Autor desconhecido
Novo Vocabulário
Filosófico-Democrático (1831-32)
Este livro é a tradução anónima de
um original italiano, de autor incógnito, publicado em Veneza em
1799. No Prólogo do Tradutor refere-se uma 2.ª edição madrilena
de 1823, segundo a qual o autor seria Lourenço Thiuli, pertencente a
uma família ilustre de Estocolmo. Na sua juventude, durante uma
viagem marítima entre Espanha e Itália, Thiuli terá contactado com
os jesuítas, expulsos do país vizinho com a extinção da ordem;
daqui resultou a sua conversão e a vontade de integrar a Companhia
de Jesus, onde fez os estudos. Conhecedor da perfídia subjacente às
novas ideias revolucionárias, resolveu denunciar a traidora
falsidade da sua linguagem numa série de opúsculos abertamente
anti-republicanos e anti-liberais, destinados a defender a causa do
Trono e do Altar entre um universo de leitores mais alargado.
Também se afirma que, em Portugal, a
obra encontrou um admirador em José Agostinho de Macedo, que se
propôs traduzi-la. A sua morte impediu esta realização, depois
assumida por alguém que aparenta ter pertencido ao seu círculo
próximo, talvez um clérigo. A versão original portuguesa repartida
ao longo de vários cadernos, à semelhança da publicação
italiana, reunidos em dois tomos, foi profusamente comentada para melhor
explanação e ajuste à realidade nacional. Encontraram-se grandes
semelhanças entre esta obra e o Mastigoforo, de Fr. Fortunato
de S. Boaventura (referido em termos elogiosos na página 84), pelo
que esta lhe tem sido, erradamente, atribuída. Uma editora online
inglesa, especializada em reedições de livros antigos, atribui a
autoria a Pedro de Sousa Holstein, Duque de Palmela, o que é
incompatível com o seu posicionamento político.
À data da publicação deste livro, no
reinado de D. Miguel, em plena Guerra Civil — consequência directa
da Revolução Liberal de 1820 — a própria Revolução Francesa de
1789, e o Terror que se lhe seguiu, contava ainda testemunhas entre
os vivos. Assim, o Novo Vocabulário Filosófico-Democrático
é uma análise da linguagem e do seu conteúdo, numa denúncia da
falsidade das ideias que moldavam aquele tempo, atacando a maçonaria,
expondo ao ridículo os tiques republicanos e liberais, mantendo por
isso uma surpreendente actualidade, até pela sua linguagem
sarcástica e acutilante. Organizado em verbetes, como se espera de
um dicionário, a dificuldade é a escolha de excertos
significativos; aqui fica uma pequena amostra...
IGUALDADE — He tal o ruido, que se
tem feito com este Vocabulo, que com razão se pode chamar o pandeiro
republicano. A pratica com tudo tem manifestado até á evidencia
que o famoso vox, vox prœtereaque
nihil a nada se pode melhor applicar, que ao Vocábulo igualdade;
porque nada ha neste mundo tão vasio de sentido, e significação. E
se não, vamos a contas.
Ha por ventura hum só homem, que
tendo senso commum se persuada que hum criado he hum ente
desprezível, e vil, só porque traz huma libré, e que basta
tirar-se-lhe para que de repente seja igual a seu amo? Que basta dar
o nome de Cidadão a hum comico, a hum mendigo para faze-los iguaes
ao lavrador honrado, e ao poderoso commerciante? Que tirando aos
Nobres os Titulos de Condes, Marquezes, etc. e dando-lhes o de
Cidadãos, immediatamente se estabelece a igualdade entre o rufião,
e o bem educado, o civil, e o grosseiro, o brutal, e o civilisado?
Logo o Vocábulo igualdade, em sentido republicano, não he
mais que huma consummada loucura, e huma voz sem significado.
DEMOCRATISAR — Largo tempo se tem
passado sem se poder comprehender, que cousa significasse
positivamente esta palavra republicana em o idioma novo. Julgou-se ao
principio, que teria alguma relação com o que antigamente se
chamava formar hum governo popular. Porém, que loucura! A
experiência mostrou immediatamente, quão errada era esta idéa, e o
engano nascia principalmente da mudança de significado em a palavra
Povo. Quando vimos democratisar aos Estados mais democraticos
da Europa, comprehendemos, que democratisar hum Estado, em o moderno
idioma, não quer dizer outra cousa, que denegrir, e abater o
Governo, que existia, seja elle qual for; esbulhar delle os homens de
bem, que mandavão; pôr em seu lugar, ou tolos, ou ímpios e
bandidos; formar destes o Povo, e ao verdadeiro Povo
escravisa-lo; roubar quanto haja de precioso; e anniquilar a
Religião, especialmente a Catholica; sem se esquecer hum só
instante de despojar e opprimir seus Ministros, etc. etc. He por este
modo, que hão sido constante e invariavelmente democratisadas a
Flandes, a Hollanda, Milão, Bolonha, Modena, Ferrara, etc. etc.
Desta explicação se deduz naturalmente a intelligencia de muitos
Vocabulos derivativos, como
DEMOCRATICO — Que pela activa
significa atheo, ladrão, assassino, collocado em o mando e governo;
e pela passiva, a parte honrada e religiosa de huma Nação ultrajada
e opprimida, tyrannisada e roubada por bandidos, atheos, e
assassinos.
DEMOCRACIA — Tem-se tentado dar a
versão em idioma antigo com o nome etymologico de pirataria;
porém não o explica perfeitamente, porque também se pode dizer
atheistocracìa, e ladrocacia. Convertidos n’hum
estes tres Vocabulos, formão o verdadeiro equivalente da democracia
moderna. De sorte que em lugar de democracia deveria dizer-se
demoniocracia, ou antes governo de demonios.
TOLERANCIA — [...] A penna recua, e o
coração estremece quando quer progredir na descripção dos
assassinatos, das matanças, e das proscripções, que se nos
offerecem em o sangrento quadro da França tolerante!
Attendei, Povos, a este quadro ainda mui recente para se entregar ao
esquecimento: eis-aqui a tolerancia, que vos prepárão! sangue,
morte, crueldades, sem respeito nem a Deos, nem aos homens, nem á
razão, nem á natureza he a sua tolerancia!! Nunca de suas
praguentas bôcas sahio palavra mais impia, mais blasfema, ardilosa,
e traidora como esta!... Querem a tolerancia, mas he em quanto estão
debaixo: isto he: attendei; querem que os Póvos, e os Governos os
tolerem para que possão arranjar os seus planos; e, logo que se
achão montados, começão a perseguição: eis-aqui qual he a sua
tolerancia. [...]
RAZÃO — Segundo os Democraticos, a
razão está vinculada a elles, e he o fundo principal de seu
morgado. He deste modo, que podem fazer quanto lhes vier á cabeça
(e nunca he cousa boa); e ainda que comettão as mais altas
perfídias, os enganos mais vís, as mais horriveis traições, o
mais tyrannico despotismo; e ainda que matem, roubem, blasfemem, e
fação quantas graças não faria o mesmo demonio, sempre tem
razão. E dizem muito bem; porque como em o idioma democratico
razão e força são synonymos, já V.m. vê.... […]
POLITICO — A sublimidade, e
delicadeza do pensar filosofico devia necessariamente
estender-se á politica, muito mais em hum tempo em que, segundo o
dicto de hum moderno Filosofo, hum Literato he hum Magistrado.
Glorião-se os sábios Democraticos de ter descoberto a falsidade do
significado antigo da palavra politica. O governar, prover, e
defender hum Povo se julgava outróra a mais espinhosa e delicada
sciencia, e para cujo desempenho se buscavão homens de talentos nada
vulgares, da mais escrupulosa probidade, de huma prudência
consummada, e de conhecimentos os mais vastos. Tudo loucura. Qualquer
manicaca, qualquer farroupilha ignorante he, segundo os Democraticos,
hum Politico consummado, capaz de governar o mundo inteiro. E leve
Deos minha alma se os Democraticos não dizem muito bem. Porque como
a sua intenção he transtornar todos os Governos, duvidamos que
hajão muitos meios mais proporcionados que este, para conseguir
aquelle fim. A difficuldade consistia em que houvesse quem os
acreditasse. Mas, como havia de faltar, sendo tão grande a
abundancia de cabeças ocas? Stultorum infinitus est numerus.
He por este motivo, que não ha quasi hum canto do mundo, começando
pelas Universidades, e acabando pelas tabernas e tascas, onde se não
vejão enxames de vadios, tunantes, e franchinotes, que como
mosquitos em bodéga, estejão mantendo perpetuamente discussões
endiabradas sobre politica. Reis, Principes, Governos,
Ministros, todos são por sua ordem chamados a juizo; e todos são
examinados, censurados, criticados, e julgados sem misericordia por
estes Richilieus de gaforina encrespada, e cigarro na bôca.
[...]
LEI — Segundo os Democraticos, entre
elles ninguém governa senão a Lei, e ella he a única Authoridade,
a que todos obedecem: já se vê que ella he a alma republicana.
Cousa maravilhosa! Republicas Democráticas conheço eu, que só
n'hum anno fizerão vinte e duas mil Leis, sem que por isso houvesse
entre ellas alguma. Pois eis aqui o segredo: esta Lei, que não
existia, era a quem todos obedecião e esta Lei imaginaria era quem
mandava, e regulava tudo. Então não diremos que he hum portento a
alma das Republicas modernas?! […]
PROPRIEDADE — Vocábulo ad
libitum. Entre os Republicanos (em quanto estão roubando) não
tem nem uso, nem significação. Mas quando tem já guardados os
roubos, oh! então já he outra cousa: Propriedade he hum nome
sagrado. O melhor que tem he, que como os roubados, e os ladrões
se succedem huns aos outros continuamente, e muitas vezes sem
interrupção se transformão os segundos em os primeiros, não pode
deixar de ser que este Vocábulo esteja em hum pleito eterno entre os Cidadãos felizes das
Republicas Democraticas.
PERFEIÇÃO, APERFEIÇOAR — Segundo
os principios da Filosofia Republicana, todo o homem tem direito a
aperfeiçoar-se: e tem sido tão grande o uso, que os
Republicanos tem feito, e vão fazendo deste Direito, que jamais se
virão no mundo mais perfeitos ladrões, malvados, e
assassinos. Se elles ainda não são perfeitíssimos, não he
sem dúvida por culpa sua, pois a nada se tem poupado para bem
desempenhar este ministerio.
Sem embargo, esta maxima de
aperfeiçoar-se cada hum, apezar de tão bella na apparencia, encerra
hum veneno terrivel em sua generalidade; e os ímpios, e sofistas
modernos tem sabido dar-lhe tal voga, que nenhuma lhes ha produzido
tão afortunados successos, nem ha embrulhado tanto os cérebros
daquelles, que não vendo das cousas senão a casca, applicão
qualquer verdade a qualquer assumpto; do mesmo modo que hum
Curandeiro Charlatão applica seu balsamo exquisito a toda a classe
de enfermidades.
He com este direito de
aperfeiçoar-se, que os Filósofos pertendem romper, e quebrar todo
o freio ao entendimento humano, e soltar as rédeas á vontade.
Porque, como o aperfeiçoar-se não se póde conseguir sem ir
sempre a mais, todo o obstáculo, que se lhe oppozer, he injusto,
pois contrasta hum direito, que o homem recebêo da mesma
Natureza. Logo, nem o entendimento, nem a vontade devem soffrer
alguns ferros. E huma vez quebrados estes, quem não vê os
espantosos precipícios, a que nos conduz o direito de
aperfeiçoar-se?
O homem sensato, que raciocina
justamente, não póde balancear muito tempo, e se vê obrigado a
reconhecer que o tal direito não he mais que hum laço para
enredar as gentes, e huma verdadeira quimera.
A perfeição absoluta he hum attributo
do Ser Supremo; e o pertender possuí-la, he igualmente impossivel,
que offensivo á Divindade. A perfeição he impossivel ao homem,
porque não pertence á sua natureza; e portanto vale o mesmo dizer
que o homem tem direito a aperfeiçoar-se, que dizer tem
direito a hum impossivel. Ora pois, direito ao impossivel
he huma quimera, e hum absurdo; e não podendo definir-se hum
absurdo, tão pouco se poderá definir em que consista esta
perfeição; e eis aqui como fica ao arbitrio de cada hum o
definí-la, como mais conta lhe fizer, e como lhe agradar melhor. Não
he pois maravilha que hajão muitos, que tendão ao Atheismo por
perfeição, e que se inclinem a elle por tal modo, que nos
queirão persuadir que não ha maior perfeição do que ser
Athêo, e consequentemente que todo o direito do homem em
aperfeiçoar-se se reduz em substancia ao direito de abraçar o
Atheismo. [...]
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