Música ao
Longe (1935)
Sobre Música
ao Longe, é o próprio Érico Veríssimo quem, no Prólogo,
datado de 1961, o considera um livro medíocre, apressado (foi
escrito em menos de um mês para concorrer a um prémio literário),
embora não desprovido de méritos. O tema, diz, poderia ter
comportado uma certa grandiosidade, e a história exigia um
tratamento sério e de certa profundidade. A razão disto, segundo o
autor, deve-se ao facto de ter recorrido ao diário da jovem
Clarissa, sem experiência suficiente para avaliar o drama da
família, nem para compreender as suas causas profundas.
Clarissa é a
mesma personagem do livro de 1933, agora regressada a Jacarecanga
como professora recém-formada. O drama da sua família – os
Albuquerques, outrora poderosos e ilustres –, mais do que o aperto
financeiro, pois o pai perdeu terras e gado, restando-lhe apenas a
casa que acabará por hipotecar, é também o da decadência física
e moral dos seus parentes. Música ao Longe é o confronto do
desencanto pessoal de Clarissa, a jovem adulta na posse de um novo
entendimento, vertido no diário, com os dias despreocupados da sua
infância. São os horizontes estreitos da sua terra, que lhe
prometem uma vida para a qual não consegue encontrar sentido, e
Vasco, o primo considerado a ovelha-negra da família que aguarda o
momento certo para partir dali. Entre os dois nascerá uma certa
cumplicidade, originada no entendimento mútuo e no desconforto que a
ambos assola.
Este livro acabou
por ganhar o Prémio de Romance Machado de Assis, instituído em
1934, ao qual concorreu; se todos os livros “medíocres” fossem
como este, certamente não ficávamos mal servidos.
Nicolina entra
trazendo os pires com compota de pêssego.
— Não tem
outra sobremesa? — pergunta João de Deus.
— Esta é a
única.
— Por que não
mandas buscar uma goiabada ali no Café do Pires?
O olhar de D.
Clemência é uma resposta eloquente. João de Deus compreende.
— Ele também
não quer fiar?
A mulher sacode
afirmativamente a cabeça.
João de Deus
empurra o prato, amarfanha o guardanapo com uma expressão de raiva
na cara bronzeada, ergue-se de repente e começa a passear dum lado
para outro, resmungando:
— Corja! Me
negarem crédito... Logo pra mim! Pra mim!
Cleonice, de
cabeça baixa, come a sua compota. D. Clemência olha para o marido.
Clarissa nem ousa erguer os olhos.
Como uma fera
enjaulada, João de Deus caminha da mesa até a janela, com as mãos
nos bolsos e a cabeça baixa. Vai e volta, de lá pra cá, de cá pra
lá...
— Patifes! O
velho Olivério já matou a fome de toda essa cachorrada e agora um
filho dele não tem crédito nem para uma lata de goiabada! Patifes!
D. Clemência
sacode a cabeça abandonadamente. Cleonice pede mais uma metade de
pêssego.
— O Pires! —
continua a resmungar o bisneto do general Zé Pedro. — O Pires que
andava de roupa rasgada. Papai chamou ele, deu casa, deu comida e
depois ainda por cima emprestou dinheiro pra esse ordinário se
estabelecer. Sim senhor! Hoje vai-se buscar uma lata de goiabada e
ele diz: "Não se fia!" O Pires!
— Mas, João de
Deus — observa a mulher — o coitado tem razão, já devemos cinco
meses de fornecimento, também o homem não pode viver de
promessas...
João de Deus
estaca de repente. Olhos chispantes, ele cresce para a mulher:
— Tu também?
Dando razão àquele porco? Era só o que faltava! O Pires!
Li anteriormente:
Caminhos Cruzados
(1935)
Clarissa (1933)
Olhai os Lírios
do Campo (1938)
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