William Gibson
Count Zero (1986)
Quando o Neuromancer foi editado
despoletou um imenso burburinho; William Gibson era anunciado como
uma nova estrela da literatura, e passou-se por cima do preconceito
de ter publicado um livro de FC. Não o li então; deixei assentar a
poeira e li-o há cinco anos, quando o autor possuía já uma obra de
certa dimensão e continuidade. Chegou agora a vez de Count Zero,
cujas peripécias têm por fundo a violenta disputa industrial de uma
nova tecnologia, o biochip, enquanto o multimilionário Virek parte
em busca da imortalidade, por interposta pessoa. A narrativa
desdobra-se em três vectores simultâneos, centrados nas personagens
de Turner (um mercenário ao serviço de uma poderosa multinacional),
Bobby Newmark (um hacker novato mas com sonhos ambiciosos,
auto-denominado “Count Zero”) e Marly Krushkhova (uma parisiense,
obscura negociante de arte, que ganha um contrato astronómico ao
serviço de Virek), mas estas tramas mal chegam a se interceptar
(aliás, Marly não converge de todo).
Criado numa época em que a internet
mal dava os primeiros passos, reencontra-se aqui toda a ambiência do
Neuromancer — passa-se uns anos depois, com algumas
referências a um par de personagens desse romance — tal como o
futuro era imaginado em meados da década de 80: o ciberespaço e a
experiência de imersão numa realidade virtual; o Japão ascendido a
uma posição dominante a nível mundial (o contemporâneo Blade
Runner partilhava desta ideia), com as multinacionais da época
tornadas em enormes potentados globais e o iene a fazer as vezes do
dólar. Menciona-se também a Alemanha Ocidental (em 1986 o Muro de
Berlim parecia que ia durar para sempre) e o fax é de uso óbvio —
então em processo de massificação... quando hoje se tornou numa
peça de museu!
A escrita de Gibson é um tanto
angulosa e difusa, e tende a deixar o leitor para trás — nesse
particular faz-me lembrar o Philip K. Dick mais tardio. Depois de ter
lido o Neuromancer em pt-br, senti-me um tanto intimidado em
abordar este Count Zero no original. Há uma catadupa de
neologismos e palavras inventadas pelo autor que me dificultariam a
leitura e optei, novamente, pela versão em português do Brasil.
Infelizmente não foi a decisão correcta.
Costumo dizer, um pouco na brincadeira,
que o “brasileiro” é a língua estrangeira que melhor entendo.
Depois deste livro já não tenho a certeza. Para além de ter achado
a tradução atabalhoada, com a manutenção desnecessária de
demasiadas palavras em inglês (eu, que normalmente me queixo do
contrário, porque gosto de perceber o texto original “atrás” da
tradução), o recurso a um vocabulário coloquial (ou gíria,
talvez), empobrece fortemente o texto, na minha opinião. Fora as
frequentes vezes em que pura e simplesmente não consegui entender, e
me vi obrigado a pesquisar o original para tirar dúvidas. Neste
confronto, tornaram-se evidentes as más opções de tradução, não
no fio narrativo, mas na escolha da sintaxe. Um nomeado para os
prémios Hugo e Nebula merecia melhor; quando voltar a ler William
Gibson vou ter isto em consideração...
Os
sonhos de computador continham uma vertigem especial. Turner se
deitou em uma placa virgem de espuma verde, no dormitório
improvisado, e conectou o dossiê de Mitchell. Começou devagar: teve
tempo de fechar os olhos.
Dez
segundos depois, os olhos estavam abertos. Agarrou a espuma verde e
lutou contra a náusea. Fechou os olhos de novo... Mais uma vez,
começou aos poucos, um fluxo bruxuleante e não linear de fatos e
dados sensoriais, um tipo de narrativa transmitida em planos
interrompidos e justaposições surreais. Era um pouco como andar em
uma montanha-russa que aleatoriamente entrasse e saísse da
existência, em intervalos impossivelmente rápidos, mudando de
altitude, ângulo e direção a cada pulso de inexistência. Exceto
que os deslocamentos não tinham nada a ver com qualquer orientação
física, mas sim com alternâncias instantâneas no sistema de
símbolos e paradigmas. Aqueles dados nunca se destinaram a acesso
humano.
Com
os olhos abertos, tirou o objeto do soquete e segurou-o na mão, lisa
de suor. Era como acordar de um pesadelo. Não um de horror, no qual
os temores internos assumiam formas simples e terríveis, mas o tipo
de sonho, infinitamente mais perturbador, em que tudo é perfeita e
terrivelmente normal... e em que tudo está completamente errado.
Li anteriormente:
Neuromancer
(1984)
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