Serpa Pinto
Como eu Atravessei África (1881)
O major Alexandre de Serpa Pinto é,
nos dias que correm, um nome esquecido, apesar de figurar ainda nas
placas de algumas ruas (enquanto os falsificadores da História o
permitirem). Nem sempre foi assim: ainda há poucas décadas, ao lado
de Brito Capelo e Roberto Ivens, também participantes da expedição
que originou este livro, era um dos heróis nacionais reconhecidos
pela exploração de terras africanas.
Desde sempre um apaixonado por
astronomia e por temas africanos, quando o governo do reino decidiu
enviar uma expedição científica à África Central, patrocinada
pela Comissão Central de Geografia e pela Sociedade Geográfica de
Lisboa, para fazer o reconhecimento dos vastos territórios situados
para além das costas onde os portugueses se tinham estabelecido
desde os sécs. XV-XVI, Serpa Pinto cedo mostrou a sua vontade em
participar no empreendimento.
A expedição desembarcou em Luanda em
Agosto de 1877, e dias depois Serpa Pinto encontrou-se com Henry
Stanley, o famoso explorador anglo-americano, que tinha acabado de
descer o rio Zaire — mais adiante, no livro, encontra-se também
com Silva Porto e o zoologista José de Anchieta, pioneiros da
exploração portuguesa no interior angolano.
Após sérias dificuldades em contratar
carregadores, os exploradores partem enfim, de Dombe, próximo de
Benguela, em Dezembro desse ano, rumo ao Bié. Separado de Capelo e
Ivens pouco depois do início da viagem — e brevemente a eles
reunido de novo em Belmonte (Cuíto), no Bié —, Serpa Pinto
resolve dirigir-se ao Alto Zambeze, estudar os afluentes da margem
esquerda, e, descendo o Zumbo, rumar a Quelimane, na costa
moçambicana, pelo Tete e Senna. Assim, depois do Bié, Serpa Pinto
atravessou a região que viria a ser o Moxico até ao seu ponto mais
oriental, chegando a Lialui, capital do Barôze, próximo da
confluência do Luena com o Zambeze, descendo depois o grande rio até
à confluência com o Cuando. Neste ponto, por falta de recursos, não
lhe foi possível prosseguir, como planeado, para Zumbo; e, depois de
visitar as cataratas de Mozioatunia (Victoria) viu-se obrigado a
rumar a Sul, na companhia dos Coillard, um missionário francês
acompanhado da mulher e da filha, que conheceu nas proximidades da
foz do Cuando. Depois de atravessar o Calaari, chegou a Shoshong,
capital do Manguato, hoje no Botsuana, onde já residiam muitos
ingleses, um dos quais o transportou até às margens do Marico.
Depois seguiu pelo Transvaal até à sua capital, Pretória, a
primeira cidade civilizada que encontrou desde a partida de Benguela,
descrevendo com algum detalhe a história e cultura dos bóeres.
Mas a viagem de exploração
propriamente dita terminara já em Shoshong, dado que a partir daqui
o percurso, apesar de não isento de perigos, era já reconhecido e
fora do âmbito dos objectivos que determinaram a expedição. O
regresso não foi feito através de Lourenço Marques, como então
pretendia Serpa Pinto, devido à guerra dos zulus, mas por Durban,
que alcançou numa viagem rápida de seis dias, tomando uma
diligência. Em Durban, o paquete que fazia a ligação à Europa
acabara de zarpar, obrigando-o à espera inútil de um mês pela
próxima partida, que se deu em Abril de 1879, pela rota do Índico:
por via marítima até Aden e depois por terra até Alexandria. Os
pontos seguintes foram Nápoles e Bordéus, e daqui até Lisboa, onde
chegou no mês de Junho, quase dois anos passados sobre o início da
viagem.
Escrito a partir do diário de Serpa
Pinto, Como eu Atravessei África está dividido em dois
volumes: A Carabina d’El-Rei (o título inicialmente
destinado à obra), e A Família Coillard. Sem pretensões
literárias, é um relato vivo desta viagem, dos seus casos e
adversidades, afrontando tempestades, intrigas e hostilidades, as
febres, e a permanente incerteza sobre o dia seguinte.
Era a 6 de Setembro. O thermòmetro
durante o dia tinha marcado com persistencia 33 graos centìgrados, e
o calor reflectido pêla areia tinha sido inchòmodo.
A noute apresentou-se serena e frêsca,
e eu, sentado á porta da minha tenda, pensava no meu Portugal, nos
meus e nos amigos, no futuro da minha emprêsa, tão ameaçada ali, e
ora alegre ora triste, não perdia a fé e esperava. O acontecimento
da ante-vèspera vinha pairar como nuvem nêgra sôbre o ceo lìmpido
da esperança.
Os meus Quimbares, recolhidos nas
barracas, conversavam junto das fogueiras, só eu estava fora. De
sùbito prendeu-me a attenção um sem-nùmero de pontos luminosos
que vi atravessarem o espaço.
Sem saber ao principio explicar o que
seria aquilo, tive um presentimento, e sahi do cercado de caniço que
rodeava a barraca.
Logo que cheguei fora, tudo me foi
revelado, e um grito pungente de angustia suprema escapou-se-me da
garganta.
Alguns centos de indìgenas cercavam o
acampamento, e lançavam achas ardentes sôbre as barracas cobertas
de herva sêca.
Em um minuto o incendio, ateado por um
vento forte de este, tomava incremento horrivel. Os Quimbares sahiam
espavoridos das barracas incandescentes, e pareciam loucos.
Augusto e a gente de Benguella
reuníram-se em tôrno de mim. Em presença de um perigo tão
terrivel, aconteceu-me o que por mais de uma vez me tem acontecido em
iguaes circunstancias. Fiquei sereno e tranquillo de espìrito,
pensando só em lutar e vencer.
Gritei á minha gente, semi-louca de se
ver apertada em um circulo de fôgo, e consegui reunil-a no meio do
espaço interior do campo.
Á frente de Augusto e dos muleques de
Benguella, entrei na minha barraca em chamas, e consegui tirar d’ali
as malas dos instrumentos, os meus papéis e trabalhos, e a pòlvora.
A esse tempo as barracas abrazavam tôdas, mas o fôgo não podia
attingir-nos. Verissimo estava a meu lado, inclinei-me para elle e
disse-lhe, “Eu defendo-me aqui por muito tempo, passa por onde
poderes e como poderes, e vai a Lialui dizer a Lobossi que a sua
gente me ataca, diz tambem a Machauana o perigo que côrro.”
Verissimo correu ás barracas em
chamas, e eu vi-o desapparecer por entre as labaredas. A esse tempo
ja as azagaias ferviam em tôrno de nós, e ja haviam alguns
ferimentos graves, entre elles um do prêto Jamba de Silva Porto, que
tinha uma azagaia cravada no sobrolho direito. Ás azagaias
respondiam os meus Quimbares com as balas das carabinas, mas o gentio
avançava sempre, e ja entrava no acampamento, onde as barracas
consumidas não offereciam barreira insuperavel. Em tôrno de mim,
que desarmado segurava a bandeira da minha patria, estavam batendo-se
como verdadeiros bravos os meus valentes Quimbares. ¿Estavam todos?
Não. Faltava ali um homem, um homem que deveria estar ao meu lado e
que ninguem tinha visto. Caiumbuca, o meu immediato, desapparecêra!
Ao amortecer do incendio, eu vi que o
perigo era real e enorme. Eram cem contra um.
Parecia a imagem do inferno ver
aquelles vultos nêgros, que com estridente grita pulavam ao clarão
das chamas, avançando para nós cobertos com o alto escudo e
brandindo as puidas azagaias. Foi um combater encarniçado em que as
carabinas de carregar pêla culatra, pêlo seu fôgo sustentado,
continham em respeito aquella horda selvagem.
Contudo eu calculava que o têrmo do
combate não estava longe, porque as munições desappareciam
ràpidamente; eu só tinha no comêço quatro mil tiros para as
carabinas Snider, e vinte mil para as armas de carregar pêla bôca,
mas não seriam essas as que me defenderiam; e logo que o fôgo
abrandasse, por faltarem as armas de carregamento ràpido, serìamos
esmagados pêlo gentio desvairado. O meu Augusto, que parecia um leão
raivoso, chegou-se a mim com suprema angustia, mostrando-me a
carabina, que acabava de rebentar. Disse ao meu muleque Pépéca, que
lhe entregasse a minha carabina de elephante e a cartuxeira. Augusto
correu para a frente, e fez fôgo para onde o grupo do gentio era
mais compacto. Um momento depois, a grita infernal dos assaltantes
tomou um tom differente, virando costas, tomáram elles precipitada
fuga.
Só no dia seguinte, pêlo rei Lobossi,
eu devia saber o que produzira um tal reviramento. Fôram os tiros do
meu Augusto.
Na cartuxeira de que elle lançou mão
havia balas carregadas de nitro-glicerina.
O effeito d’estas, fazendo
desapparecer em bocados, pêla explosão, as cabêças e os peitos em
que acertavam, produzio o pànico no meio d’aquelle gentio ignaro,
que vio n’uma coisa nova para elle, um feitiço irresistivel.
Foi a Providencia que me quiz valer.
Conheci que estava salvo. Meia hora
depois, appareceu-me o Verissimo, com uma grande fôrça capitaneada
por Machauana, que vinha em meu soccôrro, por ordem do rei Lobossi.
Lobossi mandava dizer-me, que era estranho a tudo, e que,
provavelmente, o seu pôvo, sabendo que eu fôra ali para os atacar
de combinação com os Muzungos de leste, que estavam com Manuanino,
fizéram aquillo por sua conta; mas que elle ia tomar as mais
vigorosas providencias para eu não soffrer mais aggressões. Tudo
aquillo, se não foi ordenado por elle, foi por Gambela.
Verissimo, vendo os desastres do
combate, perguntou-me ¿o que haviamos de fazer? e eu respondi-lhe
com as palavras de um dos maiores homens Portuguezes dos ùltimos
sèculos: — “Enterrar os mortos, e tratar dos vivos.”
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