Rebelo da Silva
Contos e Lendas (1873)
Contos e Lendas, vol. II (1908)
Luís Augusto Rebelo da Silva é um
nome importante na literatura portuguesa do séc. XIX; no entanto,
não consegui assegurar-me do ano de publicação deste livro em
concreto. A Introdução, onde se atribui a autoria deste
livro a um humilde e erudito prior de província que fez questão de
ficar no anonimato, está datada de Setembro de 1866. A edição mais
antiga que encontrei é de 1873, dois anos após a morte do autor.
Uma outra versão pertence às “Obras Completas”, reunidas em
pelo menos 41 volumes, numa 2.ª edição datada de 1908, onde os
Contos e Lendas ocupam os tomos 14 e 15; o tomo 14 corresponde
à edição de 1873 e contém A Torre de Caim, O Castelo de
Almourol, A Camisa do Noivado e Última Corrida de
Touros em Salvaterra, enquanto o tomo 15 inclui os incompletos A
Tomada de Ceuta e A Pena de Talião. Assim, é
legítimo supor que a primeira edição deverá ter aparecido entre
1866 e 1873. Contudo, Última Corrida de Touros em Salvaterra,
já se publicara em 1848.
Todas estas narrativas decorrem em
contexto histórico e nelas se registam, como o título levaria a
supor, acontecimentos prodigiosos e sobrenaturais – sobretudo em A
Torre de Caim, passada no séc. XI, que trata de uma vingança
entre famílias nobres, levada além da morte, e tem por fundo uma
história de amor. O Castelo de Almourol, que, segundo uma
nota do editor, ficou incompleto devido à morte prematura do
escritor, decorre no séc. XVII em plena Guerra da Restauração, e
conta uma divertida história de dois feitores desonestos que
pretendem, por truques e mentiras, desenvencilhar-se dos legítimos
proprietários – uma família da corte que decidiu mudar-se
temporariamente para a sua propriedade (o primeiro excerto abaixo
citado, na ortografia original, pertence a este conto). A Camisa
do Noivado passa-se no séc. XIV, num povoado próximo de
Miranda; um fidalgo malévolo e tirânico pretende arrebatar a bela
noiva de um jovem arqueiro, e será o próprio rei D. Pedro I, O
Justiceiro, a resolver providencialmente a contenda por suas mãos.
Última Corrida de Touros em Salvaterra é certamente a obra mais
conhecida de Rebelo da Silva; passada no reinado de D. José,
descreve a festa brava transformada em tragédia, com a morte de um
cavaleiro nobre na arena, e como o Marquês do Pombal influencia o
soberano, para que ponha termo às corridas reais, pois a morte
destes valorosos súbditos impede-os de dar o seu contributo às
guerras que se avizinham.
A Tomada de Ceuta, foi
parcialmente publicado em 1840 e, novamente, em 1856 em folhetins no
jornal A Pátria; a suspensão do jornal interrompeu o
prosseguimento da obra, que, nos cinco capítulos existentes, esboça
um ambicioso romance histórico sobre o tema que lhe dá o título (é
daqui o segundo trecho). A Pena de Talião, que ficou apenas
pela Introdução, publicada no Panorama de 24 de
Novembro de 1855, esclarece o método criativo e fundamenta as opções
estéticas do escritor, além de apresentar um esboço da estrutura
desta novela, destinada a ser o complemento moral do romance Ódio
Velho não Cansa e, ao mesmo tempo, o retocar de outra novela,
Rausso por Homizio, duas obras de juventude, consideradas
imperfeitas pelo autor.
Ao mesmo tempo as hostilidades
diabolicas não eram menos activas e violentas nas camaras dos outros
hospedes. Romão Pires, apenas se deitára, e escondera a cabeça
debaixo da roupa, com premeditação pouco em harmonia com os brios
de suas falladas campanhas, sentio apagar-se-lhe a luz, e puxarem-lhe
pelos pés o magro e aprumado corpo até o estatelarem de pancada e
sem dó nas taboas do sobrado. O grito de mêdo e de dor, que soltára
estremunhado, teve em resposta um côro de risadas em falsete.
Brizida de Souza acordou espavorida ao frio gelado de um verdadeiro
regador de agua que lhe entornavam sobre a cabeça, e saltando por a
casa em roupas menores, e com a boca escancarada, para bradar, era
comida no ar por mãos pouco caridosas e nada leves, que de empurrão
em empurrão a levaram aos tombos até ao corredor, aonde veiu
encontrar em anagua o honrado escudeiro, tiritando de susto e com uma
das mãos em cada face esbofeteada pelos duendes, com vigor que bem
accusava uma força sobrenatural. D. Maria, encolhida e semi-morta de
pavor, não padecera senão o terror de ouvir estalar ao pé do leito
gargalhadas dissonantes, e arrastar ferros.
No quarto de D. Pedro, os trasgos
haviam sido menos felizes, porque tinham chegado mais atrazados.
Dotado de animo varonil e reflectido, sereno em presença do perigo,
e pouco disposto a acreditar na intervenção dos poderes infernaes,
o mancebo, resolvera velar a noute sem se despir, e com a espada nua
ao lado, tinha-se entregado á leitura de um livro novo, que em breve
lhe absorveu a attenção. Feriu-lhe de repente o ouvido a matinada
das investidas no corredor e nos aposentos proximos. Apagando a luz,
e empunhando a espada, aguardou silencioso.
A sua porta abriu-se de feito, pouco
depois, e pareceu-lhe aperceber dous vultos na escuridão. Deixou-os
adiantar, seguiu-os, e quando um se debruçava sobre o leito vasio, e
o outro, assoprando n'um buzio tirava d'elle sons roucos e medonhos,
caiu ás pranchadas sobre o musico do Averno, ao qual o instrumento
escapou dos dedos, e que, amedrontado, principiava a revolver-se pela
casa, gritando como um simples mortal derreado por uma sova. O outro
phantasma volveu logo em auxilio do agredido, mas uma cutilada de D.
Pedro, aparada no braço ao que pareceu, deitou-o pela porta fóra
como um vendaval, em quanto o companheiro tomava o mesmo caminho, mas
de rastos e gemendo.
D. Pedro, decorridos instantes, feriu
lume, accendeu a vela do castiçal e a candeia, e examinou
attentamente o campo de batalha. Jaziam no chão um buzio dos usados
pelos ranchos da apanha da azeitona, um lençol com lagrimas de tinta
encarnada, e uma caveira de papelão pintada de amarello.
O mancebo sorriu-se. Aquelles despojos
eram o corpo de delicto e ao mesmo tempo documento vivo da
conspiração tramada. Algumas gôtas de sangue, caidas no pavimento
desde metade da casa até á porta, provaram-lhe que um dos actores
do drama nocturno retirara ferido e assignalado. D. Pedro pegou no
castiçal, e seguindo o rasto de sangue pelo corredor, notou que
parava no topo, aonde só existia uma parede grossa, sem nenhuma
saida apparente. Informado do que desejava verificar, voltou atraz, e
encaminhou-se ao camarim de Romão Pires. Á porta viu duas figuras
brancas ajoelhadas. Deteve-se um pouco até se affirmar. A velha aia
e o dorido escudeiro, ambos de joelhos, e ambos transidos de medo e
de frio, esgotavam um defronte do outro todo o vocabulario de rezas e
de interjeições atribuladas, sem se atreverem a volver aos
aposentos. D. Pedro, não podendo suster o riso, fallou-lhes,
animou-os, e, mandando-os acabar de vestir, passou a visitar a camara
de Fr. João.
O frade ainda jazia na mesma posição.
Conservava-se quasi exanime na ampla cadeira. Vendo entrar o sobrinho
com o castiçal em uma das mãos e a espada nua debaixo do braço,
estremeceu, e esbugalhou os olhos, mas não se moveu.
D. Pedro aproximou-se da mesa, accendeu
a outra vela, e sem proferir palavra examinou cuidadosamente o
aposento. Nenhum indicio! O inimigo triumphante não deixára
despojos. Terminado o exame, poz o castiçal em cima do velador,
collocou a espada ao pé do castiçal, e, volvendo para junto da
cadeira, d'onde o tio, como paralysado, observava tudo silencioso,
disse-lhe:
—Mas o que foi isto?!..
[...]
Franzindo o pesado reposteiro, que
vedava a entrada, quem, penetrando, podesse ler n'aquelle momento o
segredo, que assim fazia estremecer tantos peitos generosos, sairia
convencido de que a occasião é tudo, quasi, nas acções humanas,
ainda nas maiores; e que, uma palavra, ou um lance inopinado, bastam
ás vezes para decidir da sorte dos grandes homens, e dos poderosos
impérios.
Um só de menos, na sala do conselho da
Batalha, e Salat Ben Salat não veria talvez a sua velhice
affrontada, fechando tranquillamente os olhos no soberbo castello,
d'onde contemplava as ondas, que se debruçavam como captivas, para
banhar os pés á sua formosa cidade.
Uma voz de prudencia, que falasse, e no
impeto do primeiro e cego arrojo, Portugal, abraçando-se além do
estreito com a orgulhosa Amazona do Mahgreb, apercebida para a lucta,
talvez desfallecesse no encontro, como seculo e meio depois se
prostrou com o seu rei nos areaes de Alcácer!
A hora dos revezes não tinha soado
ainda; Deus mandou os dias de esplendor adeante dos dias de lagrimas
e de lucto!
Ceuta estava fadada para se dar começo
n'ella aos bellos rasgos da mais pura e justa das nossas cruzadas; e
rodeado de seus heróicos filhos, flor e esperança da coroa popular,
cingida pela victoria, D. João I era o rei apontado pela Providencia
para levantar nas praias d'Africa a luva, que Tarik arremessara
contra as Hespanhas, quando ousou estampar o sello da servidão na
formosura profanada das suas opulentas cidades.
Do alto dos montes africanos,
subjugados, é que o Infante D. Henrique alongou depois a vista e a
idéa pelas aguas tempestuosas e nunca navegadas; e foi alli, de
certo, que a visão gloriosa do futuro imperio, promettido a seus
netos pela constancia do descobridor, lhe appareceu no silencio
profundo das horas de acceso imaginar.
O sangue espargido em Ceuta era a
semente; o oriente devassado serviu de premio.
Depois, abertos os caminhos, e
consummados os desígnios do Céu, anoiteceu para nós, e os annos de
declinação precipitaram-se rápidos e successivos.
Quando o reino, com os prantos ainda
por enxugar, viu alçar nas torres e galeões do Tejo os leões de
Castella, havia muito que em Arzilla se haviam arreado as quinas
levantadas por Affonso V!
A agonia principiou alli; Filippe II o
que fez só foi tornal-a menos lenta, e mais dolorosa!
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