Hermann Hesse
O Lobo da Estepe (1927)
O Lobo da Estepe (Der
Steppenwolf) é um romance com uma estrutura peculiar: inicia-se
por um Prefácio redigido pelo sobrinho da senhoria de Harry Heller,
o protagonista, onde narra as circunstâncias em que o conheceu e
como lhe chagaram à mão os seus apontamentos. O resto do livro são
os apontamentos de Harry Heller, onde se inclui ainda o "Tratado
do Lobo da Estepe", um breve ensaio sobre questões espirituais,
que lhe foi oferecido e é transcrito na íntegra.
Harry Heller descreve-se como um lobo
da estepe, um cinquentão oriundo da burguesia, que simultaneamente
almeja e despreza, transformado em ser intelectualizado que acaba à
margem da sociedade, tão incapaz de se integrar quanto falho da
vontade para o fazer. Do seu encontro com Hermínia, uma jovem
mundana que o arrasta para os salões de baile, lhe dá a conhecer os
seus amigos e lhe propõe um estranho pacto de morte, aprende uma
nova forma de estar e sentir.
Passado nos Loucos Anos da década de
20, com a música de jazz por fundo e onde se fala da inevitabilidade
da próxima guerra, O Lobo da Estepe é um livro tão mais
interessante quanto se vai afastando da realidade objectiva, rumo a
um surrealismo espesso, onde se representam os medos e as angústias
da sua época.
Ah, é difícil achar esse trilho de
Deus em meio à vida que levamos, na embrutecida monotonia de uma era
de cegueira espiritual, com sua arquitetura, seus negócios, sua
política e seus homens! Como não haveria de ser eu um Lobo da
Estepe e um mísero eremita em meio de um mundo de cujos objetivos
não compartilho, cuja alegria não me diz respeito! Não consigo
permanecer por muito tempo num teatro ou num cinema. Mal posso ler um
jornal, raramente leio um livro moderno. Não sei que prazeres e
alegrias levam as pessoas a trens e hotéis superlotados, aos cafés
abarrotados, com sua música sufocante e vulgar, aos bares e
espetáculos de variedades, às Feiras Mundiais, aos Corsos. Não
entendo nem compartilho essas alegrias, embora estejam ao meu
alcance, pelas quais milhares de outros tanto anseiam. Por outro
lado, o que se passa comigo nos meus raros momentos de júbilo,
aquilo que para mim é felicidade e vida e êxtase e exaltação,
procura-o o mundo em geral nas obras de ficção; na vida parece-lhe
absurdo. E, de fato, se o mundo tem razão, se essa música dos
cafés, essas diversões em massa e esses tipos americanizados que se
satisfazem com tão pouco têm razão, então estou errado, estou
louco. Sou, na verdade, o Lobo da Estepe, como me digo tantas vezes —
aquele animal extraviado que não encontra abrigo nem alegria nem
alimento num mundo que lhe é estranho e incompreensível.
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