José Saramago
A Jangada de Pedra (1986)
A Jangada de Pedra é um romance
que tem como tema principal a misteriosa separação da Península
Ibérica do continente europeu, e o igualmente misterioso percurso
que a leva a rumar Atlântico fora. Nas primeiras páginas
descrevem-se alguns prodígios sucedidos com as principais
personagens da obra – Joaquim Sassa, que lança uma pedra a uma
distância impossível; José Anaiço, sempre acompanhado por uma
nuvem de estorninhos; Pedro Orce, que sente o chão a tremer, apesar
de nenhum instrumento de medição o registar; e também um cão dos
Pirinéus, Joana Carda, Maria Guavaira e Roque Lozano, todos de
alguma forma ligados a pormenores insólitos. Ora, no decurso da
narrativa, todos estes personagens acabam por se encontrar e
associar, numa viagem nómada que percorre o território da península
num grande círculo. Editado numa época em que Espanha e Portugal
tinha acabado de entrar na CEE, o livro levanta subtilmente a
questão, se seria esse horizonte europeu, realmente, o que mais se
adequava aos interesses das nações ibéricas.
José Saramago é um autor controverso,
mas, na meia-dúzia de livros que li dele, agradou-me um certo
recurso ao fantástico, que me parece aparentado do realismo mágico.
Depois de ter lido O Ano da Morte de Ricardo Reis e Memorial
do Convento, obras maiores da bibliografia do autor, cheguei a
considerar parar por aí. Afinal, seis anos depois, voltei a
Saramago...
Avançaram para o interior do círculo,
aproximaram-se, o risco lá estava, vivo, como se tivesse sido
acabado de traçar, a terra apartada para os lados, húmida a da
camada inferior apesar do sol quente. Agora estão calados, os homens
não sabem que dizer, Joana Carda não tem que acrescentar mais
palavras, é a vez de um acto arriscado que pode tornar em motivo de
escárnio toda a sua história maravilhosa. Arrasta o pé pelo chão,
arrasa o risco como uma rasoira, pisa e calca, é como um sacrilégio.
No instante seguinte, diante dos olhos assombrados de todos, o risco
refaz-se, recompõe-se exactamente como fora antes, os torrões
minúsculos, os grãos de areia reformam-se, reorganizam-se, reocupam
o seu lugar, e o risco reaparece. Entre a parte que fora destruída e
o resto, para um lado e para o outro, nenhum sinal se percebe de
separação dos efeitos, primeiro e segundo. Diz Joana Carda, numa
voz um pouco estridente de nervosismo, Já varri o risco todo, já
lhe deitei água, aparece sempre, se quiserem experimentar, até lhe
pus pedras em cima, quando as tirei voltou tudo à mesma,
experimentem para poderem acreditar. Joaquim Sassa baixou-se,
enterrou os dedos no chão fofo, arrancou um punhado de terra,
lançou-o para longe, e acto contínuo o risco restabeleceu-se. Foi a
vez de José Anaiço, mas esse pediu a vara a Joana Carda, fez com
ela um risco profundo ao lado do primeiro, depois pisou-o em todo o
comprimento. O risco não se refez. Faça você agora o mesmo, disse
José Anaiço a Joana Carda. A ponta da vara cravou-se no chão, foi
arrastada, abriu uma ferida longa, logo fechada como uma cicatriz
defeituosa quando a calcaram, e assim ficou. Disse José Anaiço, Não
é da vara, não é da pessoa, foi do momento, o momento é que
conta.
Li anteriormente:
Memorial do Convento (1982)
O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984)
As Intermitências da Morte (2005)
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