17 de agosto de 2024

Um Conto de Duas Cidades


Charles Dickens
Um Conto de Duas Cidades (1859)

Este romance histórico de Charles Dickens, cujo título se refere às cidades de Londres e Paris, onde se desenrola a narrativa, situa-se na época da Revolução Francesa. Divide-se em três partes e conta com um número relativamente pequeno de personagens; a primeira parte, significativamente mais curta que as outras duas, serve para nos apresentar Jarvis Lorry, um importante funcionário de um banco londrino, Lucie Manette, uma jovem de origem francesa que sempre viveu em Inglaterra, e o resgate do Dr. Manette, seu pai, libertado após dezoito anos passados na Bastilha sem acusação formal. Na segunda parte desta obra, que se inicia cinco anos depois destes acontecimentos, são-nos apresentados o Sr. Stryver e Sydney Carton, dois advogados que trabalham em sociedade, e conseguem ilibar Charles Darnay num julgamento em que é acusado de traição. Darnay é outro francês, aristocrata, que se auto-exilou em Londres ocultando a sua verdadeira identidade, vivendo do seu trabalho como professor, e acaba por desposar Lucie.
Nestas muitas dezenas de páginas, que ocupam quase dois terços da obra, não há grandes desenvolvimentos do enredo; Dickens vai descrevendo quadros que ajudam a aprofundar o retrato psicológico das suas personagens, bem como o contexto social onde elas se movem, e fá-lo de forma magistral. Só no final desta segunda parte acontece a Revolução, e as diversas pontas narrativas agrupam-se e ganham movimento. Darnay, cujo tio – um marquês – tinha sido assassinado pouco tempo antes, recebe uma carta de um gestor das suas propriedades em França, encarcerado pelos revolucionários, pedindo-lhe ajuda para salvar a vida. Perante este dilema moral, de ajudar alguém inocente com o risco de perder a própria vida, Darnay não hesita e parte para Paris, constatando que a situação é bem mais perigosa do que imaginava, sendo conduzido à prisão quase de imediato. Reconstituindo a Paris do Terror, a partir de documentação histórica, encontramos, a partir deste ponto, uma panorâmica do ressentimento e da violência que explodiu com a Revolução, com os oprimidos transformados em opressores, enquanto Darnay, denunciado, é julgado duas vezes e condenado à guilhotina.

Viram uma aglomeração de homens e mulheres. Não eram numerosos o suficiente para lotar o pátio, pois não passavam de quarenta ou cinqüenta, ao todo. As pessoas que ocupavam o palácio os haviam deixado entrar para trabalhar na pedra de amolar. Evidentemente, a pedra fora instalada ali com esse propósito, já que o local era cômodo e isolado.
Mas que trabalhadores medonhos e que medonha tarefa!
A pedra de amolar possuía uma dupla manivela, girada febrilmente por dois homens, cujos rostos, visíveis quando seus longos cabelos agitavam-se para trás, eram mais horrendos e cruéis do que as máscaras dos mais selvagens bárbaros em seus mais assustadores rituais. Sobrancelhas falsas e bigodes falsos estavam colados em suas hediondas faces cobertas de sangue e de suor, retorcidas pelos gritos, os olhos esgazeados e vermelhos brilhando pela excitação bestial e falta de sono. À medida que esses brutos giravam e giravam a manivela, com os cabelos desgrenhados batendo-lhes nas frontes e nos pescoços, algumas das mulheres derramavam vinho em suas bocas para que bebessem; e o sangue que gotejava, mais o vinho que se entornava e mais as faíscas provocadas pelo atrito na pedra, toda essa maligna atmosfera parecia uma infernal mistura de sangue coagulado e fogo. A vista não detectava uma única criatura no grupo desprovida de manchas de sangue. Acotovelando-se para se sucederem na pedra de amolar, havia homens nus até a cintura, exibindo nódoas nos braços e no peito; homens vestindo toda a sorte de andrajos ensangüentados, homens ostentando diabolicamente pedaços de renda, laços e fitas de seda impregnados de sangue. Machadinhas, facas, baionetas, espadas, todas trazidas para serem afiadas, estavam rubras de sangue. Algumas espadas estavam presas aos pulsos daqueles que as empunhavam com tiras de linho e retalhos de vestidos: os atilhos variavam na espécie, mas não na cor. E quando os frenéticos usuários dessas armas as arrancavam das nuvens de faísca e disparavam para as ruas, a mesma tonalidade rubra lhes tingia os olhos desvairados, olhos que qualquer observador não embrutecido teria dado vinte anos de sua vida para petrificar com um tiro certeiro.
Tudo isso foi vislumbrado num átimo, como a visão de um homem antes de se afogar, ou a de qualquer ser humano diante da morte. Eles se retiraram da janela, e o médico procurou por uma explicação no rosto do amigo.
— Eles estão — o senhor Lorry cochichou, fitando de modo furtivo a porta trancada — assassinando os prisioneiros. Se o senhor tem certeza do que disse, se realmente tem o poder que julga ter, como acredito que tenha, apresente-se a esses demônios e peça-lhes que o levem a La Force. Talvez seja tarde demais; contudo, não há um minuto a perder.


Li anteriormente:
Grandes Esperanças (1861)

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