7 de decembro de 2025

O Sonho do Tio


Fiodor Dostoievski
O Sonho do Tio (1859)

Editada em 1908 em Portugal sob o título Um Club da Má-Língua, numa tradução de origem brasileira, esta novela de Dostoievski é mais conhecida por O Sonho do Tio, que é o significado literal do título original em russo. Publicada pela primeira vez na revista Russkoye Slovo, em 1859, assinalou o regresso do autor à escrita, praticamente uma década passada, após ter sido condenado por conspiração e levado para cumprimento de trabalhos forçados na Sibéria, de quatro anos passados no Cazaquistão em serviço militar, e do seu casamento com Maria Dmitriévna. Por estes antecedentes, o próprio Dostoievski admitiu ter escrito esta novela receoso da censura, pelo que considerava ter resultado num trabalho, involuntário, de certa brandura e inocência.
É uma história satírica que anda à roda da sociedade provinciana de Mordassov, dominada por Maria Alexandrovna, cuja filha, Zinaida Aphanassièvna, tarda em encontrar um casamento apropriado. Entretanto chega à cidade o príncipe K..., também nomeado como Gavrila, um viúvo velho e senil, mas rico, que todos consideram estar com os pés na cova, o que faz dele um partido vantajoso e cobiçado. Maria Alexandrovna, urde um plano para casar a filha com o príncipe, que esta aceita com alguma relutância. Pavel Alexandrovitch, que andava a fazer a corte a Zina, despeitado, vai tentar sabotar esse plano e da situação sai aquilo que, em teatro, chamar-se-ia uma comédia de costumes, cheia de equívocos, bisbilhotices e voltas inesperadas.

Pavel Alexandrovitch estava já no vestíbulo a enfiar a chuba, eis que rompe por ali dentro, saída não se sabe donde, a Nastassia Petrovna.
— Aonde vai? — diz, agarrando-o pela mão.
— A casa do Borodoniev, Nastassia Petrovna, a casa do meu padrinho. Coube-lhe a honra de me baptizar. Um velho rico, um padrinho de quem se herda, um homem que se deve amimar.
— A casa do Borodoniev! Pois diga adeus, desde já, à sua noiva, — disse com sequidão Nastassia Petrovna.
— Como assim?
— Assim mesmo. Supõe que a tem segura? Isso sim! Vai, mas é casar com o príncipe.
— Com o príncipe. Que me diz, Nastassia Petrovna?!
— Que me diz, quê? Quer ver com os próprios olhos e ouvir com os próprios ouvidos? Pendure para aí a chuba, e venha comigo.
Pavel Alexandrovitch, aturdido, atira para o lado a chuba e deixa-se levar para o quarto escuro, cuja porta dá para a sala.
— Mas que quer isto dizer! Nastassia Petrovna, não percebo patavina.
— Perceberá assim que ouvir. A comédia não tarda a principiar.
— Qual comédia?
— Chiton! Não fale tão alto! Qual comédia? E é o senhor que paga as despesas; andam a enganá-lo; esta manhã, assim que o senhor saiu com o príncipe, a Maria Alexandrovna pôs-se a apoquentar de dor de ilharga a Zina, mais de uma hora, com o sentido em persuadi-la a aceitar para marido aquele jarreta de engonços. Dizia ela que não havia nada mais fácil do que era o enredá-lo. Propunha uns tais alvitres que a mim própria me causavam asco. Ouvi-os daqui, a Zina anuiu. E que cama lhe não fizeram ao senhor, ambas de duas! Têm-no na conta de um imbecil, e a Zina declarou formalmente que não casava com o senhor por coisa nenhuma deste mundo. E eu, tão tola, que já me estava até enfeitando para pôr ao pescoço uma gravata cor-de-rosa! Mas escute! escute!
— Se assim é... é uma infâmia! — murmurou Pavel Alexandrovitch, esparvoado, fitando olho a olho a Nastassia Petrovna...
— Mas escute! Vai ouvir o bom e o bonito!...
— Escutar onde?
— Debruce-se se ali naquela frincha da porta.
— Mas... Nastassia Petrovna, eu sou lá homem que me ponha a escutar às portas?!
— Emprega bem o seu tempo! Aqui, meu paizinho, é preciso meter a honra na algibeira. Desde que cá veio, escute...
— Contudo...
— Se não quer, resigne-se a ficar a chuchar no dedo! E a mim que me importa? Eu com dó do senhor, e o senhor com cerimónias! Será para mim que eu ando a trabalhar? Eu, por mim, já nem cá fico esta noite.
Pavel Alexandrovitch, muito contra sua vontade, encosta o ouvido à fisga da porta. Referve-lhe o sangue nas artérias. Não percebe uma palavra de quanto em volta de si se está dando.


Li anteriormente:
Los Demonios (1873)
Os Irmãos Karamázovi (1880)
O Eterno Marido (1870)

Ningún comentario:

Publicar un comentario