Contacto (1985)
Carl Sagan foi um dos meus heróis da
adolescência. Tinha descoberto a literatura FC pouco antes, e a sua
série televisiva “Cosmos” mostrava-me como a realidade podia ser
tão empolgante como a ficção. Cerca de 15 anos depois, por altura
da sua morte, o site de Richard C. Hoagland, do qual eu era um fiel
seguidor, deu-me uma face diferente, mais sombria, de Sagan. Mais ou
menos por essa altura surgiu a adaptação cinematográfica do seu
primeiro romance, Contact, que fazia parte da minha longa
lista de possíveis leituras futuras. O filme, com Jodie Foster,
passou várias vezes na TV e não resisti a ver excertos, que tentei
esquecer rapidamente com receio que me estragassem o prazer da
leitura que um dia encontraria no livro.
Contacto tem um tema-base
interessante e bem desenvolvido: a busca SETI (um projecto realmente
existente) leva à captação de um sinal rádio vindo do espaço,
naquela que é, comprovadamente, a primeira mostra da existência de
vida extra-terrestre inteligente. A análise aprofundada da mensagem
permite extrair a informação necessária à construção de uma
máquina, cujo fim último não é revelado na mensagem. A personagem
principal é Ellie Arroway, formada em radio-astronomia, que acaba
por trabalhar para o SETI onde tem um papel preponderante na
descoberta e descodificação da mensagem extra-terrestre. Activada a
máquina, que atravessa o espaço-tempo, Ellie faz uma estranha
viagem, acompanhada de outras quatro pessoas ligadas ao projecto. No
regresso enfrenta uma céptica comissão de inquérito que, de
argumento em argumento, destrói toda a sua descrição da viagem, da
qual não existem provas nem evidência.
No pano de fundo da narração fica a
eterna oposição entre a religião revelada e a ciência, com a
última a ganhar praticamente todos os assaltos por KO, como seria de
esperar no ponto de vista de um cientista. Nisto revela uma certa
obsessão por algo que teima escapar à sua compreensão, como
acontece frequentemente entre os cientificistas, na posição algo
ridícula de um esbracejar sem sentido, como se pretendesse abraçar
o vento. No final do livro, a comissão de inquérito denota o mesmo
tipo de oposição, dentro da própria ciência. Por fim surge a
prova da criação artificial do Universo — uma prova material,
evidentemente, a única que um cientista estará disposto a aceitar
— que aparenta remeter para aquilo que hoje em dia é conhecido como o
“intelligent design”.
Escrito em 1985, Contacto é de
uma correcção política a toda a prova, e o mais penoso é
precisamente a leitura desse embrulho ideológico, do modo pouco
subtil com que Sagan tenta empurrá-lo com a narração — não é,
infelizmente, o único autor FC a fazê-lo. Mas se, em 1985, isto era
um posicionamento contra-cultura, que podia dar ainda uma “medalha”
nos sectores marginais, 35 anos depois é este o discurso
estabelecido e dominante, a “voz do sistema”. Contacto tem
bons bocados de prosa, sem dúvida, mas não faz de Carl Sagan um
escritor de primeira categoria, nem sequer na área limitada à FC. A
tradução também não ajuda muito; é demasiado literal e cheia de
imprecisões e barbarismos desnecessários — a expressão “flesh
and blood” (cap. XX) traduz-se por “carne e osso”, não “carne
e sangue”, tal como “event horizon” (cap. XIX) se traduz por
“horizonte de acontecimentos” e não por “horizonte
coincidente”, por exemplo.
Uma parte dela estava estupefacta por
Joss a submeter àquela prova, mas, por outro lado, sentia-se
decidida a dar boa conta de si. Deixou a mala escorregar-lhe do ombro
e descalçou os sapatos. Ele saltou, com um movimento gracioso, o
gradeamento de segurança de latão e ajudou-a a passar para o outro
lado. Desceram a vertente de mosaico, meio a andar, meio a
escorregar, até pararem ao lado do pêndulo. Tinha um revestimento
preto-baço e ela perguntou-se se seria feito de aço ou de chumbo.
— Terá de me dar uma ajuda — disse
Ellie.
Conseguiu passar facilmente os braços
à volta do pêndulo e, juntos, empurraram-no até ficar inclinado, a
formar um bom ângulo com a vertical e nivelado com a cara dela. Joss
observava-a atentamente. Não lhe perguntou se estava certa,
absteve-se de a advertir do perigo de cair para a frente, não lhe
recomendou que desse ao pêndulo um componente horizontal de
velocidade quando o largasse.
Atrás dela havia um bom metro ou metro
e meio de chão plano, antes de começar a inclinar-se para cima e se
transformar numa parede circunferencial. Se mantivesse a serenidade,
disse a si mesma, aquilo ia ser canja. Largou. O pêndulo afastou-se
dela. O tempo de duração da oscilação de um pêndulo simples,
pensou um pouco tonta, é 2π, raiz quadrada de C sobre g, sendo C o
comprimento do pêndulo e g a aceleração devida à gravidade. Em
consequência de atrito na chumaceira, o pêndulo nunca pode
ultrapassar, no regresso, a sua posição primitiva. Tudo quanto
tenho de fazer é não cambalear para a frente, recordou a si
própria.
Perto do gradeamento oposto, o pêndulo
afrouxou e parou. Invertendo a trajectória, desatou subitamente a
avançar muito mais depressa do que ela calculara. À medida que se
inclinava na sua direcção, o seu tamanho aumentou alarmantemente.
Era enorme e estava quase em cima dela. Ellie soltou um ofego
abafado.
— Recuei — disse, decepcionada,
quando o pêndulo se afastou dela.
— Só um bocadinho pequeníssimo.
— Não, eu recuei.
— Você acredita. Você acredita na
ciência. Existe apenas um niquinho de dúvida.
— Não, não se trata disso. Foi um
milhão de anos de inteligência a lutar contra mil milhões de anos
de instinto. É por isso que o seu trabalho é muito mais fácil do
que o meu.
— Nesta questão, o nosso trabalho é
o mesmo. Agora é a minha vez — disse, e agarrou
desequilibradamente o pêndulo no ponto mais alto da sua trajectória.
— Mas nós não estamos a pôr à
prova a sua crença na conservação da energia.
Ele sorriu e tentou firmar os pés.
— Que estão a fazer aí em baixo? —
perguntou uma voz. — São doidos? — Um guarda do museu, numa
ronda para se certificar de que todos os visitantes sairiam até à
hora do encerramento, vira-se perante o espectáculo inesperado de um
homem, uma mulher, um fosso e um pêndulo num recesso do cavernoso
edifício onde não havia mais nada.
— Oh, não há novidade, senhor
guarda — tranquilizou-o Joss, bem-humorado. — Estamos apenas a
pôr à prova a nossa fé.
— Não podem fazer isso na
Smithsonian Institution — respondeu o homem. — Isto é um museu.
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