês egocêntrico e um tanto obtuso. Em linhas largas, a narrativa acompanha um pequeno médico de província, Charles Bovary que, depois de enviuvar, casa com Emma, uma jovem de origem camponesa que conhece após fazer um tratamento ao pai dela. A mediocridade de Charles impede-o de singrar na sua carreira, enquanto Emma se deixa enredar numa teia de ilusões e mentiras – como diz a sua sogra em determinado momento, o que ela precisava era de mais trabalho manual, menos mandriice, deixar de passar o tempo com livros maus. Charles nunca tem a mais leve suspeita do comportamento de Emma, que, manipuladora, leva sempre a sua vontade avante; para financiar as suas extravagâncias vai-se endividando progressivamente, até ao colapso final.
Madame Bovary divide-se em três partes e está estruturado de uma forma clara e sóbria, tal como a escrita que emprega.

Paris, mais vago que o oceano, cintilava assim aos olhos de Emma numa atmosfera cor de fogo. A multidão de vida que se agitava naquele tumulto dividia-se entretanto em diversas partes, era classificada em quadros distintos. Emma distinguia apenas dois ou três que lhe escondiam todos os outros e que, por si sós, representavam a humanidade inteira. O mundo dos embaixadores caminhava sobre soalhos lustrosos, em salões forrados de espelhos, em torno de mesas ovais cobertas de tapetes de veludo com franjas de ouro. Havia ali vestidos de cauda, grandes mistérios, angústias dissimuladas por trás dos sorrisos. Vinha a seguir a sociedade das duquesas; todos tinham uma cor pálida; levantavam-se às quatro horas; as mulheres, pobres anjos!, usavam rendas da Inglaterra na orla dos seus saiotes e os homens, capacidades ignoradas sob um exterior de futilidade, rebentavam cavalos por divertimento, iam passar em Bade a época de Verão e, finalmente, por volta dos quarenta anos, casavam-se com herdeiras. Nos gabinetes dos restaurantes onde se ceia depois da meia-noite divertia-se, à luz das velas, a multidão mista dos homens de letras e das actrizes. Esses eram pródigos como reis, cheios de ambições ideais e de delírios fantásticos. Era uma existência acima das restantes, entre o céu e terra, nas tempestades, qualquer coisa de sublime. Quanto ao resto das pessoas, perdia-se, sem lugar definido, como se não existisse. Aliás, quanto mais próximas estivessem as coisas, mais o pensamento se lhe desviava delas. Tudo quanto a rodeava de perto, o campo enfadonho, burguesinhos imbecis, mediocridade da existência, lhe parecia uma excepção no mundo, um acaso particular a que se achava ligada, enquanto para além se estendia, a perder de vista, o imenso país das felicidades e das paixões. Nos seus desejos, ela confundia as sensualidades do luxo com as alegrias do coração, a elegância dos costumes com as delicadezas do sentimento. Não precisaria o amor, como as plantas da Índia, de terrenos preparados, de uma temperatura determinada? Os suspiros ao luar, os abraços prolongados, as lágrimas correndo sobre as mãos que se abandonam, as febres da carne e a languidez da ternura não podem pois separar-se da varanda dos grandes palácios onde há muito tempo de lazer, ou de uma antecâmara com reposteiros de seda e uma espessa alcatifa, jardineiras bem enfeitadas e um leito sobre um estrado, ou ainda do cintilar das pedras preciosas e dos alamares das librés.

23 de setembro de 2024

La Guerra Oculta


Emmanuel Malynski
La Guerra Oculta (1936)

Polaco de naturalidade russa, Emmanuel Małyński é o autor deste ensaio radical e transgressivo que arremete contra uma série de tabus históricos, políticos e culturais cimentados no séc. XX e ainda demasiado arraigados. Léon de Poncins, que em algumas edições figura como co-autor, apesar de ter igualmente uma bibliografia digna de interesse, redigiu aqui um resumo das teses expostas nos 25 volumes de La Mission du Peuple de Dieu, escritos pelo seu amigo Malynski. De destacar o Prefácio de Julius Evola, vindo da tradução italiana de 1939, e o Apêndice de Edoardo Longo, onde se afirma, justamente, que “Malynski proporciona as armas mais eficazes para a compreensão das dinâmicas reais da História”.
La Guerra Oculta analisa o impacto dos desenvolvimentos históricos decorridos na centúria entre o Congresso de Viena, em 1815, e a Revolução de Outubro na Rússia. Percorre-se, assim, a Guerra da Crimeia, o papel de Napoleão III e do 2.º Império, a chancelaria de Bismarck, a Comuna de Paris, a importância da reforma agrária de Stolypin na Rússia czarista (interrompida pelo seu assassínio às mãos de um judeu), a Grande Guerra (destinada a derrubar três potências europeias: a Rússia czarista, a Alemanha monárquica e a Áustria católica – conseguindo ainda, como bónus, o fim do império Otomano – impondo formas políticas demo-liberais, de acordo com os interesses hebraicos), a Conferência de Paris de 1919, e como o capitalismo ocidental preparou as condições para o triunfo do bolchevismo na Rússia, com uma análise mais aprofundada da História das duas primeiras décadas do séc. XX neste país.
A partir do conceito de “guerra oculta” aplicado ao estudo histórico, Malynski expõe a estratégia subjacente à orientação para um determinado fim de acontecimentos aparentemente casuais e isolados, que aparecem deste modo sob uma luz diferente e reveladora. Uma força determinada e com objectivos a longo prazo, actuando discretamente sobre os acontecimentos, com uma estratégia hegemónica racial, cultural, económica, religiosa e política.

Bismarck no verá como Metternich dos frentes internacionales e históricos en las fases de una lucha que continuaban por generaciones. Él no se daba cuenta que Europa estaba por devenir un solo organismo, con órganos reaccionantes cada vez más los unos sobre los otros. Él discernía sólo el provecho inmediato que la Prusia monárquica podía obtener, deviniendo en el instrumento de la ubiquidad capitalista, aun cuando ello fuera en desventaja de la idea monárquica en general. Él fue un gran prusiano, pero un pequeño europeo.
Él sabía que la monarquía es un elemento de fuerza y lo quería para su país; pero, por la misma razón, quería el liberalismo para los adversarios o posibles competidores de su país, viendo en ello un elemento de debilidad y de inferioridad. Y adversarios eventuales eran todos, ya que Alemania debía estar por encima de todos, über alles.
Él humilló y debilitó Austria, esa ciudadela de la aristocracia feudal. Él luchó contra el catolicismo y la Santa Sede, es decir, contra el principio fundamental del derecho divino. Y dicha lucha la llamó Kulturkampf, lucha por la civilización. ¿No es la jerga de los hombres del "progreso" y de las logias?
Él contribuyó a fomentar la república y la democracia en Francia, con el objeto de debilitar, humillar y mortificar esta gran nación.
En cuanto a su misma patria, él debía reducir el feudalismo, que constituía su armazón social, a una fachada y sustituirlo por el estatismo burocrático, como lo había hecho Richelieu en Francia, olvidando que un simple cambio de persona, en esas condiciones, había hecho posible su transformación en una democracia y en un socialismo de estado. Por ello, debía dejarse seducir por los espejismos del capitalismo imperialista. Todo ello, porque él, cegado por el orgullo nacionalista, creía en la inmunidad excepcional del elemento prusiano.
Y él empujó su país, y, automáticamente a todos los demás, sobre la senda del armamentismo, hasta el momento en que la circunscripción general, es decir, la masa armada, se volvió reglamentaria en toda Europa. Ingenuamente, en ello, él veía el aumento de la potencia militar de Alemania frente a sus vecinos; él olvidaba que estos vecinos le habrían seguido por el mismo camino, por lo que las posiciones habrían quedado más o menos como antes. Pero las posiciones cambiaban en Alemania, y en otras partes, y en modo alarmante, respecto de una eventual lucha de clases; y ya no estaba permitido a un hombre de estado europeo, digno de este nombre, ignorar este peligro en la segunda mitad del siglo XVIII y, con mayor razón aún, en el primer cuarto del siglo XIX.
Del mismo modo, los romanos de la decadencia enseñaban la ciencia militar a los bárbaros que componían las legiones, para luego enviarlos a sus tierras de origen, a que estuvieran bien preparados para invadir, saquear y someter al imperio.
El incremento de los armamentos, asumiendo proporciones gigantescas, obligó al estado a seguir una política fiscal en gran escala, con el único fin de estar en condiciones de pagar los intereses de los préstamos. Fue una política de endeudamiento progresivo, con un capital no redimible, porque devorado por gastos que, justificados únicamente por la perspectiva de una guerra, en el momento inmediato eran fructíferos sólo para la ubicuidad internacional del oro hebreo. Dichos gastos eran siempre necesarios para estar al día en la carrera armamentista, de modo que la riqueza de los particulares, siempre más endeudados con la alta finanza y el hebreo a través del estado, de sólida y tangible que era, se deshizo progresivamente y se deslizó en las cajas de fondos de las finanzas preponderantemente hebraicas, bajo la forma fácilmente movible de oro y títulos.
La política general de Bismarck habría sido excusable e incluso normal unos siglos antes. Entonces los estados monárquicos no tenían enemigos internos, o bien, estos enemigos eran sólo accidentales, no permanentes; actuaban cada uno por su cuenta y no constituían un frente internacional único, con columnas nacionales ejecutando un plan estratégico de conjunto, siguiendo una común inspiración. Entonces los emperadores podían pelear impunemente con los papas, los reyes con los reyes y los grandes vasallos de la corona; los prelados, finalmente con los príncipes porque no existía un terrible enemigo común y omnipresente, trabajando para la perdición y la ruina de todos ellos. En cambio, en los tiempos de Bismarck, este enemigo ya existía y no podía pedir nada mejor que aliarse a uno u otro elemento o estado, según las oportunidades, y al final, quedar dueño del campo de batalla sin haber corrido el menor riesgo.
Una política así, después de 1848, y ya después de la Revolución Francesa, era peligrosísima.

18 de setembro de 2024

História da Literatura Universal, I - III


Eduardo Iáñez
História da Literatura Universal, I - III
Vol. I – As Literaturas Antigas e Clássicas (1989)
Vol. II – A Idade Média (1989)
Vol. III – O Renascimento Literário Europeu (1989)


A História da Literatura Universal, de Eduardo Iáñez, foi publicada inicialmente em Espanha e, poucos anos depois, conheceu edição portuguesa. É uma extensa monografia, em nove volumes, de informação necessariamente abreviada. Cada parágrafo poderia ser tema para um livro, e o mesmo até se aplicará, por vezes, a cada frase. Uma vida inteira não seria suficiente para ler os livros inventariados, sendo, não obstante, uma boa sistematização de nomes e títulos, com a informação essencial, ordenada cronológica e geograficamente, extremamente útil como livro de consulta, ou como sugestão de leituras.
O Vol. I divide-se entre a literatura oriental antiga (egípcia, mesopotâmica, hebraica, indiana, chinesa), as literaturas clássicas (grega, romana) e a literatura cristã. O Vol. II inclui a literatura greco-latina medieval (bizantina, latina medieval), literatura islâmica clássica (árabe, persa, hispano-islâmica), literaturas célticas, germânicas (anglo-saxónica, germana, islandesa) e as literaturas nacionais europeias (francesa, provençal, galaico-portuguesa, catalã, castelhana, alemã, inglesa, italiana). O Vol. III inclui as literaturas do Renascimento europeu na Itália, França, Espanha, Portugal, Alemanha e Inglaterra.
Como exemplo, fica um excerto de cada um dos volumes.

Temos de ter em conta, para toda a produção de Homero e, em geral, para a produção clássica ocidental, que a lenda era a forma usual de transmissão das grandes façanhas históricas, isto é, a maneira como o povo vivia a sua história e à qual concedia um valor no todo similar ao que hoje concedemos ao trabalho historiográfico de cariz científico. Não é por isso de estranhar que todas estas lendas que se vinham transmitindo oralmente tomassem posteriormente uma forma literária e – concretamente para as gestas heróicas – épica.
Para o que em particular nos interessa, não se pode esquecer que existiam muitos destes poemas épicos referentes à Guerra de Tróia, êxito que haveria de revelar-se como transcendente para o povo grego. Isto não quer dizer que Homero, para a sua Ilíada, fizesse com eles uma espécie de selecção, simplificação ou justaposição, mas que o autor apenas se serviu do antigo material que a tradição lhe oferecia para realizar a sua obra como uma produção totalmente nova. No que toca ao ambiente, o da Odisseia é totalmente distinto do mundo da Ilíada: aquela não deve a sua origem a lendas heróicas ou a feitos históricos, sendo os seus motivos geralmente fabulosos e míticos, numa linha que a aproxima grandemente – pelo que a trama tem de intrincado – do novelesco. Enquanto a Ilíada é de carácter plenamente marcial e belicoso, a Odisseia apresenta-se mais suave e tranquila, facto que leva a considerá-las, até quase à entrada da época contemporânea, como produção, respectivamente, de juventude e madureza, e, por sua vez, consideradas, por estas mesmas características, epopeia e novela épica claramente diferenciadas no seu tom e orientação.

Mas a sua melhor produção é, sem dúvida, Persival (ou Conto do Graal), escrito entre os anos 1181 e 1190, e inacabada, talvez pela complexidade que a sua composição encerra. Sucesso magistral no lendário, este roman foi, até aos nossos dias, a compilação mais perfeita do tema arturiano naquilo que contém de misterioso, irreal e simbólico. As interpretações sucederam-se, sobretudo devido ao seu carácter incompleto, e ainda hoje não se conhece claramente qual era a intenção última de Chrétien ao compor a obra. Persival torna-se o símbolo do cavaleiro que aí chegou por convencimento íntimo e, sobretudo, pela fé nos seus ideais.
Separado da corte pela sua mãe, vive, em criança, como um selvagem num bosque; mas ao passarem por ali uns cavaleiros, fica deslumbrado com a beleza das suas armas e decide ir à corte de Artur, onde recebe ensinamentos de cavalaria, até se armar. Ali, apaixona-se por Brancaflor e, numa das suas aventuras, surge frente a um castelo onde é acolhido pelo rei Pescador e onde um pajem e uma donzela aparecem com uma lança gotejante de sangue e um graal (taça de pé comprido) que irradia uma grande luminosidade. Não pergunta o seu significado e, ao deixar o castelo, este desaparece. Regressado à corte, narra a estranha aventura e todos os cavaleiros da Távola Redonda saem em busca do castelo e do graal, que julgam conter uma hóstia da qual se alimenta o pai do rei Pescador, o rei Tulido, por sua vez tio de Persival, doente devido a um encantamento do qual poderia ter-se livrado apenas se o cavaleiro tivesse perguntado o significado dos objectos (que parecem inequivocamente relacionados com a Paixão de Jesus Cristo e a Eucaristia). A obra fica inacabada, e todo o simbolismo que encerra, inconcluído, serviu para que a lenda fosse continuada posteriormente.

Prosador por excelência, Cervantes transcende com a sua obra o simples nome de «prosa» que temos dado até agora às obras narrativas europeias e, por isso, produz uma verdadeira «novela» conforme hoje a entendemos. E isto não porque, como afirma nas suas Novelas Exemplares, seja ele «o primeiro que enovelou em prosa na língua castelhana; que as muitas novelas que nela já estavam impressas, todas são traduzidas de línguas estrangeiras», mas sobretudo porque a sua obra não se limita a uma concepção novelística conforme era entendida no Renascimento. Ou seja, Cervantes supera os pressupostos novelísticos da narrativa europeia – devedora da italianizante, via Bocácio e mais tarde através de Bandellon –, a que ele mesmo esteve limitado nas suas Novelas Exemplares, graças a uma obra magistral, o Quixote, a primeira novela em sentido moderno que encontramos na história da literatura universal, até ao ponto de não ser compreendida senão no século XIX, momento de criação do que hoje consideramos como verdadeira «novela» na tradição ocidental.
Em Espanha, os sucessos narrativos de Cervantes, em si magistrais, não foram prosseguidos até ao século XIX: no que diz respeito à novela longa, de que é um prelúdio, não se segue a tradição cervantina; a novela de cavalaria, pelo seu lado, estava já esgotada quando Cervantes escreve o Quixote; o mesmo sucedia com a novela pastoril, de pouca importância em Espanha, e com a novela bizantina, recuperada à luz de certas condições muito particulares. Depois de Cervantes, portanto, o género revelou-se em franca decadência, embora autores tradicionais e satíricos posteriores tivessem conseguido produzir obras realmente válidas, mas pouco «narrativas», ou seja, desinteressadas pelos aspectos de construção novelística e seguidoras da linha tradicional de narração, mais cingida ao quadro descritivo do que à acção e à integração estrutural, praticamente nula.

7 de setembro de 2024

Bestiario


Julio Cortázar
Bestiario (1951)

Composto por oito contos, Bestiário é uma das primeiras obras de Julio Cortázar, num formato em que é reconhecida a sua mestria. Há por certo algum paralelo com os contos de outro argentino seu contemporâneo, Jorge Luis Borges, entre o real e o fantástico, sendo por isso associado tanto ao surrealismo como ao realismo mágico. Encontram-se, no entanto, cenas quase de pesadelo; como no conto inicial, onde dois irmãos se vêem desalojados da casa herdada da família por uma entidade malévola que não chega a ser descrita; ou noutro conto, onde o protagonista vomita, com cada vez maior frequência, coelhinhos que depois crescem e roem tudo; ou, num terceiro exemplo, onde uma rapariga se dedica ao refinamento na arte fabrico de bombons, insistindo com o seu noivo para prová-los, até que este descobre que ela utiliza baratas entre os seus ingredientes...
O excerto pertence a “Ómnibus”, o quarto conto.

Buscando las monedas en el bolso lleno de cosas, se demoró en pagar el boleto. El guarda esperaba con cara de pocos amigos, retacón y compadre sobre sus piernas combadas, canchero para aguantar los virajes y las frenadas. Dos veces le dijo Clara: "De quince", sin que el tipo le sacara los ojos de encima, como extrañado de algo. Después le dio el boleto rosado, y Clara se acordó de un verso de infancia, algo como: "Marca, marca, boletero, un boleto azul o rosa; canta, canta alguna cosa, mientras cuentas el dinero." Sonriendo para ella buscó asiento hacia el fondo, halló vacío el que correspondía a Puerta de Emergencia, y se instaló con el menudo placer de propietario que siempre da el lado de la ventanilla. Entonces vio que el guarda la seguía mirando. Y en la esquina del puente de Avenida San Martín, antes de virar, el conductor se dio vuelta y también la miró, con trabajo por la distancia pero buscando hasta distinguirla muy hundida en su asiento. Era un rubio huesudo con cara de hambre, que cambió unas palabras con el guarda, los dos miraron a Clara, se miraron entre ellos, el ómnibus dio un salto y se metió por Chorroarín a toda carrera.
"Par de estúpidos", pensó Clara entre halagada y nerviosa. Ocupada en guardar su boleto en el monedero, observó de reojo a la señora del gran ramo de claveles que viajaba en el asiento de adelante. Entonces la señora la miró a ella, por sobre el ramo se dio vuelta y la miró dulcemente como una vaca sobre un cerco, y Clara sacó un espejito y estuvo en seguida absorta en el estudio de sus labios y sus cejas. Sentía ya en la nuca una impresión desagradable; la sospecha de otra impertinencia la hizo darse vuelta con rapidez, enojada de veras. A dos centímetros de su cara estaban los ojos de un viejo de cuello duro, con un ramo de margaritas componiendo un olor casi nauseabundo. En el fondo del ómnibus, instalados en el largo asiento verde, todos los pasajeros miraron hacia Clara, parecían criticar alguna cosa en Clara que sostuvo sus miradas con un esfuerzo creciente, sintiendo que cada vez era más difícil, no por la coincidencia de los ojos en ella ni por los ramos que llevaban los pasajeros; más bien porque había esperado un desenlace amable, una razón de risa como tener un tizne en la nariz (pero no lo tenía); y sobre su comienzo de risa se posaban helándola esas miradas atentas y continuas, como si los ramos la estuvieran mirando.

4 de setembro de 2024

A Missão

Ferreira de Castro
A Missão (1954)

A edição original de A Missão contém ainda dois outros textos: a novela A Experiência e um segundo conto, O Senhor dos Navegantes. A Missão, passada num convento em França, nos primeiros dias da 2GM, coloca os missionários perante um dilema: sendo o convento muito parecido com uma fábrica dos arredores, esta um potencial alvo de bombardeamento aéreo, será legítimo aos religiosos salvaguardar a sua presença com uma pintura no telhado, o que facilitará a identificação do alvo correcto, pondo em risco a vida de quatrocentos operários fabris? Ou deverão deixar tudo como está, entregando-se nas mãos da providência divina? E a finalidade dos treze religiosos será a de salvar vidas ou salvar almas? E a sua eventual morte não impedirá a salvação de muitas mais almas no futuro? A argumentação cruzada e a incapacidade de tomar a decisão são o tema deste primeiro conto.
A Experiência, o texto mais extenso do livro, em tons neo-realistas, conta as histórias paralelas de dois antigos alunos de um asilo de infância desvalida (três, se contarmos com a mulher que está presa) a quem a vida fustigou: Januário, prestes a ser julgado por roubo e tentativa de homicídio, e Clarinda, mulher da vida por quem ele teve uma paixoneta nos tempos do asilo, que agora se compadece e o ajuda. A “experiência” do título refere-se à fundação do asilo, por um proprietário local que, por testamento, pretendia que fosse ali ministrada uma nova educação, baseada em valores mais humanistas, mas o projecto acabou por falhar, sendo o edifício convertido na prisão onde decorre a maior parte do enredo.
O último texto, O Senhor dos Navegantes, é quase um monólogo, junto a uma ermida no topo de um monte com vista para o mar, onde se apresenta ao visitante uma personagem a lamentar-se das imperfeições da Criação, reconhecendo os seus erros e pontos fracos, deixando o visitante sem perceber se está a falar com Deus ou com um foragido do manicómio.

Assim, naquela tarde, depois do conselho, os negros sapatos de verniz abandonaram a sua rota habitual e aventuraram-se por sombria travessa, que jamais haviam percorrido. Ora marchavam devagar, um pouco distraídos, abstractos, como se participassem da meditação que se efectuava lá em cima, na outra extremidade, no velho tronco lembravam à vista as alegrias claras da Terra, os paredões da fábrica, ao contrário, ressumavam uma densa tristeza, com sua escuridade de séculos caídos e suas janelas de vidros sujos e frondosas teias de aranha. Dir-se-ia existir uma desconsideração da própria natureza pela fábrica.
O Superior desconhecia os verdadeiros motivos porque as freiras não se haviam instalado ali. Parecia-lhe, porém, que o ludroso casarão devia ter tido sempre aquele ar de excomungado, como se debaixo da sua primeira pedra houvessem posto, não uma memória destinada à posteridade, mas uma secreta maldição.
Lentamente, ele voltou a examinar a metamorfose que, apesar de tudo, se dera, momentos antes, nos valores, enraizados no seu espírito. De repente, a pedra esquecida, sepultada nas profundidades dos alicerces, vinha à superfície, crescia, levitava-se e pairava sobre ele, adquirindo uma importância inesperada. O Superior tentou, então, reagir contra o sacrifício que lhe pediam.
Recomeçara o andamento e ia caminhando sempre com aquela cor nos olhos. As pequenas casas proletárias que circundavam o grande edifício, casinholas dum só piso, ligadas umas às outras, estavam revestidas da mesma escuridade e da mesma melancolia da fábrica, uma melancolia que se agarrava à escuridade como uma segunda camada de tinta, uma melancolia que parecia localizada, ter fronteiras na aldeia, limites tão nítidos como os duma ilha. Crianças enquadradas nas portas viam-no passar; algumas baixavam os olhos, envergonhadas, outras sorriam-lhe com reservas quando ele lhes remetia, de longe, um aceno carinhoso e ambulante.

Li anteriormente:
A Selva (1930)

1 de setembro de 2024

Los Relatos de Belkin

 

Aleksandr Pushkin
Los Relatos de Belkin (1831)

Aleksandr Pushkin foi o primeiro grande vulto da literatura russa moderna, primeiramente pela obra poética, e de igual modo no teatro e na prosa, fazendo a transição do romantismo para o realismo, tornando-se numa influência determinante sobre os grandes nomes da literatura russa do séc. XIX. Os Contos de Belkin, também conhecidos por uma série de variações à volta do título Contos do defunto Iván Petróvich Belkin, pertencem à primeira fase dos trabalhos em prosa, concluídos e editados quando Pushkin tinha já nome feito na poesia. Os cinco contos que compõem este livro, escritos de uma assentada no Outono de 1830, inauguram de facto a nova literatura russa, influenciados pelas formas que tinham surgido em França e Inglaterra, e adaptados à realidade russa. São narrativas simples, com inesperadas reviravoltas no final, algo teatrais, atribuídas ao imaginário Iván Petróvich Belkin, cujos manuscritos teriam sido seleccionados pelo seu editor para publicação em livro póstumo. O excerto pertence ao terceiro conto, “O Fabricante de Caixões”.

Al acercarse a la casita amarilla que desde hacía tanto tiempo cautivaba su imaginación y que por fin había adquirido por una respetable suma, el viejo fabricante de ataúdes advirtió con asombro que su corazón no se regocijaba. Al traspasar el desconocido umbral y encontrar su nueva morada en pleno desorden, suspiró recordando la vetusta casucha en la que durante dieciocho años todo había estado sometido al orden más riguroso; después de reñir a sus dos hijas y la criada por su lentitud, se dispuso a ayudarlas. Pronto estuvo todo en su sitio: el retablo de los íconos, el armario de la vajilla, la mesa, el diván y la cama ocuparon los lugares que él les había destinado en la habitación interior; en la cocina y en la sala encontraron sitio los artículos propios de la profesión del dueño: ataúdes de todos los colores y tamaños; sombreros, capas y antorchas. Sobre la puerta, un cartel representaba un robusto Cupido con una antorcha vuelta hacia abajo en la mano y la inscripción: «Se venden y tapizan ataúdes sencillos y pintados. También se alquilan y reparan los viejos.» Las muchachas se retiraron a su habitación y Adrián, después de pasar revista a su vivienda, se sentó junto a la ventana y ordenó que preparasen el samovar.
El culto lector sabe que Shakespeare y Walter Scott presentaban a sus sepultureros como hombres alegres y burlones para impresionarnos más con el contraste. Por respeto a la verdad, nosotros no podemos seguir su ejemplo y nos vemos obligados a confesar que el carácter de nuestro fabricante de ataúdes correspondía por entero a su lúgubre oficio. Adrián Prójorov se mostraba de ordinario sombrío y taciturno. Únicamente salía de su silencio para reñir a sus hijas cuando las sorprendía sin hacer nada, mirando por la ventana a los transeúntes, o para pedir un precio excesivo por sus obras a quienes tenían la desgracia (o a veces el placer) de necesitarlas. Así, pues, mientras tomaba la séptima taza de té sentado junto a la ventana, Adrián, fiel a su costumbre, se hallaba sumido en tristes meditaciones. Pensaba en la lluvia torrencial que una semana antes había caído en las mismas puertas de la ciudad sobre el entierro de un brigadier retirado. Esto había sido la causa de que muchas capas se hubiesen encogido y de que muchos sombreros se hubiesen arrugado. Preveía gastos inevitables, pues los antiguos atavíos fúnebres de que disponía se encontraban en lastimoso estado. Confiaba en resarcirse de los gastos a expensas de la vieja comerciante Triújina, que ya llevaba casi un año muriéndose. Pero la Triújina se moría en la calle Razguliái y Prójorov temía que los herederos, a pesar de sus promesas, se resistieran a mandar a buscarle desde tan lejos y recurriesen a los servicios de un establecimiento de pompas fúnebres más cercano.
Estas meditaciones fueron interrumpidas por tres golpes masónicos en la puerta.

28 de agosto de 2024

Reflexiones Contra la Modernidad

 


Eduard Alcántara
Reflexiones Contra la Modernidad (2013)

Reflexiones contra la Modernidad é composto por uma selecção de 19 textos, publicados entre 2009 e 2012 no excelente blog Septentrionis Lux, de Eduard Alcántara, que continua activo. A influência de Julius Evola é notória e assumida, para além de um punhado desses textos dedicados exclusivamente ao pensador italiano. O próprio título do livro glosa de algum modo o incontornável Revolta Contra o Mundo Moderno. Em determinado ponto conta-se que a Evola desagradava ser considerado “filósofo da Tradição”, por considerar que filosofar é um exercício mental destinado a elaborar novas teorias ou sistemas de pensamento, e que, pelo contrário, ele não desejava transmitir nada de novo, mas transmitir e sistematizar o saber da Tradição, preferindo, em vez de filósofo, ser considerado como “intérprete da Tradição”. Deste modo, também não vou fazer a desfeita de apelidar aqui Eduard Alcántara de filósofo, pois será mais acertado considerá-lo igualmente como outro “intérprete da Tradição” – e este livro prova-o à saciedade.

Si la Edad de Oro equivale al Mundo de la Tradición Primordial y puede ser calificada como la Edad del Ser y de la Estabilidad (de ahí su mayor duración) las restantes edades comportan la irrupción de un mundo moderno que puede, a su vez, ser denominado como mundo del devenir y del cambio (de ahí la cada vez menor duración de sus sucesivas edades). En verdad, no en balde, se puede constatar que en los últimos 50 años la vida y las costumbres han cambiado mucho más de lo que habían cambiado en los 500 años anteriores. Los traumáticos conflictos generacionales que se sufren, hoy en día, entre padres e hijos no se habían dado nunca en épocas anteriores (al menos con esta intensidad) debido a que los cambios en gustos, aficiones, hábitos y costumbres se sucedían con más lentitud. Los cambios bruscos, frenéticos y continuos propios de nuestros tiempos han dado lugar a lo que Evola definió como el hombre fugaz. Hombre fugaz que es el propio de la fase crepuscular por la que atraviesa la presente Edad de Hierro, caracterizada (esta fase) no ya por la hegemonía del Tercer ni del Cuarto Estado o casta (léase burguesía y proletariado) sino por la del que, con sagacidad premonitoria, Evola había previsto, pese a no haber vivido, como preponderancia del Quinto Estado o del financiero o especulador propio del presente mundo globalizado, gregario y sin referentes de ningún tipo. Este sujeto hegemónico en el Quinto Estado equivaldría al paria de las sociedades hindúes que no es más que aquél que ha sido infiel, innoble y disgresor para con su casta y ha sido expulsado del Sistema de Castas para convertirse en alguien descastado y sin tradición ni referentes. El hombre fugaz no se siente jamás satisfecho, vive en continua inquietud y convulsión. Su vacío existencial es inmenso y nada le llena. Intenta distraer dicho vacío con superficialidades, por ello su principal objetivo es poseer, tener y consumir compulsivamente. Cuando consigue poseer algo enseguida se siente insatisfecho porque ansía poseer otra cosa diferente, de más valor económico o de mayor apariencia para así poder impresionar a los demás. Y es que el mundo moderno es el mundo del tener y aparentar, en oposición del Mundo Tradicional que lo es del Ser. Este hombre fugaz se mueve por el aquí y ahora, pues lo que desea lo desea inmediatamente, no puede esperar. Su agitación no le permite pensar en el mañana.

25 de agosto de 2024

La Genealogía de la Moral

 

Friedrich Nietzsche
La Genealogía de la Moral (1887)

Se Para Além do Bem e do Mal era um complemento a Assim Falou Zaratustra, A Genealogia da Moral, com o subtítulo Uma Polémica, é uma tentativa de complementar e clarificar Para Além do Bem e do Mal. Mas, ao contrário do habitual, Nietzsche prescinde da escrita sob a forma de aforismos, e entrega aquele que é considerado o livro mais “sistemático”, composto por um prólogo e três tratados. O prólogo levanta a questão da origem da moral e os três tratados debruçam-se sobre os conceitos do “bom” e do “mau”, da “culpa” e “má consciência” e, por fim, os “ideais ascéticos”.
Aqui se reencontram
variações sobre as preocupações habituais em Nietzsche, e é caricato constatar como uma certa esquerda tentou apoderar-se do seu pensamento – ou por má-fé ou por estupidez – pois o conceito de “vontade de poder” subjacente é de uma natureza aristocrática e hierárquica, um exercício de domínio sem quaisquer contemplações ou sentimentalismos, cuja conclusão lógica poderia até apontar à psicopatia (“sob toda a oligarquia jaz, sempre escondida, a concupiscência tirânica”, afirma, sem uma sombra de censura implícita). Nietzsche nunca tem uma palavra de empatia pelos fracos, pelos desfavorecidos ou pelos oprimidos que essa esquerda acredita defender, pois o seu destino é submeter-se à “vontade de poder”. O super-homem de Nietzsche nunca foi o ser transumano, agora em voga, mas o Homem que se supera, sozinho com a sua capacidade e a sua força – e este foi o erro, porque ele não está à altura da tarefa.
Dos três tratados, o mais interessante é o último, pela dificuldade que Nietzsche manifesta em entender o “autodesprezo do homem” que escolhe a ascese, um “espírito que desata a sua fúria contra si próprio de um modo sacrílego e inútil”. Mais ainda,
no ponto 11 o autor considera que é difícil ao sacerdote ascético ser o melhor defensor do seu ideal, e por isso vai “ajudá-lo a defender-se” com a sua própria argumentação. Os excertos abaixo pertencem a este tratado.

Todo animal, y por tanto también la bête philosophe [el animal filósofo], tiende instintivamente a conseguir un optimum de las condiciones más favorables en que poder desahogar del todo su fuerza, y alcanza su maximum en el sentimiento de poder; todo animal, de manera asimismo instintiva, y con una finura de olfato que «está por encima de toda razón», siente horror frente a toda especie de perturbaciones y de impedimentos que se le interpongan o puedan interponérsele en este camino hacia el optimum (– de lo que hablo no es de su camino hacia la «felicidad», sino de su camino hacia el poder, hacia la acción, hacia el más poderoso hacer, y, de hecho, en la mayoría de los casos, su camino hacia la infelicidad). Y así el filósofo siente horror del matrimonio y de todo aquello que pudiera persuadirle a contraerlo, – el matrimonio como obstáculo y fatalidad en su camino hacia el optimum. ¿Qué gran filósofo ha estado casado hasta ahora? Heráclito, Platón, Descartes, Spinoza, Leibniz, Kant, Schopenhauer – no lo estuvieron; más aún, ni siquiera podemos imaginarlos casados. Un filósofo casado es un personaje de comedia, ésta es mi tesis: y por lo que se refiere a aquella excepción, Sócrates, parece que el malicioso Sócrates se casó ironice [por ironía], justamente para demostrar esta tesis. Todo filósofo diría lo mismo que dijo Buda en una ocasión, cuando le anunciaron el nacimiento de un hijo.. «Me ha nacido Râhula, una cadena ha sido forjada para mí» (Râhula significa aquí «un pequeño demonio»); a todo «espíritu libre» tendría que llegarle una hora de reflexión, suponiendo que haya tenido antes una hora vacía de pensamientos, como le llegó en otro tiempo al mismo Buda –«estrecha y oprimida, pensaba para sí, es la vida en la casa, un lugar de impureza; la libertad está en abandonar la casa»: «tan pronto como pensó esto abandonó la casa».
[...]
No existe, juzgando con rigor, una ciencia «libre de supuestos», el pensamiento de tal ciencia es impensable, es paralógico: siempre tiene que haber allí una filosofía, una «fe», para que de ésta extraiga la ciencia una dirección, un sentido, un límite, un método, un derecho a existir. (Quien lo entiende al revés, quien, por ejemplo, se dispone a asentar la filosofía «sobre una base rigurosamente científica», necesita primero, para ello, poner cabeza abajo no sólo la filosofía, sino también la misma verdad: ¡la peor ofensa al decoro que puede cometerse con dos damas tan respetables!) Sí, no hay duda –y aquí dejo hablar a mi Gaya ciencia, véase el libro quinto –«el hombre veraz, en aquel temerario y último sentido que la fe en la ciencia presupone, afirma con ello otro mundo distinto del de la vida, de la naturaleza y de la historia; y en la medida en que afirma ese 'otro mundo', ¿cómo?, ¿no tiene que negar, precisamente por ello, su opuesto, este mundo, nuestro mundo?... Nuestra fe en la ciencia reposa siempre sobre una fe metafísica –también nosotros los actuales hombres del conocimiento, nosotros los ateos y antimetafísicos, también nosotros extraemos nuestro fuego de aquella hoguera encendida por una fe milenaria, por aquella fe cristiana que fue también la fe de Platón, la creencia de que Dios es la verdad, de que la verdad es divina... ¿Pero cómo es esto posible, si precisamente tal cosa se vuelve cada vez más increíble, si ya no hay nada que se revele como divino, salvo el error, la ceguera, la mentira, – si Dios mismo se revela como nuestra más larga mentira?»
[...]
¡Todo mi respeto para el ideal ascético, en la medida en que sea honesto!, ¡mientras crea en sí mismo y no nos dé el chasco! Pero no soporto a todas esas chinches coquetas, cuya ambición es insaciable en punto a oler a infinito, hasta que por fin lo infinito acaba por oler a chinches; no soporto los sepulcros blanqueados que parodian la vida; no soporto a los fatigados y acabados que se envuelven en sabiduría y miran «objetivamente»; no soporto a los agitadores ataviados de héroes, que colocan el manto de invisibilidad del ideal en torno a ese manojo de paja que es su cabeza; no soporto a los artistas ambiciosos, que quisieran representar e] papel de ascetas y de sacerdotes y que no son en el fondo más que trágicos bufones; tampoco soporto a ésos, a los recentísimos especuladores en idealismo, a los antisemitas, que hoy entornan sus ojos ala manera del hombre de bien cristiano-ario y que intentan excitar todos los elementos de animal cornudo propios del pueblo mediante un abuso, que acaba con toda paciencia, del medio más barato de agitación, la afectación moral (– el hecho de que en la Alemania actual no deje de obtener éxito toda especie de espíritus fraudulentos es algo que guarda relación con el deterioro poco a poco innegable y ya palpable del espíritu alemán, cuya causa yo la busco en una alimentación compuesta, con demasiada exclusividad, de periódicos, política, cervezas y música de Wagner, a lo que hay que añadir lo que constituye el presupuesto de esa dieta: primero, la clausura y la vanidad nacionales, el fuerte, pero angosto principio de Deurschland, Deutschland über Alles [Alemania, Alemania sobre todo], y después la paralysis agitans de las «ideas modernas»). Hoy Europa es rica e ingeniosa, sobre todo en punto a inventar estimulantes; parece que ninguna otra cosa necesita más que los «estimulantes», que el aguardiente: de aquí viene también la gigantesca falsificación en ideales, esos máximos aguardientes del espíritu, y asimismo el aire repugnante, maloliente, falaz y seudoalcohólico que se extiende por todas partes.

Li anteriormente:
Más allá del Bien y del Mal (1886)
O Anticristo (1888)
Assim Falou Zaratustra (1883)

17 de agosto de 2024

Um Conto de Duas Cidades


Charles Dickens
Um Conto de Duas Cidades (1859)

Este romance histórico de Charles Dickens, cujo título se refere às cidades de Londres e Paris, onde se desenrola a narrativa, situa-se na época da Revolução Francesa. Divide-se em três partes e conta com um número relativamente pequeno de personagens; a primeira parte, significativamente mais curta que as outras duas, serve para nos apresentar Jarvis Lorry, um importante funcionário de um banco londrino, Lucie Manette, uma jovem de origem francesa que sempre viveu em Inglaterra, e o resgate do Dr. Manette, seu pai, libertado após dezoito anos passados na Bastilha sem acusação formal. Na segunda parte desta obra, que se inicia cinco anos depois destes acontecimentos, são-nos apresentados o Sr. Stryver e Sydney Carton, dois advogados que trabalham em sociedade, e conseguem ilibar Charles Darnay num julgamento em que é acusado de traição. Darnay é outro francês, aristocrata, que se auto-exilou em Londres ocultando a sua verdadeira identidade, vivendo do seu trabalho como professor, e acaba por desposar Lucie.
Nestas muitas dezenas de páginas, que ocupam quase dois terços da obra, não há grandes desenvolvimentos do enredo; Dickens vai descrevendo quadros que ajudam a aprofundar o retrato psicológico das suas personagens, bem como o contexto social onde elas se movem, e fá-lo de forma magistral. Só no final desta segunda parte acontece a Revolução, e as diversas pontas narrativas agrupam-se e ganham movimento. Darnay, cujo tio – um marquês – tinha sido assassinado pouco tempo antes, recebe uma carta de um gestor das suas propriedades em França, encarcerado pelos revolucionários, pedindo-lhe ajuda para salvar a vida. Perante este dilema moral, de ajudar alguém inocente com o risco de perder a própria vida, Darnay não hesita e parte para Paris, constatando que a situação é bem mais perigosa do que imaginava, sendo conduzido à prisão quase de imediato. Reconstituindo a Paris do Terror, a partir de documentação histórica, encontramos, a partir deste ponto, uma panorâmica do ressentimento e da violência que explodiu com a Revolução, com os oprimidos transformados em opressores, enquanto Darnay, denunciado, é julgado duas vezes e condenado à guilhotina.

Viram uma aglomeração de homens e mulheres. Não eram numerosos o suficiente para lotar o pátio, pois não passavam de quarenta ou cinqüenta, ao todo. As pessoas que ocupavam o palácio os haviam deixado entrar para trabalhar na pedra de amolar. Evidentemente, a pedra fora instalada ali com esse propósito, já que o local era cômodo e isolado.
Mas que trabalhadores medonhos e que medonha tarefa!
A pedra de amolar possuía uma dupla manivela, girada febrilmente por dois homens, cujos rostos, visíveis quando seus longos cabelos agitavam-se para trás, eram mais horrendos e cruéis do que as máscaras dos mais selvagens bárbaros em seus mais assustadores rituais. Sobrancelhas falsas e bigodes falsos estavam colados em suas hediondas faces cobertas de sangue e de suor, retorcidas pelos gritos, os olhos esgazeados e vermelhos brilhando pela excitação bestial e falta de sono. À medida que esses brutos giravam e giravam a manivela, com os cabelos desgrenhados batendo-lhes nas frontes e nos pescoços, algumas das mulheres derramavam vinho em suas bocas para que bebessem; e o sangue que gotejava, mais o vinho que se entornava e mais as faíscas provocadas pelo atrito na pedra, toda essa maligna atmosfera parecia uma infernal mistura de sangue coagulado e fogo. A vista não detectava uma única criatura no grupo desprovida de manchas de sangue. Acotovelando-se para se sucederem na pedra de amolar, havia homens nus até a cintura, exibindo nódoas nos braços e no peito; homens vestindo toda a sorte de andrajos ensangüentados, homens ostentando diabolicamente pedaços de renda, laços e fitas de seda impregnados de sangue. Machadinhas, facas, baionetas, espadas, todas trazidas para serem afiadas, estavam rubras de sangue. Algumas espadas estavam presas aos pulsos daqueles que as empunhavam com tiras de linho e retalhos de vestidos: os atilhos variavam na espécie, mas não na cor. E quando os frenéticos usuários dessas armas as arrancavam das nuvens de faísca e disparavam para as ruas, a mesma tonalidade rubra lhes tingia os olhos desvairados, olhos que qualquer observador não embrutecido teria dado vinte anos de sua vida para petrificar com um tiro certeiro.
Tudo isso foi vislumbrado num átimo, como a visão de um homem antes de se afogar, ou a de qualquer ser humano diante da morte. Eles se retiraram da janela, e o médico procurou por uma explicação no rosto do amigo.
— Eles estão — o senhor Lorry cochichou, fitando de modo furtivo a porta trancada — assassinando os prisioneiros. Se o senhor tem certeza do que disse, se realmente tem o poder que julga ter, como acredito que tenha, apresente-se a esses demônios e peça-lhes que o levem a La Force. Talvez seja tarde demais; contudo, não há um minuto a perder.


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Grandes Esperanças (1861)

5 de agosto de 2024

The Space Merchants


Frederik Pohl & C.M. Kornbluth
The Space Merchants (1953)

Frederik Pohl tem algumas obras escritas em parceria com Cyril M. Kornbluth, prematuramente falecido em 1955, aos 34 anos. Quanto a The Space Merchants, foi originalmente seriada na revista Galaxy Science Fiction, em 1952, sob o título Gravy Planet, e publicada em livro no ano seguinte.
Passado numa sociedade onde a publicidade tem um peso gigantesco e as empresas de vendas são o verdadeiro poder multinacional, Mitchell Courtenay, o protagonista, vê-se promovido a director do departamento que vai comercializar a colonização de Vénus – um planeta aqui descrito como tendo uma atmosfera de formaldeído, temperaturas acima do ponto de ebulição da água e ventos de 800 km/h. A sua tarefa é preparar uma campanha sedutora que arregimente uns milhares de interessados em começar ali uma nova vida, num planeta que será terraformado, do qual a sua empresa detém o monopólio.
No entanto, Courtenay não chega a assumir o trabalho; cai numa cilada de um colega de trabalho e, quando retoma a consciência, tem uma nova identidade e vai a caminho da Costa Rica, com um contrato quase de escravo numa grande empresa de alimentação sintética. Ninguém acredita na sua história, porque a notícia da morte de Mitchell Courtenay veio no jornal. A partir daqui nasce uma verdadeira odisseia, durante a qual Courtenay vai recuperar a identidade, o poder, e a noiva, contra tudo e contra todos, e no percurso, vai aperceber-se que a torre de marfim das corporações assenta sobre uma imensa massa de consumidores manipulados sem qualquer escrúpulo.
A obra foi extremamente bem recebida desde as suas primeiras edições e é hoje considerada um clássico da FC, uma das melhores novelas dentro do género. Frederik Pohl veio a publicar uma sequela, em 1984, com o título The Merchants' War.

A morose little man in a bowler hat was waiting in the anteroom; when he heard my name he got up hastily and offered me his seat. Quite a change from the Chlorella days, Mitch, old boy, I told myself.
Our attache came flustering out to greet me; I calmed him and explained what I wanted.
"Easiest thing in the world, Mr. Courtenay," he promised. "I'll get the enabling bill put through committee this afternoon, and with any luck at all it'll clear both houses tonight."
I said expansively, "Fine. Need any backing?"
"Oh, I don't think so, Mr. Courtenay. Might be nice for you to address the House in the morning, if you can find the time. They'd love to hear from you, and it would smooth things over a little for a quick passage."
"Glad to," I said, reaching down for my bag.
The man in the bowler hat beat me to it and handed it to me with a little bow.
"Just set your time, Abels," I told the legate. "I'll be there."
"Thank you very much, Mr. Courtenay!"
He opened the door for me. The little man said tentatively:
"Mr. Abels?"
The legate shook his head.
"You can see how busy I am," he said, not unkindly. "Come back tomorrow."
The little man smiled gratefully and followed me out the door. We both hailed a cab and he opened the door for me. You know what cabs are like in Washington.
"Can I drop you anywhere?" I asked.
"It's very good of you," he said, and followed me in.
The driver leaned back on his pedals and looked in at us.
I told him: "The Park Starr for me. But drop the other gentleman off first."
"Sure." The driver nodded. "White House, Mr. President?"
"Yes, please," said the little man.


Li anteriormente:
O Dia em que o Sol Desapareceu (1959)

28 de xullo de 2024

El Último Exorcista


Gabriele Amorth
El Último Exorcista (2012)

Com o subtítulo Mi batalla contra Satanás, El Último Exorcista é um dos vários livros que o padre Gabriele Amorth escreveu sobre o mesmo tema, desde Un esorcista racconta, de 1991. O seu trabalho em demonologia valeu-lhe o reconhecimento geral e, em 1985, foi oficialmente nomeado exorcista pela Diocese de Roma.
Ainda assim, este livro, escrito com a colaboração do jornalista Paolo Rodari, destina-se não a repetir, mas a complementar quanto já foi dito em livros anteriores, conforme se afirma no Prólogo. Numa época em que algumas correntes no interior da própria Igreja Católica desvalorizam – quando não refutam liminarmente – a existência de Satanás, este livro, pelo seu testemunho arrepiante, vem-nos recordar que a luta contra o Mal é uma constante de todos os tempos. E que a maior mentira do demónio é, precisamente, fazer-nos acreditar que ele não existe.

Si a estas dos grandes carencias, de estudio y de experiencia directa, añadimos los errores doctrinales de tantos teólogos o biblistas que llegan incluso a negar los exorcismos del Evangelio, considerándolos «lenguaje cultural», «adaptación a la mentalidad de la época», entendemos bien en qué abismo nos encontramos. Es verdad que contra estos errores se ha levantado la voz de los Pontífices, sobre todo de Pablo VI y Juan Pablo II, y hoy también la voz de Benedicto XVI; es verdad que la Congregación para la Doctrina de la Fe publicó el 26 de junio de 1975, incluyéndolo en los documentos oficiales de la Santa Sede, un documento dedicado a la demonología, pero todo esto no basta. La incredulidad acerca de la existencia de Satanás se ha difundido y no le permite a la gente defenderse del enemigo, salvarse de sus garras infernales.
Una gran culpa en la Iglesia católica la tienen los obispos. ¿No les corresponde acaso nombrar en las propias diócesis al menos un exorcista? Sí, a ellos les toca. Pero con frecuencia no hacen nada. ¿Por qué? Porque son ignorantes en la materia. Porque no han estudiado. Porque no creen hasta el fondo lo que está escrito en el Evangelio, pero sobre todo porque, lamento decirlo, no han asistido nunca a un exorcismo. No lo entiendo: a los aspirantes a médico, aunque lleguen o no a ser cirujanos, se les hace asistir a operaciones quirúrgicas. ¿Por qué con los seminaristas las facultades teológicas no adoptan el mismo método? ¡Que los hagan asistir a exorcismos! No importa si después no se convierten en exorcistas. Por lo menos ven y se dan cuenta de lo que es una posesión, de cuánto mal puede hacer el diablo, un mal que puede llevar a la muerte. Es difícil creer en la existencia de Satanás si jamás se ha asistido a un exorcismo. Añado también que este abandono de tres siglos de la práctica de los exorcismos ha producido el efecto de que a los ojos de muchos los mismos exorcismos parezcan algo abominable, monstruoso, a los que se ha de recurrir absolutamente lo menos que se pueda, o mejor aún si no se hacen nunca.
Hoy en la Iglesia latina encontrar un exorcista es difícil. Solo en Italia se ha hecho algo. La mayoría de las demás naciones, por desgracia, no tienen exorcistas. Por eso la gente busca magos, cartománticos y a menudo satánicos. La Iglesia católica duerme, pero debería saber que Satanás no duerme nunca. Siempre está despierto, vigilante, preparado para atacar.

23 de xullo de 2024

Seven Gothic Tales


Isak Dinesen [Karen Blixen]
Seven Gothic Tales (1934)

Editado originalmente em língua inglesa sob pseudónimo, este livro da dinamarquesa Karen Blixen é exactamente o que o seu título promete: sete contos na fronteira do sobrenatural. São ambientados no séc. XIX e a própria escrita contém um certo gosto novecentista. Além do elemento insólito, discretamente colocado em cada um dos contos, encontram-se também alusões a factos históricos e alguns ténues elementos das linhas narrativas reaparecem esparsamente aqui e ali.
O excerto abaixo pertence ao conto “The Supper at Elsinore”.

All in all, Morten's countenance was quiet, considerate, and dignified, as it had always been.
"Good evening, little sisters; well met, well met," he said, "it was very sweet and sisterly of you to come and see me here. You had a—" he stopped a moment, as if searching for his word, as if not in the habit of speaking much with other people—"a nice fresh drive to Elsinore, I should say," he concluded.
His sisters sat with their faces toward him, as pale as he. Morten had always been wont to speak very lowly, in contrast to themselves. Thus a discussion between the sisters might be carried on with the two speaking at the same time, on the chance of the one shrill voice drowning the other. But if you wanted to hear what Morten said, you had to listen. He spoke in just the same way now, and they had been prepared for his appearance, more or less, but not for his voice.
They listened then as they had done before. But they were longing to do more. As they had set eyes on him they had turned their slim torsos all around in their chairs. Could they not touch him? No, they knew that to be out of the question. They had not been reading ghost stories all their lives for nothing. And this very thing recalled to them the old days, when, for these private supper-parties of theirs, Morten had come in at times, his large cloak soaked with rain and sea water, shining, black and rough like a shark's skin, or glazed over with snow, or freshly tarred, so that they had, laughing, held him at arm's length off their frocks. Oh, how thoroughly had the tunes of thirty years ago been transposed from a major to a minor key! From what blizzards had he come in tonight? With what sort of tar was he tarred?
"How are you, my dears?" he asked. "Do you have as merry a time in Copenhagen as in the old days at Elsinore?"
"And how are you yourself, Morten?" asked Fanny, her voice a full octave higher than his. "You are looking a real, fine privateer captain. You are bringing all the full, spiced, trade winds into our nunnery of Elsinore."
"Yes, those are fine winds," said Morten.
"How far away you have been, Morten?" said Eliza, her voice trembling a little. "What a multitude of lovely places you have visited, that we have never seen! How I have wished, how I have wished that I were you."
Fanny gave her sister a quick strong glance. Had their thoughts gone up in a parallel motion from the snowy parks and streets of Copenhagen? Or did this quiet sister, younger than she, far less brilliant, speak the simple truth of her heart?
"Yes, Lizzie, my duck," said Morten. "I remember that. I have thought of that—how you used to cry and stamp your little feet and wring your hands shouting, 'Oh, I wish I were dead.'"
"Where do you come from, Morten?" Fanny asked him.
"I come from hell," said Morten. "I beg your pardon," he added, as he saw his sister wince. "I have come now, as you see, because the Sound is frozen over. I can come then. That is a rule."


Li anteriormente:
Out Of Africa (1937)

4 de xullo de 2024

Retorno de las Estrellas


Stanislaw Lem
Retorno de las Estrellas (1961)

Hal Bregg é um dos pilotos da Prometeo, um dos sobreviventes da expedição ao sistema de Fomalhaut, a 23 anos-luz da Terra, de regresso ao final de 10 anos de viagem. Contudo, devido aos esperados efeitos da relatividade sobre viagens interestelares a alta velocidade, na Terra passaram-se 127 anos; à sua idade biológica de 40 anos correspondem agora 157 anos reais. A adaptação à sociedade é preparada por uma instituição na Lua mas, logo no início do livro, Bregg arrisca voltar quanto antes à sua cidade natal, agora completamente irreconhecível. Com enormes dificuldades de adaptação a um mundo desconhecido – em duas ocasiões afirma que se sente como um homem de Neandertal – Bregg descobre, às próprias custas, que além do salto tecnológico, existe igualmente uma nova humanidade servida por autómatos, branda e avessa ao risco, resultado de um programa de “vacinação” patrocinado pela ONU e destinado a intervir sobre o comportamento, uma sociedade de lazer e entretenimento onde quase tudo é gratuito, com valores profundamente transformados, na qual a própria exploração espacial deixou de ter qualquer importância.
Este “Regresso das Estrelas”, narrado na primeira pessoa, é, assim, uma história de profunda solidão e inadaptação, primeiro no espaço (alguns episódios da viagem são descritos em flash-back) e depois entre os seus próprios semelhantes.

—¿Quiere decir que tengo el aspecto de un... anciano?
—De un anciano, no, más bien de un atleta..., pero al fin y al cabo, no se pasea desnudo. En especial cuando está sentado, su aspecto es..., bueno, una persona corriente le tomará por un anciano rejuvenecido. Rejuvenecido por una operación hormonal o algo similar.
—¡Qué se le va a hacer! —concluí.
Ignoraba por qué me sentía tan fatal bajo su mirada serena. Se quitó las gafas y las dejó sobre el escritorio. Tenía los ojos azules y un poco llorosos.
—Hay muchas cosas que no comprende, Bregg. Si tuviera que continuar siendo un asceta hasta el fin de su vida, tal vez su «¡qué se le va a hacer!» vendría a cuento, pero... esta sociedad a la que ha regresado no siente ningún entusiasmo hacia aquello por lo que usted ha sacrificado algo más que su vida.
—No hable así, doctor.
—Digo lo que pienso. Sacrificar la propia vida... ¿qué más da? La gente lo ha hecho durante siglos..., pero renunciar a todos los amigos, a los padres, parientes, conocidos, y a las mujeres... ¡Porque usted ha renunciado a ellas, Bregg!
—Doctor...
La palabra casi se me atragantó. Me apoyé con los codos sobre el viejo escritorio.
—Excluyendo a un puñado de profesionales, esto no importa a nadie, Bregg. ¿Lo sabe?
—Sí. Me lo dijeron en la Luna..., sólo que... lo expresaron con más suavidad.
Ambos guardamos silencio durante un rato.
—La sociedad a la cual ha vuelto está estabilizada. Vive tranquila. ¿Comprende? El romanticismo de los primeros vuelos espaciales ya ha pasado. Es casi una analogía de la historia de Colón. Su expedición fue algo extraordinario, pero ¿quién se interesó doscientos años después de él por los capitanes de veleros? Sobre el regreso de usted hubo una noticia de dos líneas en el real.
—Doctor, esto no significa nada.
Su compasión empezaba a ofenderme más que la indiferencia de los otros. Pero esto no podía decírselo.
—Ya lo creo que sí, Bregg, aunque usted no quiera reconocerlo. Si se tratara de otra persona, me callaría, pero a usted debo decirle la verdad. Está solo. El nombre no puede vivir solo. Sus intereses, todo aquello con lo que ha regresado, forman una pequeña isla en un océano de ignorancia. Dudo que haya muchas personas a quienes apetezca escuchar lo que usted puede contarles. Yo pertenezco a ellas, pero tengo ochenta y nueve años...


Li anteriormente:
Solaris (1961)
A Nave Invencível (1964)