9 de outubro de 2024

O Duplo e a Quimera



Ivan Turgueniev
O Duplo e a Quimera (1864)

O título original desta noveleta, em russo, é algo como Prizraki, que se traduz em português como “Fantasmas”, distante do imaginativo título que o editor português lhe atribuiu – o que não é, infelizmente, um procedimento demasiado invulgar no nosso país. Sendo um pequeno livro que não chega às 70 páginas, metade das quais ocupadas por uma espécie de prefácio ficcionado, em forma de diálogo com Turgueniev, acerca do texto principal, O Duplo e a Quimera é um produto acabado do romantismo, apesar de Turgueniev ser mais conhecido pelas suas obras no realismo.
Um jovem aristocrata russo, narrador na primeira pessoa, conta os encontros, em noites sucessivas, com um ser espectral – uma jovem mulher chamada Ellis, que vai ganhando corporalidade com o decorrer das noites, enquanto o narrador se vai debilitando. Ela transporta-o em voos vertiginosos até vários lugares e cidades do continente europeu, viajando também pelo tempo numa dessas noites, de visita à Roma Antiga e a um barco de piratas cossacos do séc. XVII. «Na realidade, quem era Ellis?» pergunta-se no final. «Uma aparição, uma alma penada, um espírito mau, um vampiro...»

Os últimos ecos da minha voz ainda ressoavam, quando ouvi... mas desisto de descrever a que experimentei. — Primeiro, foi um ruído confuso, dificilmente perceptível ao ouvido, e repetindo-se incessantemente, de trombetas e palmas. Parecia que nalgum lado, prodigiosamente longe, ou num abismo sem fundo, se agitava uma multidão numerosa — erguia-se, levantava-se em vagas concentradas, sempre a dar gritos abafados, semelhantes àqueles que se escapam do peito, nesses sonhos pesados que parecem durar séculos; depois, o ar foi perturbado e ficou mais sombrio por cima da ruína. Tive então a sensação de ver sombras surgir e desfilar, miríades de sombras, milhões de formas, umas arredondando-se em elmos, outras projectando-se como lanças. Os raios da lua dividiam-se em inúmeras centelhas azuis nestas lanças e capacetes, e todo este exército, toda esta multidão se apressava, se empurrava, avançava, crescia... Sentia-se que era animada por uma energia indizível, capaz de revolver o mundo. Contudo, não havia uma única forma que se destacasse... De repente, toda esta multidão é agitada por um movimento estranho — dir-se-iam vagas imensas que se afastam, que recuam. Caesar! Caesar venit! repetem mil vozes confusas, semelhantes ao estremecimento das folhas numa floresta sobre a qual se abate um furacão. Um toque surdo ressoou, e uma cabeça pálida, severa, com as pálpebras fechadas, cingida por uma coroa de louros, a cabeça do imperator, saiu lentamente da ruína.
Não, não há palavras numa língua humana para exprimir o terror que se apossou de mim. Disse a mim próprio que se aquela cabeça abrisse os olhos, se os seus lábios se descerrassem, nesse instante morreria. «Ellis, gritei, não quero, não posso!... Leva-me para longe de Roma, desta brutal e terrível Roma! Partamos!»

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