29 de setembro de 2024

Madame Bovary



Gustave Flaubert
Madame Bovary (1857)

Madame Bovary é por certo a obra mais conhecida de Gustave Flaubert. Objecto de polémica na época da sua edição, levou o autor aos tribunais, acusado de ofensa à moral e à religião, acusações das quais foi absolvido. O livro aborda um tema recorrente da literatura realista do séc. XIX – o adultério da mulher –, e o inevitável anticlerialismo é expressado principalmente por uma personagem não muito favorecida, o farmacêutico Homais, um burguês egocêntrico e um tanto obtuso. Em linhas largas, a narrativa acompanha um pequeno médico de província, Charles Bovary que, depois de enviuvar, casa com Emma, uma jovem de origem camponesa que conhece após fazer um tratamento ao pai dela. A mediocridade de Charles impede-o de singrar na sua carreira, enquanto Emma se deixa enredar numa teia de ilusões e mentiras – como diz a sua sogra em determinado momento, o que ela precisava era de mais trabalho manual, menos mandriice, deixar de passar o tempo com livros maus. Charles nunca tem a mais leve suspeita do comportamento de Emma, que, manipuladora, leva sempre a sua vontade avante; para financiar as suas extravagâncias vai-se endividando progressivamente, até ao colapso final.
Madame Bovary divide-se em três partes e está estruturado de uma forma clara e sóbria, tal como a escrita que emprega.

Paris, mais vago que o oceano, cintilava assim aos olhos de Emma numa atmosfera cor de fogo. A multidão de vida que se agitava naquele tumulto dividia-se entretanto em diversas partes, era classificada em quadros distintos. Emma distinguia apenas dois ou três que lhe escondiam todos os outros e que, por si sós, representavam a humanidade inteira. O mundo dos embaixadores caminhava sobre soalhos lustrosos, em salões forrados de espelhos, em torno de mesas ovais cobertas de tapetes de veludo com franjas de ouro. Havia ali vestidos de cauda, grandes mistérios, angústias dissimuladas por trás dos sorrisos. Vinha a seguir a sociedade das duquesas; todos tinham uma cor pálida; levantavam-se às quatro horas; as mulheres, pobres anjos!, usavam rendas da Inglaterra na orla dos seus saiotes e os homens, capacidades ignoradas sob um exterior de futilidade, rebentavam cavalos por divertimento, iam passar em Bade a época de Verão e, finalmente, por volta dos quarenta anos, casavam-se com herdeiras. Nos gabinetes dos restaurantes onde se ceia depois da meia-noite divertia-se, à luz das velas, a multidão mista dos homens de letras e das actrizes. Esses eram pródigos como reis, cheios de ambições ideais e de delírios fantásticos. Era uma existência acima das restantes, entre o céu e terra, nas tempestades, qualquer coisa de sublime. Quanto ao resto das pessoas, perdia-se, sem lugar definido, como se não existisse. Aliás, quanto mais próximas estivessem as coisas, mais o pensamento se lhe desviava delas. Tudo quanto a rodeava de perto, o campo enfadonho, burguesinhos imbecis, mediocridade da existência, lhe parecia uma excepção no mundo, um acaso particular a que se achava ligada, enquanto para além se estendia, a perder de vista, o imenso país das felicidades e das paixões. Nos seus desejos, ela confundia as sensualidades do luxo com as alegrias do coração, a elegância dos costumes com as delicadezas do sentimento. Não precisaria o amor, como as plantas da Índia, de terrenos preparados, de uma temperatura determinada? Os suspiros ao luar, os abraços prolongados, as lágrimas correndo sobre as mãos que se abandonam, as febres da carne e a languidez da ternura não podem pois separar-se da varanda dos grandes palácios onde há muito tempo de lazer, ou de uma antecâmara com reposteiros de seda e uma espessa alcatifa, jardineiras bem enfeitadas e um leito sobre um estrado, ou ainda do cintilar das pedras preciosas e dos alamares das librés.

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