Italo Calvino
O Castelo dos Destinos Cruzados
(1973)
Este livro é composto por duas partes:
O Castelo dos Destinos Cruzados e A Taberna dos Destinos
Cruzados. A primeira parte foi originalmente publicada em 1969, e
reunida à segunda parte em 1973, no formato definitivo desta obra,
quando Italo Calvino desistiu definitivamente de lhe acrescentar uma
terceira parte, que se intitularia O Hotel dos
Destinos Cruzados, por manifesto desinteresse em continuar a
experiência.
Essa experiência absorvente e
fatigante tratava, nem mais nem menos, de utilizar as 78 cartas do
baralho de tarot como suporte do fio narrativo, uma vez que as
personagens estão privadas da fala, através de uma elaboração
complexa na interpretação simbólica das ilustrações contidas nas
cartas. Os contos d'O Castelo são baseados no tarot pintado
por Bonifácio Bembo em meados do século XV, enquanto os d'A
Taberna tomam como ponto de partida o baralho de Marselha,
impresso em 1761 por Nicolas Conver. Apesar das semelhanças, as
ilustrações comportam diferenças importantes ao nível simbólico
(como se pode comprovar pela sua representação paralelamente ao
texto), que influem nos decursos narrativos dos contos. No final do
livro, a própria personagem do escritor recorre ao método
anteriormente utilizado pelas personagens e, ainda mais aliciante,
submete Édipo, Hamlet, Macbeth e outros à mesma estrutura narrativa
com resultados convincentes. Daqui se poderá concluir que o tarot,
como representação do inconsciente colectivo, inclui todas os
arquétipos da acção e motivação humana nos seus 21 arcanos
maiores, servindo-se ainda dos quatro naipes como sintaxe de suporte,
passível de tudo abranger e apropriar-se.
Considerando-se bem, tanto para o
alquimista quanto para o cavaleiro errante o ponto de chegada deveria
ser o Ás de Copas, que para um contém o flogístico ou a
pedra filosofal ou o elixir da longa vida, e para o outro é o
talismã guardado pelo Rei Pescador, o vaso misterioso que seu
primeiro poeta não se deu ao trabalho de nos explicar o que era –
ou não o quis dizer – e que desde então fez brotar rios de tinta
de conjecturas, o Graal que continua a ser disputado entre as
religiões romana e céltica. (Talvez o trovador de Champagne
quisesse precisamente isso: manter viva a batalha entre O Papa
e o Druida-Eremita. Não há melhor lugar para se guardar um
segredo que num romance inacabado).
Logo, o problema que os nossos dois
comensais queriam resolver dispondo as cartas em redor do Ás de
Copas era ao mesmo tempo a Grande Obra alquímica e a Demanda do
Graal. Nas mesmas cartas, um por uma, ambos podiam reconhecer as
etapas da sua Arte ou Aventura: no Sol, o astro de ouro ou a
inocência do jovem guerreiro, na Roda, o moto-perpétuo ou o
encantamento do bosque, no Juízo, a morte e a ressurreição
(dos metais e da alma) ou o apelo celestial.
Estando assim as coisas, as histórias
arriscam continuamente tropeçar uma na outra, se não se põe bem às
claras o mecanismo. O alquimista é aquele que para obter as
modificações da matéria procura tornar sua alma inalterável e
pura como o ouro; mas tomemos o caso de um doutor Fausto que inverte
a regra do alquimista, faz da alma um objeto de troca e por esse meio
espera que a natureza se torne incorruptível e não seja mais
necessário buscar o ouro porque todos os elementos serão igualmente
preciosos, o mundo é de ouro e o ouro é o mundo. Do mesmo modo, é
cavaleiro errante aquele que submete suas ações a uma lei moral
absoluta e rígida, para que a lei natural mantenha a abundância
sobre a terra com indulgência absoluta, mas vamos imaginar um
Perceval-Parzival-Parsifal que inverta a regra da Távola Redonda: as
virtudes cavalheirescas serão nele involuntárias, virão à tona
como um dom da natureza, como as cores das asas das borboletas, e
assim, executando suas empresas com espantosa negligência, talvez
consiga submeter a natureza à sua vontade, possuir a ciência do
mundo como a uma coisa, tornar-se mago e taumaturgo, fazer cicatrizar
a chaga do Rei Pescador e restituir a verde linfa à terra deserta. O
mosaico de cartas que estamos aqui estatelados a olhar é, pois, a
Obra ou a Demanda que se gostaria de levar a termo sem obrar nem
demandar. O doutor Fausto cansou-se de fazer as metamorfoses
instantâneas dos metais dependerem das lentas transformações que
ocorriam dentro de si mesmo, e duvida de toda a sapiência que
acumulou em sua solitária vida de Eremita; está desiludido
dos poderes de sua arte bem como das trapaças entre as combinações
das cartas do tarô. Naquele momento um relâmpago ilumina seu
cubículo no alto da Torre. Aparece à sua frente um
personagem com chapéu de abas largas, como esses que usam os
estudantes de Wittemberg: talvez seja um clérigo errante, ou um
Bateleiro, charlatão, um mágico de feira que tenha
aparelhado sobre uma banca todo um laboratório de frascos
desaparelhados.
Li anteriormente:
As Cidades Invisíveis (1972)
Se Numa Noite de Inverno um Viajante
(1979)
Ningún comentario:
Publicar un comentario