Ferreira de Castro
A Missão (1954)
A edição
original de A Missão contém ainda dois outros textos: a
novela A Experiência e um segundo conto, O Senhor
dos Navegantes. A Missão, passada num convento em França,
nos primeiros dias da 2GM, coloca os missionários perante um dilema:
sendo o convento muito parecido com uma fábrica dos arredores, esta
um potencial alvo de bombardeamento aéreo, será legítimo aos
religiosos salvaguardar a sua presença com uma pintura no telhado, o
que facilitará a identificação do alvo correcto, pondo em risco a
vida de quatrocentos operários fabris? Ou deverão deixar tudo como
está, entregando-se nas mãos da providência divina? E a finalidade
dos treze religiosos será a de salvar vidas ou salvar almas? E a sua
eventual morte não impedirá a salvação de muitas mais almas no
futuro? A argumentação cruzada e a incapacidade de tomar a decisão
são o tema deste primeiro conto.
A Experiência,
o texto mais extenso do livro, em tons neo-realistas, conta as
histórias paralelas de dois antigos alunos de um asilo de infância
desvalida (três, se contarmos com a mulher que está presa) a quem a
vida fustigou: Januário, prestes a ser julgado por roubo e tentativa
de homicídio, e Clarinda, mulher da vida por quem ele teve uma
paixoneta nos tempos do asilo, que agora se compadece e o ajuda. A
“experiência” do título refere-se à fundação do asilo, por
um proprietário local que, por testamento, pretendia que fosse ali
ministrada uma nova educação, baseada em valores mais humanistas,
mas o projecto acabou por falhar, sendo o edifício convertido na
prisão onde decorre a maior parte do enredo.
O último texto, O
Senhor dos Navegantes, é quase um monólogo, junto a uma ermida
no topo de um monte com vista para o mar, onde se
apresenta ao visitante uma personagem a lamentar-se das imperfeições da
Criação, reconhecendo os seus erros e pontos fracos, deixando o
visitante sem perceber se está a falar com Deus ou com um foragido
do manicómio.
Assim, naquela
tarde, depois do conselho, os negros sapatos de verniz abandonaram a
sua rota habitual e aventuraram-se por sombria travessa, que jamais
haviam percorrido. Ora marchavam devagar, um pouco distraídos,
abstractos, como se participassem da meditação que se efectuava lá
em cima, na outra extremidade, no velho tronco lembravam à vista as
alegrias claras da Terra, os paredões da fábrica, ao contrário,
ressumavam uma densa tristeza, com sua escuridade de séculos caídos
e suas janelas de vidros sujos e frondosas teias de aranha. Dir-se-ia
existir uma desconsideração da própria natureza pela fábrica.
O Superior
desconhecia os verdadeiros motivos porque as freiras não se haviam
instalado ali. Parecia-lhe, porém, que o ludroso casarão devia ter
tido sempre aquele ar de excomungado, como se debaixo da sua primeira
pedra houvessem posto, não uma memória destinada à posteridade,
mas uma secreta maldição.
Lentamente, ele
voltou a examinar a metamorfose que, apesar de tudo, se dera,
momentos antes, nos valores, enraizados no seu espírito. De repente,
a pedra esquecida, sepultada nas profundidades dos alicerces, vinha à
superfície, crescia, levitava-se e pairava sobre ele, adquirindo uma
importância inesperada. O Superior tentou, então, reagir contra o
sacrifício que lhe pediam.
Recomeçara o
andamento e ia caminhando sempre com aquela cor nos olhos. As
pequenas casas proletárias que circundavam o grande edifício,
casinholas dum só piso, ligadas umas às outras, estavam revestidas
da mesma escuridade e da mesma melancolia da fábrica, uma melancolia
que se agarrava à escuridade como uma segunda camada de tinta, uma
melancolia que parecia localizada, ter fronteiras na aldeia, limites
tão nítidos como os duma ilha. Crianças enquadradas nas portas
viam-no passar; algumas baixavam os olhos, envergonhadas, outras
sorriam-lhe com reservas quando ele lhes remetia, de longe, um aceno
carinhoso e ambulante.
Li anteriormente:
A Selva (1930)
Ningún comentario:
Publicar un comentario