Érico Veríssimo
Caminhos Cruzados (1935)
Caminhos Cruzados é o segundo
romance de Érico Veríssimo. Dividido em cinco partes, cada uma com
o nome dos dias da semana de sábado a quarta-feira, subdivide-se
depois em capítulos breves que acompanham a vida diária e as
pequenas peripécias que sucedem aos seus protagonistas. Deste modo,
acompanhamos gente e famílias de todos os estratos sociais, como o
professor Clarimundo, que um dia há-de escrever um livro a descrever
a verdade das coisas mas, por enquanto, anda a magicar no que será o
prefácio; Chinita, a filha do novo-rico coronel Pedrosa, com a
cabeça à roda numa vida fútil onde se tenta comparar ao que julga
ser a vida das estrelas de Hollywood; Teotônio Leitão Leiria, um
burguês abastado de modos ridículos; a desgraça de Maximiliano,
tuberculoso entre a vida e a morte; João Benévolo, amante de
leituras e de ilusões, caído no desemprego e sem dinheiro, vê a
miséria montar o cerco à sua família. Entre tanta gente,
destacam-se duas mulheres que, pela sua força interior, escapam a
este descritivo quase caricatural: Fernanda, por oposição ao
apagamento de Noel, seu amigo de infância, e D. Maria Luísa, a
mulher do coronel Pedrosa, que cedo se apercebe que o dinheiro não
traz a felicidade. Na impessoalidade da grande cidade, por vezes, os
caminhos destas personagens cruzam-se, as decisões de uns afectam
outros, justificando o título.
Mas um dia Zé Maria
sonhou que a casa do coletor tinha prendido fogo e que o Madruga
havia morrido queimado. Levantou-se, impressionado. Estava-se em
véspera de Natal, a Loteria do Estado anunciava uma extração de
dois mil contos. Zé Maria foi olhar a casa do coletor. Tinha o
número 1063. Tomou uma resolução heróica. Uma vez na vida e outra
na morte não fazia mal arriscar... Desgraça pouca é bobagem.
Juntou a féria de três dias e foi à Agência de Loteria do
Bianchi.
— O 1063 não tem... —
disse o italiano.
Zé Maria ficou amolado.
— Encomende. Pago
telegrama, pago tudo.
Estava nervoso. O Bianchi
telegrafou. A resposta veio. O 1063 já estava vendido, mas o 3601
estava livre. Servia?
— Servia! Mande buscar
urgente.
Em casa ninguém sabia de
nada. O 3601 veio. Zé Maria andava preocupado. Algumas firmas
ameaçavam protestar duplicatas vencidas e não pagas. O negócio
estava meio parado.
Um dia Zé Maria não
agüentou aquela coisa esquisita que se lhe avolumava no peito,
aquela angústia, aquele peso. Contou tudo à mulher. Tinha comprado
um bilhete!
— Um bilhete inteiro?
Inteiro?
D. Maria Luísa levou as
mãos à cabeça. Zé Maria estava aniquilado.
— Quanto custou?
— Trezentos...
D. Maria Luísa enxergava,
via com nitidez os trezentos mil-réis diante dos olhos. Sentiu uma
tontura. Foi para o quarto e chorou toda a tarde.
Na véspera de Natal ao
anoitecer estralaram foguetes lá para as bandas da praça.
Zé Maria apareceu à
porta da loja.
— É na agência do
Bianchi — disse uma voz.
Assomavam cabeças às
janelas. Corria gente para a rua. Contra o céu claro faiscavam os
foguetes que explodiam, e as pequenas nuvens de fumaça ficavam no ar
por alguns instantes...
O coração de Zé Maria
começou a bater com mais força. Enfiou o chapéu na cabeça e saiu.
— Deve ser a bruta! —
gritou-lhe alguém.
Zé Maria caminhava como
um ébrio, os olhos turvos, a cabeça tão tonta que nem podia
pensar. A uma esquina encontrou o Madruga.
— Onde vais com tanta
pressa, homem?
Zé Maria afastou-o com a
mão.
— Me deixa.
Madruga ficou rindo, o
palito tremeu-lhe nos lábios.
— Pensas que tiraste a
sorte grande, animal?
Na frente da agência do
italiano Bianchi havia gente amontoada, procurando ler o número
escrito no quadro-negro. Bianchi, rindo com toda a cara vermelha e
enrugada, emergiu da maçaroca humana e correu para Zé Maria, de
braços abertos:
— Felizardo! Felizardo!
A bruta!
Zé Maria negava-se a
compreender, a acreditar. Era demais. Aquilo não lhe podia
acontecer. Ah! Não podia.
— Mas é a bruta. Dois
mil contos! Eu mandei na loja lhe avisar!
Diante dos olhos do
coronel tudo dançava: o italiano, as árvores, as pessoas... Os
foguetes continuavam a subir para o céu e estouravam lá em cima,
provocando ecos atrás da igreja. Agora em torno de Zé Maria havia
muitas pessoas, conhecidas umas, desconhecidas outras. Ele tinha
vontade de gritar. Sons confusos lhe chegavam aos ouvidos: —
Parabéns! Felizardo! Qual foi o número? Nasceu empelicado! Sim
senhor!
Depois que se livrou dos
abraços da primeira hora, examinando com os próprios olhos o
telegrama que trouxera o resultado da extração; depois que bebeu um
copo d'água fria é que Zé Maria começou a se habituar à
realidade maravilhosa. Quando serenou, o seu primeiro pensamento foi
para o amigo: “Eu só quero é ver a cara do Madruga.” E viu.
Madruga chegou, fingindo indiferença.
— Ouvi dizer que tiraste
a sorte grande.
O sorriso largo de Zé
Maria era uma confirmação. Madruga segurou o palito, fleumático,
fez uma careta de dúvida e disse:
— Não sei se te
felicito... Bem diz o ditado que a fortuna é cega. Deus às vezes dá
osso pra cachorro sem dente. Dentro de dois anos não tens mais um
miserável níquel. Por falar nisto, me empresta vinte mil-réis.
Zé Maria tirou do bolso
uma cédula de cinqüenta.
— Leva cinqüenta! Estou
louco da vida.
Li anteriormente:
Clarissa (1933)
Olhai os Lírios
do Campo (1938)
O Tempo e o
Vento, vol. III – O Arquipélago (1962)
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