Leon Tolstoi
O Diabo e
Outras Histórias (1889)
O conto destacado
no título da colectânea (escolhido para o excerto mais abaixo) é,
talvez, aquele onde mais claramente se projectam os conflitos
pessoais que atormentam tantos personagens de Tolstoi; com forte
componente autobiográfica, descreve um proprietário rural que vê a
sua obsessão carnal por uma camponesa, incontrolável, sobrepor-se à
estabilidade do seu casamento, levando-o ao desespero. Este conto,
iniciado em 1889 e várias vezes reescrito (aqui apresentado com dois
desfechos diferentes) foi publicado, postumamente, em 1911.
Quanto a Falso
Cupom (de 1904 e também editado
postumamente), o mais extenso do livro, parte de um pequeno
crime cometido por dois jovens — a viciação do cheque da mesada
de um deles, apertado por dívidas — que, num efeito de bola de
neve, dá início a uma série de roubos e assassinatos. Os
criminosos são condenados e encarcerados e, sem se conhecerem entre
si, tomam contacto com o Evangelho na prisão, o que os leva à
regeneração. Sendo uma das obras tardias de Tolstoi, também
publicada postumamente, nela é bem evidente a sua interpretação
pessoal do cristianismo, que o levou a entrar em rota de colisão com
a Igreja Ortodoxa.
Fazem ainda parte
desta edição os contos Três Mortes
(1859), Kholstomér
(1888) e Depois do
Baile (1903).
Depois
do café, todos se separaram. Ievguiêni, como de costume, foi para
seu escritório. Não se pôs a ler nem a escrever cartas, mas ficou
sentado, fumando um cigarro atrás do outro, pensando. Estava
terrivelmente surpreso e amargurado com aquele sentimento detestável
que nele se manifestava inesperadamente, do qual se considerava livre
desde o casamento. Desde então nunca experimentara aquele
sentimento, nem por ela, por aquela mulher, nem por qualquer outra,
exceto por sua esposa. Muitas vezes em seu íntimo se alegrava por
essa libertação, e eis que de repente aquele acaso, que parecia
insignificante, vinha lhe revelar que não estava livre.
Atormentava-se nesse momento não pelo fato de estar outra vez
subordinado àquele sentimento, de desejá-la — nem queria pensar
nisso —, mas porque o sentimento ainda estava vivo dentro dele,
porque era preciso estar em alerta. No íntimo, não havia nem sombra
de dúvida de que acabaria por vencê-lo.
Tinha
que responder a uma carta e preencher um documento. Sentou-se à
escrivaninha e pôs-se a trabalhar. Quando terminou, esquecido do que
o inquietava, deixou o escritório para ir à estrebaria. Outra vez,
como por azar, não se sabe se por uma coincidência infeliz ou de
caso pensado, mal descera à varanda fechada quando surgiu de um
canto uma saia vermelha, um lenço vermelho e ela passou por ele,
balançando os braços e se requebrando. Como se não bastasse ter
passado, deu uma corridinha, evitando-o como numa brincadeira, e
alcançou a companheira.
Outra
vez aquele meio-dia, as urtigas, os fundos da cabana de Danila, o
rosto sorridente à sombra dos bordos e a folhagem urticante
ressurgiram na imaginação dele.
"Não,
não posso deixar isso assim" — disse consigo e, depois de
esperar que as mulheres sumissem de sua vista, dirigiu-se ao
escritório.
Li
anteriormente:
A Morte de Ivan
Ilitch (1886)
Guerra e Paz
(1869)
Ana Karenina
(1878)
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