Eusébio Macário (1879)
Eusébio Macário representa, na
obra de Camilo Castelo Branco, uma incursão na literatura realista –
tal como os livros seguintes A Corja e A Brasileira de
Prazins. É. No entanto, curioso atentar no que escreve o próprio
autor no Prefácio da 2.ª edição quanto ao assunto; por um lado,
sabendo-se que o romantismo tinha, pela sua pena, particularidades
que o afastavam da ortodoxia, afirma, perante a citação de um
familiar não identificado que lhe resumia em traços largos as
características do realismo/naturalismo, a propósito de Zola:
“Compreendi, e achei que eu, há vinte e cinco anos, já assim
pensava, quando Balzac tinha em mim o mais inábil e ordinário dos
seus discípulos.” E também, sobre o presente livro: “O tímido
autor esperava que os artistas não refugassem a obra tracejada, e
afirmassem que eu, nesta decrepidez em que faço ao estilo o que os
meus coevos de juventude fazem ao bigode, não podia penetrar com
olho moderno os processos do naturalismo no romance. Ora a coisa em
si era tão fácil que até eu a fiz, e tão vaidoso fiquei do
Eusébio Macário que o reputo o mais banal, mais oco e mais
insignificante romance que ainda alinhavei para as fancarias da
literatura de pacotilha. Se eu o não escrevesse de um jacto, e sem
intermissões de reflexão, carpir-me-ia do tempo malbaratado.” E,
apesar de acrescentar, de seguida, que não intentou ridicularizar a
escola realista, é difícil não considerar que Camilo lhe deu aqui,
no mínimo, uma torção jocosa.
Com uma galeria de personagens
caricatos, a novela Eusébio Macário tem entre os principais
protagonistas o farmacêutico do mesmo nome, em S. Tiago da Faia, uma
aldeia de Cabeceiras de Basto. O farmacêutico, viúvo, tem dois
filhos: José Macário, o Fístula, que após uns anos entre os
estudos e a boémia bracarense decide tomar a sério o negócio do
pai, e Custódia, uma rapariga espevitada em idade casadoira. Há
também um padre pouco religioso, Justino, que vive amantizado com
Felícia, uma mulher por quem tivera uma paixoneta antes de ir para o
seminário. Entretanto, regressa do Brasil o comendador Bento
Montalegre, irmão de Felícia, com uma fortuna imensa que lhe
permite comprar o título de barão. O “brasileiro” tenta seduzir
Custódia, mas a rapariga não se deixa comprar porque vislumbra a
oportunidade de se tornar baronesa, e Bento, que cede ao amor, não
tem outro remédio senão pedi-la em casamento, mudando-se depois o
casal para um casarão que o barão comprou no Porto... As peripécias
sucedem-se, num instantâneo mordaz de um Portugal saído das
convulsões entre liberais e absolutistas, no segundo quartel do séc.
XIX, instalada já a partidarite bronca, da qual Eusébio Macário é
um exemplo rematado, tendo como pano de fundo uma certa tacanhez
rural de materialismo rasteiro, no fundo equivalente ao jogo de
falsas aparências do meio urbano, mais polido, mas onde o verniz
estala com grande facilidade.
Gostaria de ter citado abaixo o
discurso que Eusébio Macário dirige ao genro, no banquete do
casamento da filha, depois deste último lhe ter comprado uma
condecoração do reino; o texto, imperdível, é no entanto
demasiado extenso para este espaço – além de conter uma série de
alusões a factos históricos que é necessário conhecer, para
apreciá-lo inteiramente.
Eusébio Macário passou a botica. O
genro exigira-lhe e ele condescendera sem excitação. Sentia-se
outro homem. O baronato da filha dera-lhe a vaidade legítima de a
ter fecundado, via em si um produtor com predestinação; não podia
ser mera casualidade aquela brisa forte da fortuna que lhe ventara um
ror de prosperidades, coroando-lhe a Custódia que parecia destinada
a dar em droga, e armando-o a ele Cavaleiro de Cristo. Achava-se na
roda dos titulares e dos capitalistas. Polia-se sem saber como. A
fortuna insensivelmente dava-lhe um verniz que lhe ocultava os laivos
da ignorância e da bruteza aldeã. Lia a política do dia,
interessava-se, discutia na Assembleia Portuense de que o fizeram
sócio, e jogava o gamão com o presidente da Câmara, o conde de
Alpendurada, seu correligionário ardente, ou com o visconde de Vila
Verde que o admirava nos alvitres políticos. As vezes, os três
discordavam, pegavam-se e tinham questões azedas no Palheiro, a
discutirem qual dos dois Cabrais era o marquês de Pombal.
Desconchavavam-se também sobre posturas municipais, tendentes à
sanidade pública. Eusébio Macário vencia-os sempre com os seus
conhecimentos de farmácia, citava autores, e explicava o efeito dos
gases nocivos à respiração. Incomodava-o, porém, a própria
inércia: queria ser prestadio aos seus concidadãos, provar a sua
capacidade, pôr a mão na coisa pública; achava-se com dotes para
camarista, e confiava a sua sorte à fortuna nem sempre discreta com
as grandes capacidades. O Mota Prego dizia-lhe que se fizesse ouvir a
miúdo, que granjeasse a pouco e pouco a aura pública, e contasse
com o Porto que era o clima por excelência dos homens da sua
têmpera. Consultava o genro. O barão dizia-lhe que comesse e
bebesse, e que se deixasse de asneiras.
Li anteriormente:
Amor de Perdição (1862)
A Queda dum Anjo (1866)
Ningún comentario:
Publicar un comentario