John Christopher
O Ano do Cometa (1955)
Esta foi a primeira vez que me cruzei
com John Christopher; inglês de nascimento, Sam Youd utilizou cerca
de uma dezena de pseudónimos diferentes, consoante o teor da sua
escrita, todos eles de maior entoação britânica, não obstante o
seu verdadeiro apelido ser britânico de gema, embora possa parecer o
contrário. Foi uma bolsa da Fundação Rockefeller que lhe permitiu
dar início à sua carreira literária, em 1949, com The Winter
Swan, sob o nome Christopher Youd; utilizou o nome John
Christopher a partir de 1951, ano em que iniciou a publicação de
contos de FC, e Year of the Comet foi a sua primeira novela
dentro do género, dando início a um percurso bem sucedido que só
terminou já no início deste século XXI, ofuscando, pode
afirmar-se, todos os seus outros heterónimos.
O Ano do Cometa passa-se num
futuro onde, após uma guerra, os diversos grupos industriais —
Química, Agricultura, Telecomunicações, Astronáutica, Energia
Atómica, etc. — assumiram o poder, com um novo modelo social
designado “sistema de gestão”; a única excepção é Israel,
fiel ao velho capitalismo. O protagonista, Charles Grayner, um
investigador pertencente à IQR (Indústrias Químicas Reunidas), é
nomeado para um laboratório onde vai continuar um trabalho acerca
das propriedades energéticas do diamante, devido ao desaparecimento
e aparente morte do seu antecessor. A partir daqui entronca um enredo
vagamente policial, com outras mortes ou desaparecimentos em
circunstâncias invulgares, que incluem Sarah Cohn, a assistente
israelita de Grayner, no início de uma promissora relação amorosa.
O conhecimento de Charles Grayner é depois disputado pelos vários
grupos industriais, que o raptam discretamente em sucessão rápida,
ao mesmo tempo que este tinha iniciado uma busca por Sarah Cohn, com
a colaboração de um amigo, Hiram Dinkuhl, autor do último programa
cultural ainda existente na TV, a personagem mais inconformista de
todo o livro. Neste tempo narrativo aproxima-se da Terra um cometa, o
que despoleta a existência de uma seita religiosa apocalíptica; no
entanto, este facto tem menos importância no desenrolar do livro do
que o título poderia indicar, à parte um dos capítulos finais,
quando Grayner e Dinkuhl tentam usar a seita como camuflagem da sua
fuga, e a verdadeira natureza do culto nos é revelada.
Dinkuhl encheu o copo.
— Os conselhos podem esperar. Não
devem ser de molde a exigir uma atenção urgente. De qualquer forma,
devem poder esperar meia hora. Porque é que eu pretendo destruir
esta sociedade mundial paternalista no seio da qual vivemos? Porquê
afinal?
Charles teve de se conformar.
— Porque o fim está à vista — o
fim do FK?
— Em parte, em parte. Mas há mais.
Diga-me qual é o aniversário que se vai celebrar dentro de dois
anos?
— Não sei. Devia saber?
— É o aniversário da Guerra. O que
é que você sabe acerca da Guerra? Acerca da forma como esta
sociedade de hoje passou a existir?! Vou fazer-lhe outra pergunta. O
Professor Cohn ensinava História em Berkeley, uma das raras
instituições académicas que ensinam aquela disciplina. Quantos
alunos tinha ele?
— Antes de desaparecer? Dois.
— Surpreende-me. Sim, dois. Duvido de
que haja, em todo o continente norte-americano, uma dezena de alunos
que leiam História. Embora não possa esperar que você tenha
consciência disso, esse facto representa — sob o ponto de vista
histórico — um estado de coisas extraordinário. Houve outros
períodos de decadência em que as pessoas deturparam e interpretaram
mal a história das suas próprias origens; este é o primeiro que
consegue ignorá-la inteiramente.
— Decadência?
Dinkuhl suspirou.
[…]
— E nesse aspecto — disse Dinkuhl —
você mostra-se como um verdadeiro filho da sua época. Se vai
avaliar esse tipo de empreendimentos em termos de lucros e perdas,
isso quer dizer que já falhou antes de começar. Não, isso é a
decadência. Mas claro que esse está longe de ser o único sintoma.
Veja as artes. A verdade é que nos últimos dias do capitalismo não
produziram nada que valesse a pena herdar, mas pelo menos produziram
alguma coisa. E hoje em dia nem sequer temos a graça salvadora da
discriminação que nos diga que aquilo que produzem não vale a pena
ser herdado. Que é que você ouve em Doçura e Conforto Brilhante?
Rhapsody in Blue... Danúbio Azul... Chatta-nooga Chu-Chu... ou, se o
seu gosto está com as alturas rarefeitas da Liga Vermelha — Elgar,
Stravisnky, Sibelius e Gilbert e Sullivan. Tentam tudo por todos os
meios e mesmo assim repetem-se. A sua adaptação do Concerto para
Violino de Sibelius para harmónica bocal — essa espécie de
loucura esteve muito em voga quando eu era rapaz.
«As pessoas continuam a viver no meio
do mobiliário neo-escandinavo dos meados do século XX e os poucos
pintores que existem seguem como escravos as diversas escolas do
século XX — neo-impressionistas, cubistas, fauvistas — temo-los
a todos. O grupo Tempos Livres continua a apresentar blocos de pedra
com buracos aos milhares.
— Talvez seja essa a forma certa de
arte.
— Não existem formas certas de arte.
E mesmo que as houvesse certamente não seriam essas manifestações
prosaicas e falhas de imaginação. A decadência implica, em
primeiro lugar, uma perda de energia criadora e em última análise
uma perda de gosto. Chegamos ao fundo dos fundos.