Milan Kundera
A Insustentável Leveza do Ser
(1984)
A condição de exilado político de
Milan Kundera, a Primavera de Praga, e as reflexões sobre a situação
da sua Checoslováquia natal para lá da Cortina de Ferro, são temas
comuns aos três livros que dele li, tal como a particularidade de
todos seguirem uma estrutura de divisão em sete partes. Em A
Insustentável Leveza do Ser, originalmente editado em França
sob o título L'Insoutenable Légèreté de l'Être,
entrecruzam-se as histórias de Tomas, Tereza, Franz e Sabina (os
nomes simples das personagens principais, outros há que não têm
nome, ou são referidos por uma inicial) entremeadas de política,
filosofia e sexo, em percursos espirais que integram factos já
referidos noutro lado, tecendo assim uma narrativa em avanços e
recuos, que ganha consistência à medida que se desenrola.
Este tipo de argumento
(s)existencialista, já me agradou mais do que actualmente, o que não
significa que não tenha lido esta obra com prazer. Do livro retenho
sobretudo a sua Sexta Parte, nomeadamente nos primeiros pontos sobre
as implicações teológicas e filosóficas da merda, e logo depois
com uma explanação do kitsch como ideal estético;
impagável!
Os crimes do Império Russo foram
sempre perpetrados ao abrigo de uma discreta penumbra. Tanto da
deportação de meio milhão de lituanos e da morte de centenas de
milhares de polacos, como da liquidação dos tártaros da Crimeia
não restaram provas fotográficas nenhumas, ficando tais
acontecimentos gravados apenas na memória como algo de
indemonstrável que, mais cedo ou mais tarde, se faria passar como
uma mistificação. A invasão da Checoslováquia em 1968 foi, pelo
contrário, fotografada, filmada e arrumada nos arquivos do mundo
inteiro.
Os fotógrafos e operadores de câmara
checos souberam aproveitar a oportunidade que se lhes oferecia de
fazer a única coisa que ainda podia ser feita: preservar para o
futuro longínquo a imagem da violação. Tereza passou esses sete
dias na rua a fotografar soldados e oficiais russos nas mais diversas
situações, todas comprometedoras. Os russos foram apanhados
desprevenidos. Tinham recebido instruções precisas quanto à
atitude a adoptar no caso de serem atacados com armas ou com pedras,
mas ninguém lhes indicara como reagir perante a objectiva de uma
máquina fotográfica.
Gastou centenas de negativos a tirar
fotografias. Deu mais ou menos metade dos rolos a jornalistas
estrangeiros (as fronteiras continuavam abertas, os jornalistas
estrangeiros estavam sempre a chegar, pelo menos para uma curta
estada quase só de ida e volta, e aceitavam reconhecidamente o menor
documento). Muitas das fotografias de Tereza apareceram no
estrangeiro, nos mais variados jornais: eram fotografias de tanques,
de punhos ameaçadores, de prédios destruídos, de mortos cobertos
com bandeiras tricolores, de jovens a andar de moto a toda a
velocidade à volta dos carros de assalto, agitando grandes paus com
bandeiras checas na ponta, e de rapariguinhas muito novas com
mini-saias incrivelmente curtas que provocavam os infelizes soldados
russos sexualmente esfaimados, beijando, sob os seus narizes, o
primeiro desconhecido que passasse. A invasão russa, voltamos a
insistir, não foi apenas uma tragédia; foi também uma festa do
ódio cuja estranha euforia nunca ninguém poderá compreender.
Li anteriormente:
A Brincadeira (1967)
O Livro do Riso e do Esquecimento
(1979)
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