Os Irmãos
Karamázovi (1881)
Os Irmãos
Karamazov (grafado também Karamazoff, ou Karamázovi nesta
edição – justificado pela tradutora com o plural russo de um
nome) foi o último romance de Dostoievski. O autor sempre se mostrou
interessado pelos dilemas morais, pela análise dos comportamentos
sob uma perspectiva filosófica, pela voragem da autodestruição de
alguns dos seus personagens. Não será por isso de admirar que esses
elementos surjam também nesta obra, talvez até com uma intensidade
superior comparativamente a livros anteriores. Há mesmo uma questão
que atravessa esta obra, que se encontra formulada do seguinte modo:
«Mas então, que se tornará o homem, sem Deus e sem imortalidade?
Tudo é permitido, por conseqüência, tudo é lícito?» Os
Irmãos Karamazov é um livro premonitório da indigência moral
originada no niilismo novecentista, e é possível que, poucas
décadas volvidas, o estalinismo se tenha reconhecido no retrato,
dado que decidiu qualificar como “perigosa” a obra de
Dostoievski...
Como personagens
principais estão Fiódor Karamázov, um rico proprietário, velho
devasso de mau carácter, pai de três filhos em dois casamentos –
Dimítri, Ivã e Alieksiéi. Dimítri, o mais velho, oficial militar,
é impulsivo e expansivo, enquanto Dimítri, quatro anos mais novo, é
frio e racional, influenciado pelas “novas ideias”. Já
Alieksiéi, o mais jovem, com o seu percurso monástico, dá o
pretexto para um enfoque religioso como ainda não se me tinha
deparado em Dostoievski, fazendo lembrar Tolstoi, apesar das grandes
diferenças entre os dois escritores. Entre as personagens
secundárias destacam-se Grúchenhka, uma mulher desonrada pela qual
Dimítri deixa a sua noiva – que é também cobiçada pelo pai
Karamázov, donde nasce o ciúme que motivará o parricídio, tema
dominante de todo o livro – e Catarina Ivânovna, noiva de Dimítri,
uma mulher da alta sociedade que, com a sucessão de acontecimentos,
toma atitudes erráticas e quase indecifráveis.
Esta edição da
brasileira Abril Cultural tem tradução de Natália Nunes e Oscar
Mendes; a primeira é portuguesa e terá feito a tradução a partir
do espanhol (outras fontes indicam o inglês), quanto ao segundo...
“traduziu-o” para “brasileiro”.
Eis
o que penso dos religiosos. Enganar-me-ei talvez, será presunção
minha? Olhai os leigos e esse mundo que se ergue acima do povo
cristão: não alterou ele a imagem de Deus e sua verdade? Têm a
ciência, mas somente a ciência sujeita aos sentidos. Quanto ao
mundo espiritual, a metade superior do ser humano, rejeitam-no,
banem-no alegremente, mesmo com ódio. O mundo proclamou a liberdade,
sobretudo nestes derradeiros anos, e que representa ela? Nada mais
senão a escravidão e o suicídio! Porque o mundo diz: «Tu tens
necessidades, satisfá-las, porque possuis os mesmos direitos que os
grandes e os ricos. Não temas satisfazê-las, aumenta-as mesmo».
Eis o que se ensina atualmente. Tal é a concepção deles de
liberdade. E que resulta desse direito de aumentar as necessidades?
Entre os ricos, a solidão e o suicídio espiritual; entre os pobres,
a inveja e o crime, porque se conferiram direitos, mas ainda não se
indicaram os meios de satisfazer as necessidades. Assegura-se que o
mundo, abreviando as distâncias, transmitindo o pensamento pelos
ares, unir-se-á sempre cada vez mais, que a fraternidade reinará.
Ai! Não acrediteis nessa união dos homens. Concebendo a liberdade
como o aumento das necessidades e sua pronta satisfação,
alteram-lhes a natureza, porque fazem nascer neles uma multidão de
desejos insensatos, de hábitos e imaginações absurdos. Não vivem
senão para invejar-se mutuamente, para a sensualidade e a
ostentação. Dar jantares, viajar, possuir carruagens, cargos,
lacaios, passa tudo como uma necessidade à qual se sacrifica até
sua vida, sua honra e o amor à humanidade, matar-se-ão mesmo, na
impossibilidade de satisfazê-la. O mesmo ocorre entre aqueles que
são ricos; quanto aos pobres, a insatisfação das necessidades e a
inveja são no momento afogadas na embriaguez. Mas em breve, em lugar
de vinho, embriagar-se-ão de sangue, é o fim para que os conduzem.
Dizei-me se tal homem é livre. Um «campeão da idéia» contava-me
que, estando na prisão, privaram-no de fumo e que essa privação
lhe foi tão penosa que quase traiu sua idéia para obtê-lo. Ora,
esse indivíduo pretendia lutar pela humanidade. De que pode ser ele
capaz? Quando muito dum esforço momentâneo, que não sustentará
por muito tempo. Nada de admirar que os homens tenham encontrado sua
servitude em lugar da liberdade, e que em lugar de servir à
fraternidade e à união, tenham caído na desunião e na solidão,
como mo dizia outrora meu visitante misterioso e mestre. De modo que
a idéia do devotamento à humanidade, da fraternidade e da
solidariedade desaparece gradualmente do mundo; na realidade,
acolhem-na mesmo com derrisão, porque como desfazer-se de seus
hábitos, aonde irá aquele prisioneiro das necessidades inumeráveis
que ele próprio inventou? Na solidão, preocupa-se muito pouco com a
coletividade. Afinal de contas, os bens materiais aumentaram e a
alegria diminuiu.
Bem
diferente é o caminho do religioso. Zombam da obediência, do jejum,
da oração, entretanto é a única via que conduz à verdadeira
liberdade; suprimo as necessidades supérfluas, domo e flagelo pela
obediência minha vontade egoísta e orgulhosa, chego assim, com a
ajuda de Deus, à liberdade do espírito e com ela à alegria
espiritual! Qual dentre eles é mais capaz de exaltar uma grande
idéia, de pôr-se a seu serviço, o rico isolado ou o religioso
liberto da tirania dos hábitos? Censura-se ao religioso o seu
isolamento: «Tu te retiraste para um mosteiro para cuidar de tua
salvação, e desertaste a causa fraternal da humanidade». Mas
vejamos quem serve mais à fraternidade. Porque o isolamento está do
lado deles e não do nosso, mas eles não o notam. Foi do nosso meio
que saíram outrora os homens de ação do povo. Por que não será
assim em nossos dias? Esses jejuadores e esses taciturnos mansos e
humildes se erguerão para servir a uma nobre causa. É o povo quem
salvará a Rússia. O mosteiro russo sempre esteve com o povo. Se o
povo é isolado, nós também o somos. Ele partilha de nossa fé e um
político incréu jamais fará nada na Rússia, seja embora sincero e
genial. Lembrai-vos disso. O povo derrubará o ateu e a Rússia será
unificada na ortodoxia. Preservai o povo e velai pelo seu coração.
Instruí-o na paz. Eis vossa missão de religiosos, porque esse povo
traz Deus em si.
Li anteriormente:
O Eterno Marido (1870)
O Idiota (1869)
O Jogador (1867)
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