O Caso de
Charles Dexter Ward (1941)
A
produção literária de H. P. Lovecraft, distribui-se
maioritariamente por contos – a língua inglesa possui diferentes
palavras para traduzir "conto", de acordo com a sua
extensão, que aqui seriam bem empregadas –, e uma única novela: The Case of Charles Dexter Ward, escrita em 1927
mas publicada apenas em 1941.
Numa
história que parte das causas para os motivos, sem uma única
descrição gráfica dos horrores que a povoam, Lovecraft leva-nos
até uma Providence da primeira metade do séc. XVIII, para nos
apresentar o sinistro Joseph Curwen, o esquecido antepassado de
Charles Ward, que, por se dedicar a artes demoníacas foi justiçado,
uma noite, pelos seus conterrâneos e apagado da memória colectiva.
Cento e cinquenta anos depois, o jovem Charles Ward tetraneto e sósia
do velho Curwen, fascinado pelo esoterismo, desenrola o novelo que
lhe permitirá reconstituir os acontecimentos e entrar na posse dos
apontamentos do tetravô. Isto abrir-lhe-á a porta para retomar as
experiências demoníacas do velho, libertando forças que estão
para além do seu controle, numa voragem que acabará por o possuir,
quando, aos olhos dos outros, a mudança do seu comportamento passará
por loucura. Será o doutor Marinus Willett, amigo da família, que
descobrirá as implicações sobrenaturais do caso e conseguirá uma
forma de o remediar. São dele estas palavras significativas e sempre
actuais: «um homem não pode interferir com a natureza além de
certos limites [porque] todo horror que criou se erguerá para
destruí-lo».
Por
volta de setembro, o vampirismo declinou, mas, em janeiro do ano
seguinte, Ward quase se envolveu em problemas sérios. Havia algum
tempo as chegadas e partidas noturnas de caminhões no bangalô de
Pawtuxet eram motivo de comentários e a essa altura um acontecimento
imprevisto revelou a natureza de pelo menos uma das suas cargas. Num
local solitário, perto de Hope Valley, ocorreu uma das frequentes e
sórdidas emboscadas a caminhões por obra de assaltantes visando
carregamentos de uísque, mas dessa vez os bandidos estavam
destinados a levar um enorme choque. Pois, ao serem abertas, as
longas caixas roubadas revelaram um conteúdo extremamente asqueroso,
em realidade tão asqueroso que a coisa não pôde ser abafada entre
os membros do submundo. Os ladrões enterraram precipitadamente o que
haviam descoberto, mas, quando a polícia do estado foi informada do
caso, empreendeu-se uma cuidadosa busca. Um vagabundo preso havia
pouco tempo, em troca da garantia de isenção de acusações
adicionais, consentiu por fim em conduzir um grupo de milicianos até
o local e no esconderijo improvisado foi descoberta uma coisa
absolutamente asquerosa e vergonhosa. Não ficaria bem para o senso
de decoro nacional — ou mesmo internacional — se o público
viesse a saber o que foi descoberto por aquele grupo horrorizado. Não
havia dúvidas, mesmo para policiais sem muito preparo; vários
telegramas foram enviados a Washington com febril rapidez.
As
caixas eram endereçadas a Charles Ward em seu bangalô de Pawtuxet e
agentes estaduais e federais imediatamente fizeram-lhe uma visita com
propósitos enérgicos e sérios. Encontraram-no pálido e preocupado
com seus dois estranhos companheiros e receberam dele o que lhes
pareceu uma explicação válida e provas de inocência. Ele
necessitara de certos espécimes anatômicos como parte de um
programa de pesquisa cuja profundidade e autenticidade qualquer um
que o conhecesse na última década poderia comprovar, e encomendara
tipo e número exigidos a certas agências que ele julgara tão
legítimas quanto este tipo de coisas poderia ser. Da identidade
dos espécimes ele não sabia absolutamente nada e ficou muito
chocado quando os inspetores aludiram às consequências monstruosas
para o sentimento público e a dignidade nacional que o conhecimento
do assunto produziria. Em sua declaração ele foi firmemente apoiado
por seu colega barbudo, o doutor Allen, cuja estranha voz abafada
tinha mais convicção mesmo do que o tom nervoso de Charles; de modo
que no fim os agentes não adotaram nenhuma medida, mas
cuidadosamente tomaram nota do nome e endereço de Nova Iorque que
Ward lhes forneceu como base para uma averiguação que não resultou
em nada. Apenas é justo acrescentar que os espécimes foram rápida
e silenciosamente devolvidos aos seus devidos lugares e o grande
público jamais saberá de sua sacrílega perturbação.
Li anteriormente:
Nas
Montanhas da Loucura (1936)
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