4 de setembro de 2024

A Missão

Ferreira de Castro
A Missão (1954)

A edição original de A Missão contém ainda dois outros textos: a novela A Experiência e um segundo conto, O Senhor dos Navegantes. A Missão, passada num convento em França, nos primeiros dias da 2GM, coloca os missionários perante um dilema: sendo o convento muito parecido com uma fábrica dos arredores, esta um potencial alvo de bombardeamento aéreo, será legítimo aos religiosos salvaguardar a sua presença com uma pintura no telhado, o que facilitará a identificação do alvo correcto, pondo em risco a vida de quatrocentos operários fabris? Ou deverão deixar tudo como está, entregando-se nas mãos da providência divina? E a finalidade dos treze religiosos será a de salvar vidas ou salvar almas? E a sua eventual morte não impedirá a salvação de muitas mais almas no futuro? A argumentação cruzada e a incapacidade de tomar a decisão são o tema deste primeiro conto.
A Experiência, o texto mais extenso do livro, em tons neo-realistas, conta as histórias paralelas de dois antigos alunos de um asilo de infância desvalida (três, se contarmos com a mulher que está presa) a quem a vida fustigou: Januário, prestes a ser julgado por roubo e tentativa de homicídio, e Clarinda, mulher da vida por quem ele teve uma paixoneta nos tempos do asilo, que agora se compadece e o ajuda. A “experiência” do título refere-se à fundação do asilo, por um proprietário local que, por testamento, pretendia que fosse ali ministrada uma nova educação, baseada em valores mais humanistas, mas o projecto acabou por falhar, sendo o edifício convertido na prisão onde decorre a maior parte do enredo.
O último texto, O Senhor dos Navegantes, é quase um monólogo, junto a uma ermida no topo de um monte com vista para o mar, onde se apresenta ao visitante uma personagem a lamentar-se das imperfeições da Criação, reconhecendo os seus erros e pontos fracos, deixando o visitante sem perceber se está a falar com Deus ou com um foragido do manicómio.

Assim, naquela tarde, depois do conselho, os negros sapatos de verniz abandonaram a sua rota habitual e aventuraram-se por sombria travessa, que jamais haviam percorrido. Ora marchavam devagar, um pouco distraídos, abstractos, como se participassem da meditação que se efectuava lá em cima, na outra extremidade, no velho tronco lembravam à vista as alegrias claras da Terra, os paredões da fábrica, ao contrário, ressumavam uma densa tristeza, com sua escuridade de séculos caídos e suas janelas de vidros sujos e frondosas teias de aranha. Dir-se-ia existir uma desconsideração da própria natureza pela fábrica.
O Superior desconhecia os verdadeiros motivos porque as freiras não se haviam instalado ali. Parecia-lhe, porém, que o ludroso casarão devia ter tido sempre aquele ar de excomungado, como se debaixo da sua primeira pedra houvessem posto, não uma memória destinada à posteridade, mas uma secreta maldição.
Lentamente, ele voltou a examinar a metamorfose que, apesar de tudo, se dera, momentos antes, nos valores, enraizados no seu espírito. De repente, a pedra esquecida, sepultada nas profundidades dos alicerces, vinha à superfície, crescia, levitava-se e pairava sobre ele, adquirindo uma importância inesperada. O Superior tentou, então, reagir contra o sacrifício que lhe pediam.
Recomeçara o andamento e ia caminhando sempre com aquela cor nos olhos. As pequenas casas proletárias que circundavam o grande edifício, casinholas dum só piso, ligadas umas às outras, estavam revestidas da mesma escuridade e da mesma melancolia da fábrica, uma melancolia que se agarrava à escuridade como uma segunda camada de tinta, uma melancolia que parecia localizada, ter fronteiras na aldeia, limites tão nítidos como os duma ilha. Crianças enquadradas nas portas viam-no passar; algumas baixavam os olhos, envergonhadas, outras sorriam-lhe com reservas quando ele lhes remetia, de longe, um aceno carinhoso e ambulante.

Li anteriormente:
A Selva (1930)

Ningún comentario:

Publicar un comentario