23 de xuño de 2024

O Monge de Cister



Alexandre Herculano
O Monge de Cister (1848)

Publicado quatro anos depois de Eurico, o Presbítero, este romance histórico, passado nos primeiros anos do reinado de D. João I, foi algumas vezes reeditado conjuntamente com aquele, sob o título O Monasticon. A personagem principal, Vasco da Silva, um jovem cavaleiro que combateu em Aljubarrota, ao regressar a casa depara-se com o funeral do pai, morto de desgosto pela fuga da sua irmã Beatriz, seduzida por um nobre de passagem, Vivaldo – cujo verdadeiro nome é Fernando Afonso, camareiro-menor na corte do rei D. João I. Vasco descobre também que a sua prometida, Leonor, se casou na sua ausência com outro cavaleiro, Lopo Mendes. Cego pela fúria, promete vingar-se dos que lhe arruinaram a vida e a família e, quando o livro começa, sabemos que entrou na ordem beneditina, depois de ter morto Lopo Mendes. O Monge de Cister é, também, o pretexto para revisitar a Lisboa medieval, em grande parte destruída pelo terramoto de 1755, tendo como pano de fundo a consolidação do poder real à custa dos privilégios feudais da nobreza. É nessa cidade que Vasco conhece João d'Ornellas, abade de Alcobaça, que também procura, por motivos pessoais, a vingança de Fernando Afonso, e entre os dois homens celebra-se um pacto para levar à morte o seu inimigo comum.
Esta reedição, de 1918, apresenta-se como a 13.ª edição, definitiva, feita segundo a 3.ª edição, de 1869, a última da vida do autor, e dirigida por David Lopes, com o bom gosto de preservar a ortografia original do séc. XIX.

O monge estava assentado num dos poiaes de pedra que ladeiavam o vão de uma janella, d'onde, por cima da casaria inferior da cidade e do arrabalde, se descortinava o magnificente panorama do Téjo, por cuja superficie espelhada deslisavam as vélas triangulares dos barcos, e em cuja margem opposta se alevantava o fumo das povoações ainda indistinctas na penumbra dos montes. Com o cotovello encostado ao peitoril e a face firmada na mão aberta, parecia embebido no respirar delicioso da fresquidão matutina e em contemplar o quadro tranquillo e grandioso que tinha ante si. O mesteiral, que, passando pela vizinhança, distinguisse o infeliz mancebo naquella postura repousada, emquanto elle ía começar mais um dos seus dias uniformes de trabalho e privações, exclamaria, por certo, com amargura: — «Oh, estes frades ! estes frades ! . . . Para elles o céu na vida e na morte: para nós o inferno na terra e talvez debaixo della !»
É, ao menos, assim que o homem costuma julgar a Providencia.
Apenas viu o abbade, Fr. Vasco ergueu-se. Reparou então o prelado, como Fr. Julião reparara na véspera, que os cabellos do monge se haviam tornado grisalhos. Parecia, comtudo, perfeitamente tranquillo.
Fr. Vasco fez a genuflexão do estylo e, sem dizer palavra, ficou de pé e com a cabeça baixa perante D. João d'Ornellas.
Silencioso como elle, este apertou-lhe o braço e obrigou-o a assentar-se de novo, emquanto também se assentava defronte, no outro poial.
Assim ficaram por algum tempo. Dir-se-hia que, á vista da scena solemne e socegada que d'alli se descubria, ambos elles se tinham engolfado numa especie de extasi mystico. Mas quem os observasse largo espaço depois, ver-lhes-hia as frontes quasi junctas, as faces incendidas, o mover rápido dos beiços, o diabolico sorrir. Era um quadro simples, mas terrivel, como o da primeira noite em que tinham conversado sósinhos. A luz do quadro é que era diversa: lá a das tochas; cá a do sol. As trevas dos seus corações eram, porém, identicas.
[…]
Apesar das suas distracções, Mem Bugalho era homem impagavel. Afóra não vulgar talento, possuia grandes dotes politicos. Sabía a proposito humilhar-se, arrastar-se. Tomara por divisa o sagrado texto: Deposuit potentes de sede et exaltavit humiles. Não era nenhum soberbão: por força havia de subir.
Tinha-se curado de certas fogagens de altiveza de animo e d'independencia desde a severa lição que recebera na tavolagem das Portas-do-mar. Agora limitava os seus affectos e ambições a que o deixassem comer. E deixavam; e elle comia, comia, comia.
João das Regras estimava-o muito e desprezava-o profundamente. Implica em termos? Pois deixem implicar. Arranjem isso como poderem. Esta é a verdade; verdade eterna em relação aos Regras e aos Bugalhos de qualquer epocha e de qualquer paiz.
Todo o Regras tem um Bugalho: alguns têem dous; outros têem trinta.
É conforme.


Li anteriormente:
Eurico, o Presbítero (1844)

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