Stanislaw Lem
Solaris (1961)
De Stanislaw Lem apenas havia lido um
único livro até hoje, A Nave Invencível, já lá vão
demasiados anos para me recordar com clareza do argumento, tendo
perdurado uma opinião positiva, apesar de o considerar um livro de
leitura "difícil" – nada mau, para um leitor que acabara
de completar 15 anos. Já Solaris, significava para mim o
inesquecível filme de Andrei Tarkovski, que vi duas vezes, primeiro
na televisão e depois no cinema, aguçando-me a curiosidade sobre a
obra que lhe serviu de inspiração, na qual acabei por tropeçar, em
tradução de português do Brasil.
E posso dizer que Solaris esteve
à altura das minhas expectativas. Reconheci nele os pontos
essenciais da adaptação cinematográfica, na história que decorre
numa estação-observatório a pairar sobre um planeta coberto por um
oceano plasmático, vivo, interactivo e consciente. Nessa estação
permanecem três cientistas que sofrem daquilo que inicialmente tomam
por alucinações, mas que são obra desse imenso organismo para além
da compreensão: projecções materializadas do conteúdo cerebral do
indivíduo, as impressões mais marcantes da sua memória, que o
assombram e perseguem até à insanidade. É também uma estranha
história de amor, entre Kris Kelvin, recém-chegado a Solaris, e
Rheya, sua jovem mulher, morta dez anos antes, e inexplicavelmente
materializada num ser que parece tornar-se cada dia emocionalmente
mais complexo e distinto, desafiando simultaneamente a racionalidade
e a linha de fronteira entre o ser humano e o seu duplicado
autonomizado. Como pano de fundo – a comprovar como, tantas vezes,
uma frase vale mais do que mil imagens –, os silêncios da obra
cinematográfica têm aqui correspondência numa análise aprofundada
do tema "contacto", com as suas implicações filosóficas,
sociológicas e religiosas, tal como a identificação das armadilhas
da interpretação antropomórfica, tanto mais quando o objecto desse
"contacto" é um ser absolutamente ininteligível.
Quando tornei a abrir os
olhos, tive a impressão de haver cochilado alguns minutos. O quarto
estava banhado por uma penumbra vermelha. Fazia menos calor. Eu
estava me sentindo bem, deitado, com as cobertas afastadas,
inteiramente nu. A cortina só cobria metade da janela e lá,
defronte de mim, ao lado da vidraça, iluminada pelo sol vermelho,
havia alguém sentado. Reconheci Rheya. Usava um vestido de praia,
branco, cujo tecido estava esticado no bico dos seios. Tinha as
pernas cruzadas e pés descalços. Imóvel, com os braços abertos
bronzeados até os cotovelos, olhava-me por entre os cílios escuros.
Rheya, com seus cabelos pretos penteados para trás.
Encarei-a durante muito
tempo, calmamente. Meu primeiro pensamento foi reconfortante: eu
estava sonhando e consciente disso. Não obstante, preferia que ela
sumisse. Fechei os olhos e tratei de varrer aquele sonho. Quando
tornei a abri-los, Rheya estava sentada ao meu lado. Tinha os lábios
entreabertos, como de costume, num gesto de assoviar.
Mas seu olhar era sério.
Lembrei-me da véspera, quando fizera aquelas especulações a
respeito dos sonhos. Rheya não havia mudado desde o dia em que a
vira pela última vez. Tinha, naquela época, dezenove anos. Hoje
teria vinte nove. Mas, evidentemente, os mortos não mudam, ficam
eternamente jovens. Ela fixava-me com o olhar espantado de sempre.
Tive vontade de atirar alguma coisa sobre ela. No entanto, apesar de
se tratar de um sonho, não tive coragem – mesmo em sonho – de
maltratar uma morta.
Li anteriormente:
A Nave Invencível (1964)
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