Gentil Marques
Lendas de Portugal, vol. 2 (1963)
Segundo volume desta recolha de lendas
populares, dedicado este às Lendas Heróicas. O excerto citado
pertence à Lenda das Chaves do Castelo de Coimbra. Esta lenda
passa-se após o termo do reinado de D. Sancho II, na sequência da
guerra civil de 1245-47, que o opôs ao seu irmão e sucessor D.
Afonso III. D. Sancho II, após tentativa de reforço da
centralização monárquica do poder, foi vítima de uma conspiração
destinada a depô-lo que contou com a cumplicidade do clero e do
papado, que o excomungou e ostracizou. O rei deposto morreu no ano
seguinte no seu exílio de Toledo, que serve de cenário a esta cena
final.
Vendo-o, D. Gil Martins ergueu-se.
– Grande honra tenho em receber-vos!
Martim de Freitas pareceu não ligar ao
cumprimento e perguntou em tom grave:
– El-rei D. Sancho II é morto?
Baixando a cabeça, o fidalgo
confirmou.
– Sim... é morto. Que Deus tenha a
sua alma em descanso!
– Vistes o seu corpo sem vida?
– Deus reservou-me mais esse
desgosto!
– Pois quero eu vê-lo também.
D. Gil Martins elevou a estatura num
gesto de surpresa.
– Que dizeis, D. Martim de Freitas?
Solene, o visitante confirmou:
– O que acabais de ouvir, senhor.
Quero vê-lo e desempenhar-me da minha última missão.
– É assim tão urgente e...
necessário?
– Sim. Trago comigo as chaves do
castelo de Coimbra. Preciso que el-rei me desobrigue do meu juramento
antes que o rei Afonso tome conta delas.
De olhos abertos num espanto, D. Gil
Martins olhava o visitante, perguntando a si próprio se o prolongado
cerco a que D. Martim de Freitas se sujeitara não dera cabo do seu
entendimento. Mas logo o fidalgo, que parecia ter adivinhado as
conjecturas do seu interlocutor, pôs ponto final nessas mudas
interrogações.
– Senhor, creio que fui bem
explícito. O que peço é justo e não pode ser-me negado!
Lá fora, a chuva miúda, impertinente,
punha lama nos caminhos. E a tarde morria, com a pressa de quem não
tem nem deixa saudades.
O dia que nasceu depois daquele em que
Martim de Freitas chegara a Toledo não era menos triste. A chuva
deixara por momentos de cair mas o vento viera substituí-la. Um
vento gritante, que punha arrepios nas almas inquietas.
No cemitério, um pequeno grupo olhava
com ar de assombro, e por vezes entre as lágrimas, a figura altiva
de D. Martim de Freitas, agora ajoelhado junto da sepultura do que
fora seu rei e rei de Portugal. O corpo estava exposto. O fidalgo
português curvou-se e, entre as mãos cruzadas sobre o peito do
defunto, depôs as chaves do castelo de Coimbra. Beijou-lhe as pontas
dos dedos. Depois ergueu-se e falou:
– Meu rei e senhor! Enquanto
vivestes, sofri pela vossa causa as maiores privações, dissimulando
sempre, para dar conforto e ânimo aos meus companheiros. E assim
eles continuaram no castelo que é vosso e continuaram honradamente
aguentando por vós. Cumpri o meu juramento de lealdade, Senhor!
Porém, agora que sois morto e não posso já entregar-vos a cidade,
quero ao menos fazer-vos a entrega destas chaves para que,
desobrigando-me vós, eu possa apresentá-las a vosso irmão, o conde
D. Afonso, como renúncia vossa e não como triunfo de suas armas!...
Fez-se um pesado silêncio após estas
palavras, cadenciadas, solenes. Havia emoção em todos os rostos
desses homens habituados às agruras da guerra. Depois,
silenciosamente ainda, as chaves do castelo de Coimbra foram
retiradas das mãos do rei morto e a sua sepultura fechada para
sempre.
Assim ficava encerrado, também, um
feito de lealdade que jamais as chuvas, o vento, o pó ou a lama dos
caminhos poderão destruir, apesar do esforço do tempo!
Li anteriormente:
Lendas de Portugal, vol. 1 (1962)
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