31 de decembro de 2024
Drakkares en el Amazonas
Jacques de Mahieu
Drakkares en el Amazonas (1975)
Este livro, Drakkars sur l'Amazone no título original, mas publicado inicialmente em língua alemã, tem inúmeras referências a duas outras obras do autor sobre o mesmo tema (Le grand voyage du Dieu Soleil e L'agonie du Dieu Soleil), a saber, o estabelecimento de víquingues na América do Sul na época pré-Colombo – neste caso concreto na região amazónica, resultado da investigação antropológica e etnológica, confrontada com o testemunho escrito dos primeiros descobridores oficiais do continente e na análise de determinados vestígios arqueológicos. A teoria faz algum sentido e, a ser reconhecida, obrigaria a reescrever a História dos Descobrimentos.
Queda por saber en qué época las guerreras blancas dejaron el Altiplano andino. De seguro, no cuando la Conquista del Perú, que había tenido lugar sólo seis años antes de la expedición de Orellana. Por otra parte, la aristocracia blanca, un tanto mestizada, del imperio de los incas era muy poco numerosa y sus mujeres nunca habían hecho gala de las menores virtudes militares. En fin, los "tatuajes" de las mujeres de Jacicurá no son incaicos, sino tiáhuanacotas, ya lo hemos visto, y la diferencia es apreciable. No hay duda, pues: la partida de las amazonas tuvo lugar hacia 1290.
Fue en esa fecha, en efecto, que los diaguitas del cacique Kari, llegados de Coquimbo, en Chile, atacaron a los vikingos daneses que tenían su capital en Tiahuanacu. Salvo unos pequeños grupos que pudieron escapar, los unos por el Pacífico, los otros en la montaña y la selva, los varones fueron degollados por los vencedores. Pero las mujeres conservaron la vida. Algunas, verosímilmente, fueron tratadas por los indígenas como botín de guerra. Es normal que otras hayan conseguido escapar y hayan tratado de alcanzar el Amazonas donde, como veremos, los vikingos tenían establecimientos: Las mujeres nórdicas de la alta Edad Media, en Europa, gustaban de acompañar en la guerra a los varones de su clan y frecuentemente participaban en sus combates. Las sagas escandinavas están llenas de las hazañas heroicas de las skjöld-meyar, o Vírgenes del Escudo, que muy a menudo han sido comparadas con las amazonas. La conquista y dominación, en Sudamérica, de un inmenso imperio que se extendía del río Maule, en Chile, a la meseta de Cundinamarca (Kondanemarka: la Marca Real Danesa, en norrés) donde está situada la actual Bogotá, sin hablar de los caminos que, por el Paraguay y el Guayrá, llevaban de Tiahuanacu al Atlántico, por cierto que no habían debido de adormecer las virtudes guerreras de las mujeres vikingas de Tiahuanacu.
Las skjöld-meyar del Altiplano se refugiaron, pues, en la selva, al este de los Andes, probablemente en contacto con algunos grupos de hombres que habían tomado el mismo camino, pero que, menos numerosos que ellas, se mantuvieron verosímilmente apartados para no quedarles sometidos. Por la fuerza de las cosas, esas mujeres adoptaron el modo de vida y las costumbres que hicieron de ellas, poco a poco, lo que eran en 1542. Llegadas a orillas del Amazonas, se enteraron de que las guarniciones vikingas de la región, privadas de su base, se habían dispersado y que sus soldados habían, como ellas, por necesidad, adoptado las costumbres de los indios, único medio de sobrevivir.
Probablemente hubieran podido ir a morar con ellos. Pero se habían acostumbrado a la independencia y, tal vez, a las prácticas lesbianas. El hecho es que prefirieron, no sin establecer con los blancos de la vecindad las relaciones —belicosas o amistosas— que ya sabemos, conquistarse un pequeño reino en la región, imponiendo su autoridad a las tribus indígenas. Fue esto, por lo menos, lo que hicieron las amazonas del Alto Nhamundá. Las demás, si las hubo, desaparecieron sin dejar historia.
Li anteriormente:
La geografía secreta de América (1978)
18 de decembro de 2024
Um Homem Não Chora
Luís de Sttau Monteiro
Um Homem Não Chora (1960)
Um Homem Não Chora foi o primeiro livro publicado por Sttau Monteiro, que integra ainda uma outra novela, intitulada Pôr-do-sol no Areeiro.
O primeiro texto, narrado na primeira pessoa, segue um difuso mal-estar que domina a vida de um industrial de chapelaria, entre os seus dilemas existencialistas e a pressão social. Ele pretende a todo o custo divorciar-se da mulher, que lhe é dedicada, quando esse divórcio não é permitido por lei, e acompanhamo-lo nas suas deambulações pela baixa lisboeta, entre o advogado que lhe promete arranjar uma solução, os cafés e as boites, a família, amigos e conhecidos, nos seus hábitos diários em tempo de férias. Dá-se conta do seu gosto por mastigar passas e beber whisky, o que lhe facilita assumir, por vezes, a identidade do “homem da gravata às riscas”, que é uma versão mais caustica, desinibida e provocatória de si próprio.
Na segunda novela encontra-se uma mulher da alta burguesia, com o marido ausente e servida por duas criadas bisbilhoteiras, a quem o proprietário de um “stand” de automóveis decide impingir um carro de alta gama que ali está à espera de comprador. Para isso utiliza um jovem vendedor, que vai tentar seduzir a “velha” e, ao mesmo tempo, levá-la à compra do carro...
— Então que é feito, homem? Não o vejo há muito tempo e tenho pena. Olhe que ainda outro dia falei de si.
— Sim?
— É verdade. Sabe que necessitamos de gente para a Junta de Freguesia e eu sugeri o seu nome. A verdade, meu amigo, é que todos temos obrigação de fazer qualquer coisa. Que diz da minha ideia?
— Nem pense nisso, sr. Engenheiro. Ainda que mo peçam, nunca entrarei para essas coisas. Limito-me a fazer aquilo que sei: chapéus, bonés e barretes.
— Pois tenho pena, meu amigo. Vocês passam a vida a dizer mal e, quando se trata de fazerem qualquer coisa, desaparecem todos.
— Mas eu não digo nada, sr. Engenheiro, nem mal nem bem. Essas coisas não me interessam nem me afectam. De qualquer forma, ainda que eu dissesse mal, não entrava para a Junta de Freguesia ou para qualquer outra junta.
— É o que eu digo: para dizerem mal estão por aqui; para fazerem qualquer coisa, desaparecem.
Não consigo esconder o riso. Alguma coisa me há-de fazer rir! O Rodrigues não compreende por que me estou a rir.
— Por mais que queira, não compreendo nem vejo que isto tenha graça. Olhe que é um triste sinal dos tempos e das pessoas...
— Oiça, sr. Engenheiro Rodrigues, olhe que me não estou a rir do que o senhor disse. Pelo contrário, admiro a sua ingenuidade.
— Ingenuidade?
— Imagine o sr. Engenheiro que eu fora condenado à morte por uma sentença injusta e que passava os meus dias na cela criticando a sentença e o estado das coisas que a tornara possível. Está a imaginar isto? Pois imagine agora que o carcereiro, farto das minhas críticas permanentes, me vinha propor que eu o auxiliasse a fazer uma corda melhor para a forca, isto sabendo eu que acabaria por ser enforcado por essa corda... Imagine agora que o carcereiro, furioso perante a minha recusa, se afastava pelo corredor fora resmungando que os presos passam a vida a criticar mas que, quando se lhes oferece a possibilidade de concorrerem para o melhoramento das coisas, se recusam a auxiliar os que trabalham cheios de boa vontade. Está a perceber? Não acha que isto revelaria ingenuidade?
— O meu amigo não estará a exagerar as coisas?
— É claro que estou. O exemplo que lhe dei não tem nada que ver com a Junta de Freguesia. Apenas lho dei para que o sr. Engenheiro compreenda a minha atitude.
— Enfim... vá lá alguém percebê-los! De qualquer forma, não se esqueça da minha proposta. Se mudar de ideias venha ter comigo.
Li anteriormente:
Angústia Para o Jantar (1961)
15 de decembro de 2024
Inflación Empobrecedora, Deflación Empobrecedora
Salvador Borrego
Inflación Empobrecedora, Deflación Empobrecedora (1980)
Este ensaio de Salvador Borrego introduz o conceito de supracapitalismo, uma forma de capitalismo – desligada já da produção e comércio de bens, que sempre existiu historicamente, ainda que não fosse designado como tal – nascida da confluência do marxismo com o liberalismo. Aqui trata-se da manipulação artificial da procura e da oferta, da pura especulação financeira, da criação deliberada de crises, depressões e ciclos económicos inflacionários, tendo em vista a concentração da riqueza na mão dos agentes que provocam esses eventos, e o consequente empobrecimento dos povos. Explica como esse movimento tem sido feito em tenaz, com dois diferentes braços, conforme a conveniência, sendo um deles a revolução violenta comunista e outro a revolução suave da democracia liberal – amparando-se mutuamente na perseguição do mesmo objectivo. Esse objectivo é a imposição do mundialismo (ou globalismo), pelas elites financeiras e as organizações que lhes servem de peões neste tabuleiro mundial – aqui designadas como a Cúpula político-económica.
Abundam os exemplos documentados de colaboração e financiamento da revolução violenta (como na URSS) pelos potentados financeiros europeus e norte-americanos; aborda a forma como as organizações criadas e subvencionadas por essa gente persegue obsessivamente o mesmo fim (frequentemente encapotados por metáforas apelativas); desmascara a agenda progressista e mundialista da ONU e dos seus vários organismos, o papel da maçonaria e dos mass-media, entre outros temas, cada vez mais prementes no tempo actual.
Editado originalmente em 1980, o livro teve sucessivas edições actualizadas, sendo esta a sétima edição, de 2003, onde se faz referência acontecimentos que entretanto tiveram lugar, como a Guerra do Golfo ou o 11 de Setembro de 2001.
Pese a sus aparatosos avances, la línea violenta (marxista) de la Revolución, llevaba crecientes debilidades en sus entrañas y resultaba inferior al sistema "gradual" ("democrático"), que la Revolución ha adoptado en Occidente. En términos generales esta táctica presenta las siguientes características:
• Que cada nación, con "pluripartidismo", marche "democráticamente" para convertirse en provincia de un Gobierno Mundial.
• En vez de ocupar países con tropas extranjeras, que cada país utilice recursos propios para mantener el rumbo revolucionario.
• Socavar las bases religiosas en forma indirecta, en vez de atacar frontalmente al cristianismo.
• Fomentar el hedonismo, la búsqueda de placer, para que los pueblos se despreocupen de los valores tradicionales.
• Apaciguar a unos estratos con bienestar económico y a otros anularlos con pobreza anonadante.
Ciertamente el marxismo midió cuanta dosis de castigo podía domar a un caballo salvaje y cuánta era suficiente para someter a un disidente activo. Ensayó fármacos "despersonalizantes" para lograr que presos inocentes se declararan culpables. Creó sanatorios especiales para volver locos a ciudadanos cuerdos. Millones de habitantes fueron confinados en infernales campos de concentración. El terror se aplicó en dosis masivas contra opositores, posibles opositores y hasta parientes de éstos. En setenta años el marxismo liquidó más de 40 millones de vidas.
El plan violento marxista suponía que en dos generaciones todos los habitantes de su Imperio estarían definitiva y totalmente domesticados, y así convertidos en entusiastas marxistas. Pero no fue así... El misterio del dolor les preservó valores en su corazón. ¡Quién lo pensara!... Ni se habituaron a la esclavitud, por más que no pudieran zafarse de ella; ni perdieron la idea de Dios. Y tampoco se volvieron entusiastas marxistas adoradores del Estado. Por el contrario, su repudio al sistema se reflejó catastróficamente en el abatimiento de la producción.
Así se llegó hasta la década de los años 80s., cuando el dictador soviético Yuri Andropov (en realidad apellidado Liberman), inició el proceso para desarmar la gigantesca maquinaria comunista de la URSS. Precisamente él, que era ardiente partidario de la línea violenta; él, que había descuartizado a Hungría en 1956; él, que como jefe de la KGB había aterrorizado durante 15 años a todos los pueblos bajo su dominio.
Ese terrible dictador estuvo de acuerdo en "converger" con sus hermanos de Washington, pero murió en 1984, en vísperas de formalizar el cambio, cosa que le tocó consumar a su sucesor, Mijail Gorbachov, en abril del año siguiente, al anunciar de modo oficial la "perestroika" (reconstrucción).
De ahí en adelante la tarea de erigir un gobierno mundial se simplificó. Ya no se experimentaría a través de dos caminos, sino de uno solo. En otras palabras, la impetuosa corriente marxista detuvo su marcha y se fusionó con el Supracapltalismo. El mando quedó centralizado en las Cúpulas de Washington y Nueva York. La gran CONVERGENCIA o CONCERTACIÓN ha sorprendido a todos los que se resistían a admitir que el comunismo del Kremlin y la democracia supracapitalista de la Casa Blanca han sido —desde 1917— dos diversas caras de un mismo poder.
Li anteriormente:
Infiltración Mundial (1968)
Derrota Mundial (1953)
10 de decembro de 2024
Moll Flanders
Daniel Defoe
Moll Flanders (1722)
Daniel Defoe é conhecido como o autor de Robinson Crusoe, livro que li duas ou três vezes durante a minha adolescência, cujo número de traduções, segundo a lenda, só é ultrapassado pela Bíblia. Mas é Moll Flanders que se considera como a sua obra-prima. É uma história picaresca de uma mulher, desde a sua juventude como protegida de uma família abastada, até à sua velhice, onde alcança por fim a prosperidade. Narrada na primeira pessoa, passa pela sucessão dos seus relacionamentos e casamentos, dos altos e baixos emocionais e financeiros, de como fez do furto a sua profissão durante longos anos, quando a beleza física já não lhe garantia a subsistência, até ser detida na prisão de Newgate, julgada e condenada à morte aos 60 anos. O arrependimento, e um indulto quase sobre a hora da execução, transformam a pena num desterro, materializado no regresso à Virgínia (para onde tinha ido anteriormente num dos seus casamentos, antes de descobrir que tinha desposado o próprio irmão), acompanhada por outro dos maridos, também ele um assaltante, igualmente desterrado, com o qual se tinha casado muitos anos antes em circunstâncias rocambolescas. E é nas províncias americanas que Moll Flanders encontra por fim a paz e a abundância que antes tinha almejado. Com um certo tom moralista, para atenuar os muitos desmandos que se descrevem, Moll Flanders é um esboço espontâneo e divertido de uma certa Inglaterra, no século XVII.
A camarada que ela me indicou tinha três tipos de especialidade, a saber: o roubo de lojas, carteiras e relógios de ouro das mulheres. Ela exercia este tão perfeitamente que nunca mulher alguma chegou a tanta perfeição nesta arte como ela. A primeira e a última destas ocupações me agradavam. Auxiliei-a por algum tempo na sua prática, como se fosse a assistente de uma parteira, sem nenhum salário.
Finalmente, ela me pôs a praticar. Exibira-me sua arte e, por diversas vezes, eu havia desenganchado, com grande destreza, um relógio de sua própria cintura. Finalmente, ela me mostrou uma vítima, uma jovem mulher grávida, que levava um relógio encantador. A coisa devia ser feita à saída da igreja. Ela caminhou ao lado da senhora e, exatamente em frente à escadaria, fingiu cair, e deu-lhe um encontrão com tal violência que a assustou, começando ambas a dar gritos terríveis. No momento em que ela atropelava a senhora, eu pegava o relógio, e, segurando-o da maneira planejada, o choque fê-lo abrir o fecho, sem que a dama o sentisse. Fui embora imediatamente e deixei a minha mestra recuperar-se lentamente do seu fingido medo, junto com a mulher. Percebeu-se, então, que o relógio tinha desaparecido.
— Ah! — disse minha companheira — foram esses velhacos que me fizeram cair, eu lhe garanto. Pena que a senhora não tenha visto antes o desaparecimento do seu relógio, pois podíamos segurá-los.
Ela fez valer tão bem esta explicação que ninguém suspeitou. Cheguei em casa uma hora antes dela. Foi a minha primeira aventura acompanhada. O relógio era muito bonito, na verdade; tinha muitas pedras. Minha protetora deu-nos vinte libras por ele, das quais me coube a metade. E assim eu me tornei um perfeita ladra, extremamente endurecida, sem nenhuma consciência ou pudor, num grau que eu jamais acreditaria possível em mim, devo reconhecê-lo.
Li anteriormente:
Robinson Crusoe (1719)
17 de novembro de 2024
História da Literatura Universal, IV - VI
História da Literatura Universal, IV - VI
Vol. IV – As Literaturas no Século XVII (1989)
Vol. V – As Literaturas no Século XVIII (1990)
Vol. VI – O Século XIX - Literatura Romântica (1991)
O Vol. IV é dedicado à literatura barroca, uma derivação da literatura renascentista que floresceu sob formas muito diferenciadas nos diversos estados europeus, e ao classicismo, que pressupunha um regresso aos pressupostos do renascimento. Este tomo abarca o barroco espanhol, italiano, português, inglês, holandês e alemão; debruça-se também sobre o classicismo francês e a literatura inglesa da Restauração. O Vol. V integra o Iluminismo, neoclassicismo e pré-romantismo, com um grande destaque para as literaturas francesa e inglesa; aborda também a literatura portuguesa, espanhola, italiana e alemã, e inclui ainda um resumo acerca do aparecimento das literaturas escandinavas e eslavas: sueca, noruego-dinamarquesa e russa. O Vol. VI refere os diferentes romantismos, por vezes quase antagónicos, surgidos em várias geografias. O maior destaque vai para o romantismo inglês e alemão, seguindo depois pelas literaturas francesa, espanhola, italiana, portuguesa e russa, bem como um resumo do romantismo dinamarquês, escandinavo e eslavo. Inclui depois um capítulo mais alargado dedicado à literatura dos Estados Unidos, e encerra com outro capítulo relativo às literaturas hispano-americanas.
De novo, como exemplo, fica um excerto de cada um dos volumes.
A tradição do Renascimento português, muito rico em obras de natureza histórica e geográfica, ou com pretensões a isso, seria continuada no século XVII e de certo modo completada e fechada na interpretação da sua grandeza e poderio ultramarino iniciado no século anterior.
O mais ambicioso e sintomático dos projectos foi, neste sentido, a redacção da Monarquia Lusitana, primeira tentativa de uma historiografia portuguesa realmente moderna. Concebida e redigida no mosteiro beneditino de Santa Maria de Alcobaça, foi iniciada pelo cronista Frei Bernardo de Brito (1568-1617), que tomou como princípio – num sentido medievalista próprio da redacção eclesiástica – a criação do mundo, recolhendo lendas, tradições e relatos populares. Frei António Brandão (1584-1637) continuou esse trabalho com uma mais rigorosa comprovação das fontes, restaurando em grande parte o sentido da moderna historiografia portuguesa e esse trabalho seria prosseguido por outros monges até ao século XVIII.
A obra do dominicano Frei Luís de Sousa (1555-1632), menos importante, costuma limitar-se à hagiografia, mas devemos referir também os inacabados Anais do Rei Dom João III, redigidos por incumbência de Filipe IV entre 1630 e 1632, sobretudo pelo seu documentado carácter estritamente histórico.
A configuração da novela como género literário na Inglaterra do século XVIII tem algumas causas pelo menos imprecisas, embora se possam referir alguns condicionalismos muito concretos: em primeiro lugar, existiam nesse país as condições materiais necessárias para a consolidação de uma nova classe média capitalista, da qual se salientará a literatura enquanto produto inserido no prometedor mercado nacional; em segundo lugar, existia um precedente claro para o êxito da nova fórmula narrativa: Robinson Crusoé, uma obra que acertou com o modelo próprio da novela até aos nossos dias; em terceiro lugar – tal como se adivinha justamente na obra de Defoe –, a descoberta do subjectivismo e do sentimentalismo, que se deixava já antever desde a prosa da Restauração inglesa, possibilitou uma nova concepção do Mundo cuja tradução directa seria a novela moderna.
Na verdade, o aparecimento da novela moderna, não somente na Inglaterra, mas em toda a Europa, está determinada pela configuração de um gosto «sensível» cifrado na subjectividade e confrontada esta com a «razão universal». Por isso, assiste-se então ao culminar de um processo ideológico que, começado com o Renascimento europeu, nos alvores da modernidade, se manifesta abertamente neste século XVIII e chega aos nossos dias com alguns traços críticos devidos à crise ideológica de finais do século XIX. O subjectivismo que impregna o novo gosto literário, próprio da classe média e satisfeito com os autores dela saídos, faz com que a novela moderna se diferencie da anterior no seu abandono da «aventura exterior» pela «interior»: a estrutura narrativa não se sustenta já no encadeamento de acontecimentos, mas na exploração dos sentimentos e da consciência dos personagens, seres individuais, e não poucas vezes individualistas, que se confrontam com condições adversas no desenvolvimento ou confirmação da própria personalidade.
O século XIX vai conhecer uma grande diversificação do campo literário como meio de expressão da própria literatura. Até esse momento, a literatura necessitou do tratado teórico para se pensar a si própria. O grande achado do Romantismo neste âmbito foi o da estrita subjectividade do literário e, portanto, a descoberta de múltiplas formas para a expressão de ideias literárias. O interesse pela crítica e pela teoria literária não era novo, pois tinha nascido com a definição plena da consciência burguesa no século XVIII, precisamente em Inglaterra, onde essa classe se tinha servido de um novo género, o jornalismo, para a difusão dos ideais burgueses ilustrados. Seguindo essa tendência, os românticos tratarão os assuntos literários, culturais, sociais e ideológicos em geral, não só com base em determinados modelos formais, como socorrendo-se de outros anteriores – o ensaio –, dando-lhes uma forma moderna – por exemplo, a autobiografia – ou, inclusivamente, fazendo-os surgir da confluência de outros – por exemplo, a crítica impressionista. Produz-se desta forma a especialização de um certo sector da classe culta como «intelectuais», pensadores teóricos e críticos da sociedade e da cultura do seu tempo, com uma consciência de profissionalização e especialização que tem as suas origens no século XVIII. Resultado igualmente desta especialização do saber literário, tanto como da sua associação a uma classe burguesa altamente politizada, é a formação de «grupos» de intelectuais – geralmente associados a sectores conservadores e liberais – que irão proliferar a partir do início do século XIX.
Li anteriormente:
Vol. III – O Renascimento Literário Europeu (1989)
Vol. II – A Idade Média (1989)
Vol. I – As Literaturas Antigas e Clássicas (1989)
21 de outubro de 2024
La Increíble y Triste Historia de la Cándida Eréndira y su Abuela Desalmada
Gabriel García Márquez
La Increíble y Triste Historia de la Cándida Eréndira y su Abuela Desalmada (1972)
Este livro é composto por seis contos e uma novela curta, que lhe dá o título e ocupa sensivelmente metade das páginas. Os sete textos, da época de Cem Anos de Solidão, são muito diferentes entre si; alguns são muito breves, mas em todos se reconhece facilmente o universo literário de Gabriel García Márquez, com um par de personagens que reaparecem em diferentes contos. O texto principal, a novela, conta como uma rapariguinha órfã é explorada como criada pela sua avó, até ao dia em que causa, inadvertidamente, um incêndio na sua mansão. A velha determina que a neta vai ter de pagar o prejuízo, por ela avaliado em um milhão de pesos, literalmente com o corpo; parte então em viagem constante por vilas e aldeias, vendendo o corpo da rapariga, juntando ouro, e manejando as circunstâncias de modo que a dívida nunca possa chegar a ser paga – uma metáfora do funcionamento da especulação financeira global. O excerto escolhido pertence ao terceiro conto, El ahogado más hermoso del mundo.
Los primeros niños que vieron el promontorio oscuro y sigiloso que se acercaba por el mar, se hicieron la ilusión de que era un barco enemigo. Después vieron que no llevaba banderas ni arboladura, y pensaron que fuera una ballena. Pero cuando quedó varado en la playa le quitaron los matorrales de sargazos, los filamentos de medusas y los restos de cardúmenes y naufragios que llevaba encima, y sólo entonces descubrieron que era un ahogado.
Habían jugado con él toda la tarde, enterrándolo y desenterrándolo en la arena, cuando alguien los vio por casualidad y dio la voz de alarma en el pueblo. Los hombres que lo cargaron hasta la casa más próxima notaron que pesaba más que todos los muertos conocidos, casi tanto como un caballo, y se dijeron que tal vez había estado demasiado tiempo a la deriva y el agua se le había metido dentro de los huesos. Cuando lo tendieron en el suelo vieron que había sido mucho más grande que todos los hombres, pues apenas si cabía en la casa, pero pensaron que tal vez la facultad de seguir creciendo después de la muerte estaba en la naturaleza de ciertos ahogados. Tenía el olor del mar, y sólo la forma permitía suponer que era el cadáver de un ser humano, porque su piel estaba revestida de una coraza de rémora y de lodo.
No tuvieron que limpiarle la cara para saber que era un muerto ajeno. El pueblo tenía apenas unas veinte casas de tablas, con patios de piedras sin flores, desperdigadas en el
extremo de un cabo desértico. La tierra era tan escasa, que las madres andaban siempre con el temor de que el viento se llevara a los niños, y a los pocos muertos que les iban causando los años tenían que tirarlos en los acantilados. Pero el mar era manso y pródigo, y todos los hombres cabían en siete botes. Así que cuando encontraron el ahogado les bastó con mirarse los unos a los otros para darse cuenta de que estaban completos.
Li anteriormente:
Los Funerales de la Mamá Grande (1962)
El Coronel no Tiene Quien le Escriba (1961)
La Mala Hora (1962)
14 de outubro de 2024
El Terrorismo que Creó al Estado Sionista
Bassam Bishuti
El Terrorismo que Creó al Estado Sionista (1969)
Não se encontra facilmente informação sobre o autor, além da referência à versão inglesa deste livro (The Role of the Zionist Terror in the Creation of Israel) aparentemente editado pela primeira vez em Beirute no ano de 1969, bem como um outro título, La Violencia Encubierta del Sionismo Mundial, de 1976.
Este livro, aparecido na ressaca da Guerra dos Seis Dias, em 1967, dedica o grosso da atenção ao período decorrido entre a Declaração Balfour (1917) – onde a Inglaterra se comprometeu perante o Barão Rothschild e a Federação Sionista da Grã-Bretanha em proporcionar ao povo judeu um território, em troca da ajuda aos Aliados na Grande Guerra – e 1948, data da proclamação da independência do Estado de Israel. Quanto ao território mencionado, claro que não se situava no vastíssimo Império Britânico, mas na Palestina, então pertencente ao Império Otomano, que ficaria do lado dos derrotados. Repartidos, depois da guerra, os territórios do Médio Oriente entre a França e a Inglaterra, a Palestina ficou sob mandato britânico, com a finalidade do futuro Estado de Israel ser uma salvaguarda dos interesses britânicos na região.
Dois anos após a Declaração Balfour, devido à emigração fomentada pelos sionistas, habitavam já 65 mil judeus na Palestina, 7% da população total, que detinha 2% das terras. A emigração massiva continuou, para favorecer a mudança étnica, e doze anos decorridos, o número de judeus aproximava-se já dos 120 mil. Apesar do esforço, em 1948, os judeus não possuíam mais de 6% das terras. Algures durante este percurso, os ingleses aperceberam-se que a independência de Israel poderia arrastar à independência os países árabes da vizinhança, e fizeram tudo para limitar a emigração dos judeus para a Palestina, o que foi entendido como uma “traição” ao acordo e esteve na origem dos ataques terroristas contra as tropas britânicas. Organizações terroristas judias, como a Haganah, dirigida e supervisionada pela Agência Judaica, a Stern e a Irgun, assassinos profissionais, “dissidentes”, levaram os britânicos ao rápido abandono do território sob mandato internacional e a passagem das suas responsabilidades para a ONU entre 1947 e 1948. O plano de partilha da ONU foi um esboço impraticável que ofereceu aos judeus 60% das melhores terras (eles eram já 32% da população em 1945), e deixou-os de mãos livres para se desembaraçar dos palestinos, que ali habitavam há séculos. O excerto abaixo refere-se ao massacre de Deir Yassin, em 1948, uma aldeia sem importância nem valor estratégico, situada na zona internacional de Jerusalém, uma das primeiras façanhas de Israel, um estado criado e sustentado pelo terror desde a sua fundação.
En la mañana de aquel día, "una fuerza del IZL (Irgun) y del Grupo Stern de unos doscientos hombres atacó a la aldea árabe". Los hombres de la aldea estaban trabajando fuera. Begin describe el principio del incidente. Dice que "...uno de los nuestros, que llevaba un altavoz, se colocó a la entrada de la aldea y exhortó en árabe a todas las mujeres, niños y viejos a marcharse de sus casas y refugiarse en las faldas de la colina"; algunas de las mujeres y niños lo hicieron, pero no todos. Parece que hubo alguna defensa por parte de los árabes, porque hubo lucha. Según Begin otra vez, sus hombres "se vieron compelidos a luchar casa por casa; (y) para derrotar al enemigo utilizaron un gran número de granadas de mano" que lanzaron a las casas. En este ataque, Begin dice que sus terroristas "tuvieron cuatro muertos y casi cuarenta heridos"; sin embargo, según el comandante del Irgun de la fuerza atacante, en un discurso que dirigió a los judíos de Nueva York durante una visita a los EE.UU. más tarde, las víctimas terroristas fueron "8 muertos y 57 heridos"; de los habitantes de Deir Yassin, sin embargo, "unos 250 murieron, alrededor de la mitad de ellos eran mujeres y niños", según una investigación británica de aquel período. La manera en que estos árabes fueron asesinados causó horror y pánico entre los árabes de Palestina.
Después que la defensa árabe se había acallado, los terroristas del Irgun y del Grupo Stern agruparon a los habitantes de Deir Yassin, de los cuales más de la mitad eran mujeres y niños y les dejaron de pie bajo vigilancia en la plaza de la aldea, mientras ellos entraban en las casas y saqueaban todas las cosas de valor que pudieran coger. En seguida empezaron la carnicería, que es conocida por todo árabe como "la matanza de Deir Yassin". Los terroristas judíos clavaron sus bayonetas y asesinaron a las mujeres que estaban embarazadas, cortaron a los niños que gritaban en pedazos, delante de los ojos de sus madres. Mutilaron a las mujeres jóvenes y muchachas, cortando sus miembros después de violarlas. Ancianos y hombres jóvenes fueron deliberadamente torturados hasta la muerte, mientras que las mujeres y muchachas que quedaban fueron despojadas de toda su ropa y metidas en camiones y llevadas a Jerusalén para hacer con ellas un desfile en el barrio judío de la Ciudad Santa.
Inmediatamente después de la matanza, la Haganah llegó y bloqueó la aldea durante dos días para evitar la entrada mientras quemaban los cadáveres y echaban los restos en los pozos de la aldea en un esfuerzo para borrar toda huella de las atrocidades. Cuando el representante en Palestina de la Cruz Roja Internacional, monsieur De Reynier, pudo visitar la aldea dos días más tarde, logró ver alguna de las huellas de lo que había ocurrido. Quedó horrorizado por lo que vio, la impresión de la acción de la IZL que se formó fue que había sido "una matanza deliberada". [...]
Las noticias de la matanza de Deir Yasin causaron honda impresión en Palestina y el mundo árabe. Los árabes de Tierra Santa quedaron estupefactos. De pronto comprobaron que ser apacibles campesinos no les salvaba del salvajismo judío-sionista. De esta manera, cuando los terroristas sionistas se acercaban a una aldea para atacarla, los habitantes árabes huían aterrorizados. Pronto, pueblos y ciudades fueron evacuados, y cuando los sionistas se enfrentaron con obstinados árabes que rehusaron marcharse, los terroristas con gusto repetían algunos de los actos de la tragedia de Deir Yassin en su beneficio. Los pateaban los golpeaban y los obligaban a correr a tiros, o torturaban a cuantos tuvieran tiempo para hacerlo. Abundan los relatos del salvajismo judío en Palestina; han sido repetidos de forma ilimitada por Israel en tierras árabes ocupadas como resultado de la guerra de junio de 1967.
9 de outubro de 2024
O Duplo e a Quimera
Ivan Turgueniev
O Duplo e a Quimera (1864)
O título original desta noveleta, em russo, é algo como Prizraki, que se traduz em português como “Fantasmas”, distante do imaginativo título que o editor português lhe atribuiu – o que não é, infelizmente, um procedimento demasiado invulgar no nosso país. Sendo um pequeno livro que não chega às 70 páginas, metade das quais ocupadas por uma espécie de prefácio ficcionado, em forma de diálogo com Turgueniev, acerca do texto principal, O Duplo e a Quimera é um produto acabado do romantismo, apesar de Turgueniev ser mais conhecido pelas suas obras no realismo.
Um jovem aristocrata russo, narrador na primeira pessoa, conta os encontros, em noites sucessivas, com um ser espectral – uma jovem mulher chamada Ellis, que vai ganhando corporalidade com o decorrer das noites, enquanto o narrador se vai debilitando. Ela transporta-o em voos vertiginosos até vários lugares e cidades do continente europeu, viajando também pelo tempo numa dessas noites, de visita à Roma Antiga e a um barco de piratas cossacos do séc. XVII. «Na realidade, quem era Ellis?» pergunta-se no final. «Uma aparição, uma alma penada, um espírito mau, um vampiro...»
Os últimos ecos da minha voz ainda ressoavam, quando ouvi... mas desisto de descrever a que experimentei. — Primeiro, foi um ruído confuso, dificilmente perceptível ao ouvido, e repetindo-se incessantemente, de trombetas e palmas. Parecia que nalgum lado, prodigiosamente longe, ou num abismo sem fundo, se agitava uma multidão numerosa — erguia-se, levantava-se em vagas concentradas, sempre a dar gritos abafados, semelhantes àqueles que se escapam do peito, nesses sonhos pesados que parecem durar séculos; depois, o ar foi perturbado e ficou mais sombrio por cima da ruína. Tive então a sensação de ver sombras surgir e desfilar, miríades de sombras, milhões de formas, umas arredondando-se em elmos, outras projectando-se como lanças. Os raios da lua dividiam-se em inúmeras centelhas azuis nestas lanças e capacetes, e todo este exército, toda esta multidão se apressava, se empurrava, avançava, crescia... Sentia-se que era animada por uma energia indizível, capaz de revolver o mundo. Contudo, não havia uma única forma que se destacasse... De repente, toda esta multidão é agitada por um movimento estranho — dir-se-iam vagas imensas que se afastam, que recuam. Caesar! Caesar venit! repetem mil vozes confusas, semelhantes ao estremecimento das folhas numa floresta sobre a qual se abate um furacão. Um toque surdo ressoou, e uma cabeça pálida, severa, com as pálpebras fechadas, cingida por uma coroa de louros, a cabeça do imperator, saiu lentamente da ruína.
Não, não há palavras numa língua humana para exprimir o terror que se apossou de mim. Disse a mim próprio que se aquela cabeça abrisse os olhos, se os seus lábios se descerrassem, nesse instante morreria. «Ellis, gritei, não quero, não posso!... Leva-me para longe de Roma, desta brutal e terrível Roma! Partamos!»
8 de outubro de 2024
El Mito de la Inteligencia Artificial
Erik J. Larson
El Mito de la Inteligencia Artificial (2021)
Erik J. Larson, cientista da computação e doutorado em filosofia, tendo trabalhado em vários projectos empresariais de IA, é um escritor cuja opinião se fundamenta em bases sólidas, não em palpites nem em estados de espírito. Este livro, cujo título original é The Myth of Artificial Intelligence: Why Computers Can’t Think the Way We Do, faz um resumo histórico do desenvolvimento da IA e dos limites encontrados nesse percurso (tradução automática, programação, aprendizagem automática, etc.). Sem colocar de parte a possibilidade de se alcançar uma verdadeira IA, o autor identifica o “mito”, tanto no aspecto científico como no da cultura popular, na inevitabilidade da sua chegada, tomando como certo o caminho iniciado para a sua hipotética implantação – o que não passa, diria eu, de mais uma das expressões da crença no progresso, contínuo e ilimitado, que caracteriza o mundo moderno.
Uma das premissas para a existência da IA é o completo domínio da linguagem, coisa que terá de ser fundamentada numa teoria geral do conhecimento, que está muito longe de existir. A programação numa máquina daquilo que é a “intuição” ou o “senso comum” dos seres humanos, essencial para evitar erros grosseiros numa IA, é ainda uma miragem. O caminho que se tem seguido é o chamado “big data”, esperando que, do processamento de cada vez maiores quantidades de informação, as máquinas descubram um método para preencher os vazios da nossa própria compreensão sobre o cérebro, para depois replicar os processos – e não está a resultar, porque se atinge uma “saturação” na qual, a partir de determinado limite, a aprendizagem não só não melhora como tende a decair. Segundo o autor, seria necessário valorizar novamente o factor humano e apostar na descoberta de uma teoria forte que orientasse as hipóteses criativas e estimulasse a investigação.
Fijaos en que no estoy diciendo que la IA verdadera sea imposible. Como les gusta señalar a Stuart Russell y a otros investigadores de IA, algunos científicos del siglo XX, como Ernest Rutherford, pensaron que era imposible construir una bomba atómica, pero Leó Szilárd descubrió la manera en que operan las reacciones nucleares en cadena —y lo hizo apenas veinticuatro horas después de que Rutherford diera la idea por muerta—. Es un buen recordatorio de que no se debe apostar contra la ciencia. Pero piensa que la reacción nuclear en cadena se desarrolló a partir de unas teorías científicas comprobables. Las teorías acerca de la evolución tecnológica de un poder mental no lo son.
Las declaraciones de Good y Bostrom, presentadas como una inevitabilidad científica, son más bien una concesión a la fantasía: ¡imagínate que esto fuera posible! Y no cabe duda de que sería genial. Y quizá peligroso. Pero imaginar escenarios hipotéticos nos aleja mucho de una discusión seria sobre lo que nos espera.
Para comenzar, una capacidad de superinteligencia general debería estar conectada al resto del mundo de manera que pudiera observar y «hacer conjeturas» de manera más productiva que nosotros. Y, si la inteligencia también es social y situacional, tal y como parece que debe de ser, se requerirá una inmensa cantidad de conocimiento contextual para diseñar algo más inteligente. El problema de Good no es mecánico y restrictivo, sino que más bien atrae hacia su órbita la totalidad de la cultura y la sociedad. ¿Dónde está el plano más simple y remotamente plausible para ello?
En otras palabras, la propuesta de Good se basa, una vez más, en una visión de la inteligencia simplista e inadecuada. Presupone el error original de la inteligencia y le añade otro juego de manos reduccionista: que una inteligencia mecánica individual puede diseñar y construir otra inteligencia mecánica individual superior. Que una máquina pueda situarse en tamaño punto de creación arquimédica parece improbable, por decirlo con suavidad. En realidad, la idea de la superinteligencia es una multiplicación de errores, y representa la esencia del punto al que ha llegado la fantasía en relación con el advenimiento de la IA.
[…]
Hay otros ejemplos ya célebres —o quizá deberíamos decir tristemente célebres—. En 2016, Microsoft lanzó su esperadísimo bot conversacional, Tay. El gigante del software publicitó a Tay como un salto espectacular sobre los sistemas antiguos basados en reglas, como aquella famosa ELIZA de apariencia humana salida de los años sesenta, ya que de hecho podría aprender de la interacción con el usuario y los datos online. Pero diríase que no se estudiaron bien las lecciones de la inducción y sus límites, pues Tay se tragó feliz la secuencia de clics racistas y sexistas con que lo trolearon, además de otros discursos de odio que encontró en la red. Tay se convirtió en un alumno aventajado en metadatos, dedicándose a soltar tuits que decían «Es que odio a las feministas, joder» o «Hitler tenía razón: odio a los judíos» para consternación de Microsoft, que tardó menos de un día en cancelar esa exhibición de odio. Pero deberían haber previsto ese resultado, dada la naturaleza esencial que se escogió para su diseño, basada en el concepto de «basura entra, basura sale» (GIGO en sus siglas inglesas). Tay fue un ejemplo de miopía corporativa acerca del propio enfoque técnico —y un ejemplo más de IA débil—. En este caso, una comprensión real habría otorgado a Tay un mínimo de capacidad para filtrar aquellos tuits que resultaran ofensivos. Pero, puesto que para comenzar no disponía de esa comprensión real sobre el lenguaje o los tuits, se puso a regurgitar todo lo que consumía. Tay es un ejemplo memorable (pero, por desgracia, fácil de olvidar) del carácter de sabio idiota que tiene la IA basada en datos.
29 de setembro de 2024
Madame Bovary
Gustave Flaubert
Madame Bovary (1857)
Madame Bovary é por certo a obra mais conhecida de Gustave Flaubert. Objecto de polémica na época da sua edição, levou o autor aos tribunais, acusado de ofensa à moral e à religião, acusações das quais foi absolvido. O livro aborda um tema recorrente da literatura realista do séc. XIX – o adultério da mulher –, e o inevitável anticlerialismo é expressado principalmente por uma personagem não muito favorecida, o farmacêutico Homais, um burguês egocêntrico e um tanto obtuso. Em linhas largas, a narrativa acompanha um pequeno médico de província, Charles Bovary que, depois de enviuvar, casa com Emma, uma jovem de origem camponesa que conhece após fazer um tratamento ao pai dela. A mediocridade de Charles impede-o de singrar na sua carreira, enquanto Emma se deixa enredar numa teia de ilusões e mentiras – como diz a sua sogra em determinado momento, o que ela precisava era de mais trabalho manual, menos mandriice, deixar de passar o tempo com livros maus. Charles nunca tem a mais leve suspeita do comportamento de Emma, que, manipuladora, leva sempre a sua vontade avante; para financiar as suas extravagâncias vai-se endividando progressivamente, até ao colapso final.
Madame Bovary divide-se em três partes e está estruturado de uma forma clara e sóbria, tal como a escrita que emprega.
Paris, mais vago que o oceano, cintilava assim aos olhos de Emma numa atmosfera cor de fogo. A multidão de vida que se agitava naquele tumulto dividia-se entretanto em diversas partes, era classificada em quadros distintos. Emma distinguia apenas dois ou três que lhe escondiam todos os outros e que, por si sós, representavam a humanidade inteira. O mundo dos embaixadores caminhava sobre soalhos lustrosos, em salões forrados de espelhos, em torno de mesas ovais cobertas de tapetes de veludo com franjas de ouro. Havia ali vestidos de cauda, grandes mistérios, angústias dissimuladas por trás dos sorrisos. Vinha a seguir a sociedade das duquesas; todos tinham uma cor pálida; levantavam-se às quatro horas; as mulheres, pobres anjos!, usavam rendas da Inglaterra na orla dos seus saiotes e os homens, capacidades ignoradas sob um exterior de futilidade, rebentavam cavalos por divertimento, iam passar em Bade a época de Verão e, finalmente, por volta dos quarenta anos, casavam-se com herdeiras. Nos gabinetes dos restaurantes onde se ceia depois da meia-noite divertia-se, à luz das velas, a multidão mista dos homens de letras e das actrizes. Esses eram pródigos como reis, cheios de ambições ideais e de delírios fantásticos. Era uma existência acima das restantes, entre o céu e terra, nas tempestades, qualquer coisa de sublime. Quanto ao resto das pessoas, perdia-se, sem lugar definido, como se não existisse. Aliás, quanto mais próximas estivessem as coisas, mais o pensamento se lhe desviava delas. Tudo quanto a rodeava de perto, o campo enfadonho, burguesinhos imbecis, mediocridade da existência, lhe parecia uma excepção no mundo, um acaso particular a que se achava ligada, enquanto para além se estendia, a perder de vista, o imenso país das felicidades e das paixões. Nos seus desejos, ela confundia as sensualidades do luxo com as alegrias do coração, a elegância dos costumes com as delicadezas do sentimento. Não precisaria o amor, como as plantas da Índia, de terrenos preparados, de uma temperatura determinada? Os suspiros ao luar, os abraços prolongados, as lágrimas correndo sobre as mãos que se abandonam, as febres da carne e a languidez da ternura não podem pois separar-se da varanda dos grandes palácios onde há muito tempo de lazer, ou de uma antecâmara com reposteiros de seda e uma espessa alcatifa, jardineiras bem enfeitadas e um leito sobre um estrado, ou ainda do cintilar das pedras preciosas e dos alamares das librés.
23 de setembro de 2024
La Guerra Oculta
Emmanuel Malynski
La Guerra Oculta (1936)
Polaco de naturalidade russa, Emmanuel Małyński é o autor deste ensaio radical e transgressivo que arremete contra uma série de tabus históricos, políticos e culturais cimentados no séc. XX e ainda demasiado arraigados. Léon de Poncins, que em algumas edições figura como co-autor, apesar de ter igualmente uma bibliografia digna de interesse, redigiu aqui um resumo das teses expostas nos 25 volumes de La Mission du Peuple de Dieu, escritos pelo seu amigo Malynski. De destacar o Prefácio de Julius Evola, vindo da tradução italiana de 1939, e o Apêndice de Edoardo Longo, onde se afirma, justamente, que “Malynski proporciona as armas mais eficazes para a compreensão das dinâmicas reais da História”.
La Guerra Oculta analisa o impacto dos desenvolvimentos históricos decorridos na centúria entre o Congresso de Viena, em 1815, e a Revolução de Outubro na Rússia. Percorre-se, assim, a Guerra da Crimeia, o papel de Napoleão III e do 2.º Império, a chancelaria de Bismarck, a Comuna de Paris, a importância da reforma agrária de Stolypin na Rússia czarista (interrompida pelo seu assassínio às mãos de um judeu), a Grande Guerra (destinada a derrubar três potências europeias: a Rússia czarista, a Alemanha monárquica e a Áustria católica – conseguindo ainda, como bónus, o fim do império Otomano – impondo formas políticas demo-liberais, de acordo com os interesses hebraicos), a Conferência de Paris de 1919, e como o capitalismo ocidental preparou as condições para o triunfo do bolchevismo na Rússia, com uma análise mais aprofundada da História das duas primeiras décadas do séc. XX neste país.
A partir do conceito de “guerra oculta” aplicado ao estudo histórico, Malynski expõe a estratégia subjacente à orientação para um determinado fim de acontecimentos aparentemente casuais e isolados, que aparecem deste modo sob uma luz diferente e reveladora. Uma força determinada e com objectivos a longo prazo, actuando discretamente sobre os acontecimentos, com uma estratégia hegemónica racial, cultural, económica, religiosa e política.
Bismarck no verá como Metternich dos frentes internacionales e históricos en las fases de una lucha que continuaban por generaciones. Él no se daba cuenta que Europa estaba por devenir un solo organismo, con órganos reaccionantes cada vez más los unos sobre los otros. Él discernía sólo el provecho inmediato que la Prusia monárquica podía obtener, deviniendo en el instrumento de la ubiquidad capitalista, aun cuando ello fuera en desventaja de la idea monárquica en general. Él fue un gran prusiano, pero un pequeño europeo.
Él sabía que la monarquía es un elemento de fuerza y lo quería para su país; pero, por la misma razón, quería el liberalismo para los adversarios o posibles competidores de su país, viendo en ello un elemento de debilidad y de inferioridad. Y adversarios eventuales eran todos, ya que Alemania debía estar por encima de todos, über alles.
Él humilló y debilitó Austria, esa ciudadela de la aristocracia feudal. Él luchó contra el catolicismo y la Santa Sede, es decir, contra el principio fundamental del derecho divino. Y dicha lucha la llamó Kulturkampf, lucha por la civilización. ¿No es la jerga de los hombres del "progreso" y de las logias?
Él contribuyó a fomentar la república y la democracia en Francia, con el objeto de debilitar, humillar y mortificar esta gran nación.
En cuanto a su misma patria, él debía reducir el feudalismo, que constituía su armazón social, a una fachada y sustituirlo por el estatismo burocrático, como lo había hecho Richelieu en Francia, olvidando que un simple cambio de persona, en esas condiciones, había hecho posible su transformación en una democracia y en un socialismo de estado. Por ello, debía dejarse seducir por los espejismos del capitalismo imperialista. Todo ello, porque él, cegado por el orgullo nacionalista, creía en la inmunidad excepcional del elemento prusiano.
Y él empujó su país, y, automáticamente a todos los demás, sobre la senda del armamentismo, hasta el momento en que la circunscripción general, es decir, la masa armada, se volvió reglamentaria en toda Europa. Ingenuamente, en ello, él veía el aumento de la potencia militar de Alemania frente a sus vecinos; él olvidaba que estos vecinos le habrían seguido por el mismo camino, por lo que las posiciones habrían quedado más o menos como antes. Pero las posiciones cambiaban en Alemania, y en otras partes, y en modo alarmante, respecto de una eventual lucha de clases; y ya no estaba permitido a un hombre de estado europeo, digno de este nombre, ignorar este peligro en la segunda mitad del siglo XVIII y, con mayor razón aún, en el primer cuarto del siglo XIX.
Del mismo modo, los romanos de la decadencia enseñaban la ciencia militar a los bárbaros que componían las legiones, para luego enviarlos a sus tierras de origen, a que estuvieran bien preparados para invadir, saquear y someter al imperio.
El incremento de los armamentos, asumiendo proporciones gigantescas, obligó al estado a seguir una política fiscal en gran escala, con el único fin de estar en condiciones de pagar los intereses de los préstamos. Fue una política de endeudamiento progresivo, con un capital no redimible, porque devorado por gastos que, justificados únicamente por la perspectiva de una guerra, en el momento inmediato eran fructíferos sólo para la ubicuidad internacional del oro hebreo. Dichos gastos eran siempre necesarios para estar al día en la carrera armamentista, de modo que la riqueza de los particulares, siempre más endeudados con la alta finanza y el hebreo a través del estado, de sólida y tangible que era, se deshizo progresivamente y se deslizó en las cajas de fondos de las finanzas preponderantemente hebraicas, bajo la forma fácilmente movible de oro y títulos.
La política general de Bismarck habría sido excusable e incluso normal unos siglos antes. Entonces los estados monárquicos no tenían enemigos internos, o bien, estos enemigos eran sólo accidentales, no permanentes; actuaban cada uno por su cuenta y no constituían un frente internacional único, con columnas nacionales ejecutando un plan estratégico de conjunto, siguiendo una común inspiración. Entonces los emperadores podían pelear impunemente con los papas, los reyes con los reyes y los grandes vasallos de la corona; los prelados, finalmente con los príncipes porque no existía un terrible enemigo común y omnipresente, trabajando para la perdición y la ruina de todos ellos. En cambio, en los tiempos de Bismarck, este enemigo ya existía y no podía pedir nada mejor que aliarse a uno u otro elemento o estado, según las oportunidades, y al final, quedar dueño del campo de batalla sin haber corrido el menor riesgo.
Una política así, después de 1848, y ya después de la Revolución Francesa, era peligrosísima.
18 de setembro de 2024
História da Literatura Universal, I - III
Eduardo Iáñez
História da Literatura Universal, I - III
Vol. I – As Literaturas Antigas e Clássicas (1989)
Vol. II – A Idade Média (1989)
Vol. III – O Renascimento Literário Europeu (1989)
A História da Literatura Universal, de Eduardo Iáñez, foi publicada inicialmente em Espanha e, poucos anos depois, conheceu edição portuguesa. É uma extensa monografia, em nove volumes, de informação necessariamente abreviada. Cada parágrafo poderia ser tema para um livro, e o mesmo até se aplicará, por vezes, a cada frase. Uma vida inteira não seria suficiente para ler os livros inventariados, sendo, não obstante, uma boa sistematização de nomes e títulos, com a informação essencial, ordenada cronológica e geograficamente, extremamente útil como livro de consulta, ou como sugestão de leituras.
O Vol. I divide-se entre a literatura oriental antiga (egípcia, mesopotâmica, hebraica, indiana, chinesa), as literaturas clássicas (grega, romana) e a literatura cristã. O Vol. II inclui a literatura greco-latina medieval (bizantina, latina medieval), literatura islâmica clássica (árabe, persa, hispano-islâmica), literaturas célticas, germânicas (anglo-saxónica, germana, islandesa) e as literaturas nacionais europeias (francesa, provençal, galaico-portuguesa, catalã, castelhana, alemã, inglesa, italiana). O Vol. III inclui as literaturas do Renascimento europeu na Itália, França, Espanha, Portugal, Alemanha e Inglaterra.
Como exemplo, fica um excerto de cada um dos volumes.
Temos de ter em conta, para toda a produção de Homero e, em geral, para a produção clássica ocidental, que a lenda era a forma usual de transmissão das grandes façanhas históricas, isto é, a maneira como o povo vivia a sua história e à qual concedia um valor no todo similar ao que hoje concedemos ao trabalho historiográfico de cariz científico. Não é por isso de estranhar que todas estas lendas que se vinham transmitindo oralmente tomassem posteriormente uma forma literária e – concretamente para as gestas heróicas – épica.
Para o que em particular nos interessa, não se pode esquecer que existiam muitos destes poemas épicos referentes à Guerra de Tróia, êxito que haveria de revelar-se como transcendente para o povo grego. Isto não quer dizer que Homero, para a sua Ilíada, fizesse com eles uma espécie de selecção, simplificação ou justaposição, mas que o autor apenas se serviu do antigo material que a tradição lhe oferecia para realizar a sua obra como uma produção totalmente nova. No que toca ao ambiente, o da Odisseia é totalmente distinto do mundo da Ilíada: aquela não deve a sua origem a lendas heróicas ou a feitos históricos, sendo os seus motivos geralmente fabulosos e míticos, numa linha que a aproxima grandemente – pelo que a trama tem de intrincado – do novelesco. Enquanto a Ilíada é de carácter plenamente marcial e belicoso, a Odisseia apresenta-se mais suave e tranquila, facto que leva a considerá-las, até quase à entrada da época contemporânea, como produção, respectivamente, de juventude e madureza, e, por sua vez, consideradas, por estas mesmas características, epopeia e novela épica claramente diferenciadas no seu tom e orientação.
Mas a sua melhor produção é, sem dúvida, Persival (ou Conto do Graal), escrito entre os anos 1181 e 1190, e inacabada, talvez pela complexidade que a sua composição encerra. Sucesso magistral no lendário, este roman foi, até aos nossos dias, a compilação mais perfeita do tema arturiano naquilo que contém de misterioso, irreal e simbólico. As interpretações sucederam-se, sobretudo devido ao seu carácter incompleto, e ainda hoje não se conhece claramente qual era a intenção última de Chrétien ao compor a obra. Persival torna-se o símbolo do cavaleiro que aí chegou por convencimento íntimo e, sobretudo, pela fé nos seus ideais.
Separado da corte pela sua mãe, vive, em criança, como um selvagem num bosque; mas ao passarem por ali uns cavaleiros, fica deslumbrado com a beleza das suas armas e decide ir à corte de Artur, onde recebe ensinamentos de cavalaria, até se armar. Ali, apaixona-se por Brancaflor e, numa das suas aventuras, surge frente a um castelo onde é acolhido pelo rei Pescador e onde um pajem e uma donzela aparecem com uma lança gotejante de sangue e um graal (taça de pé comprido) que irradia uma grande luminosidade. Não pergunta o seu significado e, ao deixar o castelo, este desaparece. Regressado à corte, narra a estranha aventura e todos os cavaleiros da Távola Redonda saem em busca do castelo e do graal, que julgam conter uma hóstia da qual se alimenta o pai do rei Pescador, o rei Tulido, por sua vez tio de Persival, doente devido a um encantamento do qual poderia ter-se livrado apenas se o cavaleiro tivesse perguntado o significado dos objectos (que parecem inequivocamente relacionados com a Paixão de Jesus Cristo e a Eucaristia). A obra fica inacabada, e todo o simbolismo que encerra, inconcluído, serviu para que a lenda fosse continuada posteriormente.
Prosador por excelência, Cervantes transcende com a sua obra o simples nome de «prosa» que temos dado até agora às obras narrativas europeias e, por isso, produz uma verdadeira «novela» conforme hoje a entendemos. E isto não porque, como afirma nas suas Novelas Exemplares, seja ele «o primeiro que enovelou em prosa na língua castelhana; que as muitas novelas que nela já estavam impressas, todas são traduzidas de línguas estrangeiras», mas sobretudo porque a sua obra não se limita a uma concepção novelística conforme era entendida no Renascimento. Ou seja, Cervantes supera os pressupostos novelísticos da narrativa europeia – devedora da italianizante, via Bocácio e mais tarde através de Bandellon –, a que ele mesmo esteve limitado nas suas Novelas Exemplares, graças a uma obra magistral, o Quixote, a primeira novela em sentido moderno que encontramos na história da literatura universal, até ao ponto de não ser compreendida senão no século XIX, momento de criação do que hoje consideramos como verdadeira «novela» na tradição ocidental.
Em Espanha, os sucessos narrativos de Cervantes, em si magistrais, não foram prosseguidos até ao século XIX: no que diz respeito à novela longa, de que é um prelúdio, não se segue a tradição cervantina; a novela de cavalaria, pelo seu lado, estava já esgotada quando Cervantes escreve o Quixote; o mesmo sucedia com a novela pastoril, de pouca importância em Espanha, e com a novela bizantina, recuperada à luz de certas condições muito particulares. Depois de Cervantes, portanto, o género revelou-se em franca decadência, embora autores tradicionais e satíricos posteriores tivessem conseguido produzir obras realmente válidas, mas pouco «narrativas», ou seja, desinteressadas pelos aspectos de construção novelística e seguidoras da linha tradicional de narração, mais cingida ao quadro descritivo do que à acção e à integração estrutural, praticamente nula.
7 de setembro de 2024
Bestiario
Julio Cortázar
Bestiario (1951)
Composto por oito contos, Bestiário é uma das primeiras obras de Julio Cortázar, num formato em que é reconhecida a sua mestria. Há por certo algum paralelo com os contos de outro argentino seu contemporâneo, Jorge Luis Borges, entre o real e o fantástico, sendo por isso associado tanto ao surrealismo como ao realismo mágico. Encontram-se, no entanto, cenas quase de pesadelo; como no conto inicial, onde dois irmãos se vêem desalojados da casa herdada da família por uma entidade malévola que não chega a ser descrita; ou noutro conto, onde o protagonista vomita, com cada vez maior frequência, coelhinhos que depois crescem e roem tudo; ou, num terceiro exemplo, onde uma rapariga se dedica ao refinamento na arte fabrico de bombons, insistindo com o seu noivo para prová-los, até que este descobre que ela utiliza baratas entre os seus ingredientes...
O excerto pertence a “Ómnibus”, o quarto conto.
Buscando las monedas en el bolso lleno de cosas, se demoró en pagar el boleto. El guarda esperaba con cara de pocos amigos, retacón y compadre sobre sus piernas combadas, canchero para aguantar los virajes y las frenadas. Dos veces le dijo Clara: "De quince", sin que el tipo le sacara los ojos de encima, como extrañado de algo. Después le dio el boleto rosado, y Clara se acordó de un verso de infancia, algo como: "Marca, marca, boletero, un boleto azul o rosa; canta, canta alguna cosa, mientras cuentas el dinero." Sonriendo para ella buscó asiento hacia el fondo, halló vacío el que correspondía a Puerta de Emergencia, y se instaló con el menudo placer de propietario que siempre da el lado de la ventanilla. Entonces vio que el guarda la seguía mirando. Y en la esquina del puente de Avenida San Martín, antes de virar, el conductor se dio vuelta y también la miró, con trabajo por la distancia pero buscando hasta distinguirla muy hundida en su asiento. Era un rubio huesudo con cara de hambre, que cambió unas palabras con el guarda, los dos miraron a Clara, se miraron entre ellos, el ómnibus dio un salto y se metió por Chorroarín a toda carrera.
"Par de estúpidos", pensó Clara entre halagada y nerviosa. Ocupada en guardar su boleto en el monedero, observó de reojo a la señora del gran ramo de claveles que viajaba en el asiento de adelante. Entonces la señora la miró a ella, por sobre el ramo se dio vuelta y la miró dulcemente como una vaca sobre un cerco, y Clara sacó un espejito y estuvo en seguida absorta en el estudio de sus labios y sus cejas. Sentía ya en la nuca una impresión desagradable; la sospecha de otra impertinencia la hizo darse vuelta con rapidez, enojada de veras. A dos centímetros de su cara estaban los ojos de un viejo de cuello duro, con un ramo de margaritas componiendo un olor casi nauseabundo. En el fondo del ómnibus, instalados en el largo asiento verde, todos los pasajeros miraron hacia Clara, parecían criticar alguna cosa en Clara que sostuvo sus miradas con un esfuerzo creciente, sintiendo que cada vez era más difícil, no por la coincidencia de los ojos en ella ni por los ramos que llevaban los pasajeros; más bien porque había esperado un desenlace amable, una razón de risa como tener un tizne en la nariz (pero no lo tenía); y sobre su comienzo de risa se posaban helándola esas miradas atentas y continuas, como si los ramos la estuvieran mirando.
4 de setembro de 2024
A Missão
Ferreira de Castro
A Missão (1954)
A edição
original de A Missão contém ainda dois outros textos: a
novela A Experiência e um segundo conto, O Senhor
dos Navegantes. A Missão, passada num convento em França,
nos primeiros dias da 2GM, coloca os missionários perante um dilema:
sendo o convento muito parecido com uma fábrica dos arredores, esta
um potencial alvo de bombardeamento aéreo, será legítimo aos
religiosos salvaguardar a sua presença com uma pintura no telhado, o
que facilitará a identificação do alvo correcto, pondo em risco a
vida de quatrocentos operários fabris? Ou deverão deixar tudo como
está, entregando-se nas mãos da providência divina? E a finalidade
dos treze religiosos será a de salvar vidas ou salvar almas? E a sua
eventual morte não impedirá a salvação de muitas mais almas no
futuro? A argumentação cruzada e a incapacidade de tomar a decisão
são o tema deste primeiro conto.
A Experiência,
o texto mais extenso do livro, em tons neo-realistas, conta as
histórias paralelas de dois antigos alunos de um asilo de infância
desvalida (três, se contarmos com a mulher que está presa) a quem a
vida fustigou: Januário, prestes a ser julgado por roubo e tentativa
de homicídio, e Clarinda, mulher da vida por quem ele teve uma
paixoneta nos tempos do asilo, que agora se compadece e o ajuda. A
“experiência” do título refere-se à fundação do asilo, por
um proprietário local que, por testamento, pretendia que fosse ali
ministrada uma nova educação, baseada em valores mais humanistas,
mas o projecto acabou por falhar, sendo o edifício convertido na
prisão onde decorre a maior parte do enredo.
O último texto, O
Senhor dos Navegantes, é quase um monólogo, junto a uma ermida
no topo de um monte com vista para o mar, onde se
apresenta ao visitante uma personagem a lamentar-se das imperfeições da
Criação, reconhecendo os seus erros e pontos fracos, deixando o
visitante sem perceber se está a falar com Deus ou com um foragido
do manicómio.
Assim, naquela
tarde, depois do conselho, os negros sapatos de verniz abandonaram a
sua rota habitual e aventuraram-se por sombria travessa, que jamais
haviam percorrido. Ora marchavam devagar, um pouco distraídos,
abstractos, como se participassem da meditação que se efectuava lá
em cima, na outra extremidade, no velho tronco lembravam à vista as
alegrias claras da Terra, os paredões da fábrica, ao contrário,
ressumavam uma densa tristeza, com sua escuridade de séculos caídos
e suas janelas de vidros sujos e frondosas teias de aranha. Dir-se-ia
existir uma desconsideração da própria natureza pela fábrica.
O Superior
desconhecia os verdadeiros motivos porque as freiras não se haviam
instalado ali. Parecia-lhe, porém, que o ludroso casarão devia ter
tido sempre aquele ar de excomungado, como se debaixo da sua primeira
pedra houvessem posto, não uma memória destinada à posteridade,
mas uma secreta maldição.
Lentamente, ele
voltou a examinar a metamorfose que, apesar de tudo, se dera,
momentos antes, nos valores, enraizados no seu espírito. De repente,
a pedra esquecida, sepultada nas profundidades dos alicerces, vinha à
superfície, crescia, levitava-se e pairava sobre ele, adquirindo uma
importância inesperada. O Superior tentou, então, reagir contra o
sacrifício que lhe pediam.
Recomeçara o
andamento e ia caminhando sempre com aquela cor nos olhos. As
pequenas casas proletárias que circundavam o grande edifício,
casinholas dum só piso, ligadas umas às outras, estavam revestidas
da mesma escuridade e da mesma melancolia da fábrica, uma melancolia
que se agarrava à escuridade como uma segunda camada de tinta, uma
melancolia que parecia localizada, ter fronteiras na aldeia, limites
tão nítidos como os duma ilha. Crianças enquadradas nas portas
viam-no passar; algumas baixavam os olhos, envergonhadas, outras
sorriam-lhe com reservas quando ele lhes remetia, de longe, um aceno
carinhoso e ambulante.
Li anteriormente:
A Selva (1930)
1 de setembro de 2024
Los Relatos de Belkin
Aleksandr Pushkin
Los Relatos de Belkin (1831)
Aleksandr Pushkin foi o primeiro grande vulto da literatura russa moderna, primeiramente pela obra poética, e de igual modo no teatro e na prosa, fazendo a transição do romantismo para o realismo, tornando-se numa influência determinante sobre os grandes nomes da literatura russa do séc. XIX. Os Contos de Belkin, também conhecidos por uma série de variações à volta do título Contos do defunto Iván Petróvich Belkin, pertencem à primeira fase dos trabalhos em prosa, concluídos e editados quando Pushkin tinha já nome feito na poesia. Os cinco contos que compõem este livro, escritos de uma assentada no Outono de 1830, inauguram de facto a nova literatura russa, influenciados pelas formas que tinham surgido em França e Inglaterra, e adaptados à realidade russa. São narrativas simples, com inesperadas reviravoltas no final, algo teatrais, atribuídas ao imaginário Iván Petróvich Belkin, cujos manuscritos teriam sido seleccionados pelo seu editor para publicação em livro póstumo. O excerto pertence ao terceiro conto, “O Fabricante de Caixões”.
Al acercarse a la casita amarilla que desde hacía tanto tiempo
cautivaba su imaginación y que por fin había adquirido por una
respetable suma, el viejo fabricante de ataúdes advirtió con
asombro que su corazón no se regocijaba. Al traspasar el desconocido
umbral y encontrar su nueva morada en pleno desorden, suspiró
recordando la vetusta casucha en la que durante dieciocho años todo
había estado sometido al orden más riguroso; después de reñir a
sus dos hijas y la criada por su lentitud, se dispuso a ayudarlas.
Pronto estuvo todo en su sitio: el retablo de los íconos, el armario
de la vajilla, la mesa, el diván y la cama ocuparon los lugares que
él les había destinado en la habitación interior; en la cocina y
en la sala encontraron sitio los artículos propios de la profesión
del dueño: ataúdes de todos los colores y tamaños; sombreros,
capas y antorchas. Sobre la puerta, un cartel representaba un robusto
Cupido con una antorcha vuelta hacia abajo en la mano y la
inscripción: «Se venden y tapizan ataúdes sencillos y pintados.
También se alquilan y reparan los viejos.» Las muchachas se
retiraron a su habitación y Adrián, después de pasar revista a su
vivienda, se sentó junto a la ventana y ordenó que preparasen el
samovar.
El culto lector sabe que Shakespeare y Walter Scott presentaban a sus
sepultureros como hombres alegres y burlones para impresionarnos más
con el contraste. Por respeto a la verdad, nosotros no podemos seguir
su ejemplo y nos vemos obligados a confesar que el carácter de
nuestro fabricante de ataúdes correspondía por entero a su lúgubre
oficio. Adrián Prójorov se mostraba de ordinario sombrío y
taciturno. Únicamente salía de su silencio para reñir a sus hijas
cuando las sorprendía sin hacer nada, mirando por la ventana a los
transeúntes, o para pedir un precio excesivo por sus obras a quienes
tenían la desgracia (o a veces el placer) de necesitarlas. Así,
pues, mientras tomaba la séptima taza de té sentado junto a la
ventana, Adrián, fiel a su costumbre, se hallaba sumido en tristes
meditaciones. Pensaba en la lluvia torrencial que una semana antes
había caído en las mismas puertas de la ciudad sobre el entierro de
un brigadier retirado. Esto había sido la causa de que muchas capas
se hubiesen encogido y de que muchos sombreros se hubiesen arrugado.
Preveía gastos inevitables, pues los antiguos atavíos fúnebres de
que disponía se encontraban en lastimoso estado. Confiaba en
resarcirse de los gastos a expensas de la vieja comerciante Triújina,
que ya llevaba casi un año muriéndose. Pero la Triújina se moría
en la calle Razguliái y Prójorov temía que los herederos, a pesar
de sus promesas, se resistieran a mandar a buscarle desde tan lejos y
recurriesen a los servicios de un establecimiento de pompas fúnebres
más cercano.
Estas meditaciones fueron interrumpidas por tres golpes masónicos en
la puerta.
28 de agosto de 2024
Reflexiones Contra la Modernidad
Eduard Alcántara
Reflexiones Contra la Modernidad (2013)
Reflexiones contra la Modernidad é composto por uma selecção de 19 textos, publicados entre 2009 e 2012 no excelente blog Septentrionis Lux, de Eduard Alcántara, que continua activo. A influência de Julius Evola é notória e assumida, para além de um punhado desses textos dedicados exclusivamente ao pensador italiano. O próprio título do livro glosa de algum modo o incontornável Revolta Contra o Mundo Moderno. Em determinado ponto conta-se que a Evola desagradava ser considerado “filósofo da Tradição”, por considerar que filosofar é um exercício mental destinado a elaborar novas teorias ou sistemas de pensamento, e que, pelo contrário, ele não desejava transmitir nada de novo, mas transmitir e sistematizar o saber da Tradição, preferindo, em vez de filósofo, ser considerado como “intérprete da Tradição”. Deste modo, também não vou fazer a desfeita de apelidar aqui Eduard Alcántara de filósofo, pois será mais acertado considerá-lo igualmente como outro “intérprete da Tradição” – e este livro prova-o à saciedade.
Si la Edad de Oro equivale al Mundo de la Tradición Primordial y puede ser calificada como la Edad del Ser y de la Estabilidad (de ahí su mayor duración) las restantes edades comportan la irrupción de un mundo moderno que puede, a su vez, ser denominado como mundo del devenir y del cambio (de ahí la cada vez menor duración de sus sucesivas edades). En verdad, no en balde, se puede constatar que en los últimos 50 años la vida y las costumbres han cambiado mucho más de lo que habían cambiado en los 500 años anteriores. Los traumáticos conflictos generacionales que se sufren, hoy en día, entre padres e hijos no se habían dado nunca en épocas anteriores (al menos con esta intensidad) debido a que los cambios en gustos, aficiones, hábitos y costumbres se sucedían con más lentitud. Los cambios bruscos, frenéticos y continuos propios de nuestros tiempos han dado lugar a lo que Evola definió como el hombre fugaz. Hombre fugaz que es el propio de la fase crepuscular por la que atraviesa la presente Edad de Hierro, caracterizada (esta fase) no ya por la hegemonía del Tercer ni del Cuarto Estado o casta (léase burguesía y proletariado) sino por la del que, con sagacidad premonitoria, Evola había previsto, pese a no haber vivido, como preponderancia del Quinto Estado o del financiero o especulador propio del presente mundo globalizado, gregario y sin referentes de ningún tipo. Este sujeto hegemónico en el Quinto Estado equivaldría al paria de las sociedades hindúes que no es más que aquél que ha sido infiel, innoble y disgresor para con su casta y ha sido expulsado del Sistema de Castas para convertirse en alguien descastado y sin tradición ni referentes. El hombre fugaz no se siente jamás satisfecho, vive en continua inquietud y convulsión. Su vacío existencial es inmenso y nada le llena. Intenta distraer dicho vacío con superficialidades, por ello su principal objetivo es poseer, tener y consumir compulsivamente. Cuando consigue poseer algo enseguida se siente insatisfecho porque ansía poseer otra cosa diferente, de más valor económico o de mayor apariencia para así poder impresionar a los demás. Y es que el mundo moderno es el mundo del tener y aparentar, en oposición del Mundo Tradicional que lo es del Ser. Este hombre fugaz se mueve por el aquí y ahora, pues lo que desea lo desea inmediatamente, no puede esperar. Su agitación no le permite pensar en el mañana.
25 de agosto de 2024
La Genealogía de la Moral
Friedrich Nietzsche
La Genealogía de la Moral (1887)
Se Para Além
do Bem e do Mal era
um complemento a Assim
Falou Zaratustra, A
Genealogia da Moral, com
o subtítulo Uma Polémica,
é uma tentativa de complementar e clarificar Para Além do
Bem e do Mal. Mas, ao contrário
do habitual, Nietzsche prescinde da escrita sob a forma de aforismos,
e entrega aquele que é considerado o livro mais “sistemático”,
composto por um prólogo e três tratados. O
prólogo levanta a questão da origem da moral e os três tratados
debruçam-se sobre os
conceitos do “bom” e do
“mau”, da “culpa” e
“má consciência” e, por fim, os
“ideais ascéticos”.
Aqui
se reencontram variações
sobre as preocupações habituais em
Nietzsche, e é caricato constatar como uma certa esquerda tentou
apoderar-se do seu pensamento – ou por má-fé ou por estupidez –
pois o conceito de
“vontade de poder” subjacente é de uma natureza aristocrática e
hierárquica, um exercício de domínio sem quaisquer contemplações
ou sentimentalismos,
cuja conclusão lógica poderia
até apontar
à psicopatia (“sob toda a oligarquia jaz, sempre escondida, a
concupiscência tirânica”, afirma, sem uma sombra de censura
implícita). Nietzsche nunca tem uma palavra de empatia
pelos fracos, pelos desfavorecidos ou pelos
oprimidos que
essa esquerda acredita defender, pois
o seu destino é submeter-se
à “vontade de poder”. O
super-homem de Nietzsche nunca foi o
ser transumano, agora em voga, mas o Homem
que se supera, sozinho com a sua capacidade
e a sua força – e este foi
o erro, porque ele
não está à altura da tarefa.
Dos
três tratados, o mais interessante é o último, pela dificuldade
que Nietzsche manifesta em entender o “autodesprezo do homem” que
escolhe a ascese, um “espírito que desata a sua fúria contra si
próprio de um modo sacrílego e inútil”. Mais ainda, no
ponto 11 o autor considera que é difícil ao sacerdote ascético ser
o melhor defensor do seu ideal, e por isso vai “ajudá-lo a
defender-se” com a
sua própria argumentação. Os excertos abaixo pertencem a este
tratado.
Todo
animal, y por tanto también la bête philosophe [el animal
filósofo], tiende instintivamente a conseguir un optimum de
las condiciones más favorables en que poder desahogar del todo su
fuerza, y alcanza su maximum en el sentimiento de poder; todo
animal, de manera asimismo instintiva, y con una finura de olfato que
«está por encima de toda razón», siente horror frente a toda
especie de perturbaciones y de impedimentos que se le interpongan o
puedan interponérsele en este camino hacia el optimum (– de
lo que hablo no es de su camino hacia la «felicidad», sino
de su camino hacia el poder, hacia la acción, hacia el más poderoso
hacer, y, de hecho, en la mayoría de los casos, su camino hacia la
infelicidad). Y así el filósofo siente horror del matrimonio y de
todo aquello que pudiera persuadirle a contraerlo, – el matrimonio
como obstáculo y fatalidad en su camino hacia el optimum.
¿Qué gran filósofo ha estado casado hasta ahora? Heráclito,
Platón, Descartes, Spinoza, Leibniz, Kant, Schopenhauer – no lo
estuvieron; más aún, ni siquiera podemos imaginarlos
casados. Un filósofo casado es un personaje de comedia, ésta
es mi tesis: y por lo que se refiere a aquella excepción, Sócrates,
parece que el malicioso Sócrates se casó ironice [por
ironía], justamente para demostrar esta tesis. Todo filósofo diría
lo mismo que dijo Buda en una ocasión, cuando le anunciaron el
nacimiento de un hijo.. «Me ha nacido Râhula, una cadena ha sido
forjada para mí» (Râhula significa aquí «un pequeño demonio»);
a todo «espíritu libre» tendría que llegarle una hora de
reflexión, suponiendo que haya tenido antes una hora vacía de
pensamientos, como le llegó en otro tiempo al mismo Buda –«estrecha
y oprimida, pensaba para sí, es la vida en la casa, un lugar de
impureza; la libertad está en abandonar la casa»: «tan pronto como
pensó esto abandonó la casa».
[...]
No
existe, juzgando con rigor, una ciencia «libre de supuestos», el
pensamiento de tal ciencia es impensable, es paralógico: siempre
tiene que haber allí una filosofía, una «fe», para que de ésta
extraiga la ciencia una dirección, un sentido, un límite, un
método, un derecho a existir. (Quien lo entiende al revés,
quien, por ejemplo, se dispone a asentar la filosofía «sobre una
base rigurosamente científica», necesita primero, para ello, poner
cabeza abajo no sólo la filosofía, sino también la misma
verdad: ¡la peor ofensa al decoro que puede cometerse con dos damas
tan respetables!) Sí, no hay duda –y aquí dejo hablar a mi Gaya
ciencia, véase el libro quinto –«el hombre veraz, en aquel
temerario y último sentido que la fe en la ciencia presupone, afirma
con ello otro mundo distinto del de la vida, de la naturaleza y
de la historia; y en la medida en que afirma ese 'otro mundo',
¿cómo?, ¿no tiene que negar, precisamente por ello, su opuesto,
este mundo, nuestro mundo?... Nuestra fe en la ciencia reposa
siempre sobre una fe metafísica –también nosotros los
actuales hombres del conocimiento, nosotros los ateos y
antimetafísicos, también nosotros extraemos nuestro fuego de
aquella hoguera encendida por una fe milenaria, por aquella fe
cristiana que fue también la fe de Platón, la creencia de que Dios
es la verdad, de que la verdad es divina... ¿Pero cómo es
esto posible, si precisamente tal cosa se vuelve cada vez más
increíble, si ya no hay nada que se revele como divino, salvo el
error, la ceguera, la mentira, – si Dios mismo se revela como
nuestra más larga mentira?»
[...]
¡Todo
mi respeto para el ideal ascético, en la medida en que sea
honesto!, ¡mientras crea en sí mismo y no nos dé el chasco!
Pero no soporto a todas esas chinches coquetas, cuya ambición es
insaciable en punto a oler a infinito, hasta que por fin lo infinito
acaba por oler a chinches; no soporto los sepulcros blanqueados que
parodian la vida; no soporto a los fatigados y acabados que se
envuelven en sabiduría y miran «objetivamente»; no soporto a los
agitadores ataviados de héroes, que colocan el manto de
invisibilidad del ideal en torno a ese manojo de paja que es su
cabeza; no soporto a los artistas ambiciosos, que quisieran
representar e] papel de ascetas y de sacerdotes y que no son en el
fondo más que trágicos bufones; tampoco soporto a ésos, a los
recentísimos especuladores en idealismo, a los antisemitas, que hoy
entornan sus ojos ala manera del hombre de bien cristiano-ario y que
intentan excitar todos los elementos de animal cornudo propios del
pueblo mediante un abuso, que acaba con toda paciencia, del medio más
barato de agitación, la afectación moral (– el hecho de que en la
Alemania actual no deje de obtener éxito toda especie de
espíritus fraudulentos es algo que guarda relación con el deterioro
poco a poco innegable y ya palpable del espíritu alemán, cuya causa
yo la busco en una alimentación compuesta, con demasiada
exclusividad, de periódicos, política, cervezas y música de
Wagner, a lo que hay que añadir lo que constituye el presupuesto de
esa dieta: primero, la clausura y la vanidad nacionales, el fuerte,
pero angosto principio de Deurschland, Deutschland über Alles
[Alemania, Alemania sobre todo], y después la paralysis
agitans de las «ideas modernas»). Hoy Europa es rica
e ingeniosa, sobre todo en punto a inventar estimulantes; parece que
ninguna otra cosa necesita más que los «estimulantes», que el
aguardiente: de aquí viene también la gigantesca falsificación en
ideales, esos máximos aguardientes del espíritu, y asimismo el aire
repugnante, maloliente, falaz y seudoalcohólico que se extiende por
todas partes.
Li anteriormente:
Más allá del
Bien y del Mal (1886)
O Anticristo
(1888)
Assim Falou
Zaratustra (1883)
17 de agosto de 2024
Um Conto de Duas Cidades
Charles Dickens
Um Conto de Duas Cidades (1859)
Este romance histórico de Charles Dickens, cujo título se refere às cidades de Londres e Paris, onde se desenrola a narrativa, situa-se na época da Revolução Francesa. Divide-se em três partes e conta com um número relativamente pequeno de personagens; a primeira parte, significativamente mais curta que as outras duas, serve para nos apresentar Jarvis Lorry, um importante funcionário de um banco londrino, Lucie Manette, uma jovem de origem francesa que sempre viveu em Inglaterra, e o resgate do Dr. Manette, seu pai, libertado após dezoito anos passados na Bastilha sem acusação formal. Na segunda parte desta obra, que se inicia cinco anos depois destes acontecimentos, são-nos apresentados o Sr. Stryver e Sydney Carton, dois advogados que trabalham em sociedade, e conseguem ilibar Charles Darnay num julgamento em que é acusado de traição. Darnay é outro francês, aristocrata, que se auto-exilou em Londres ocultando a sua verdadeira identidade, vivendo do seu trabalho como professor, e acaba por desposar Lucie.
Nestas muitas dezenas de páginas, que ocupam quase dois terços da obra, não há grandes desenvolvimentos do enredo; Dickens vai descrevendo quadros que ajudam a aprofundar o retrato psicológico das suas personagens, bem como o contexto social onde elas se movem, e fá-lo de forma magistral. Só no final desta segunda parte acontece a Revolução, e as diversas pontas narrativas agrupam-se e ganham movimento. Darnay, cujo tio – um marquês – tinha sido assassinado pouco tempo antes, recebe uma carta de um gestor das suas propriedades em França, encarcerado pelos revolucionários, pedindo-lhe ajuda para salvar a vida. Perante este dilema moral, de ajudar alguém inocente com o risco de perder a própria vida, Darnay não hesita e parte para Paris, constatando que a situação é bem mais perigosa do que imaginava, sendo conduzido à prisão quase de imediato. Reconstituindo a Paris do Terror, a partir de documentação histórica, encontramos, a partir deste ponto, uma panorâmica do ressentimento e da violência que explodiu com a Revolução, com os oprimidos transformados em opressores, enquanto Darnay, denunciado, é julgado duas vezes e condenado à guilhotina.
Viram uma aglomeração de homens e mulheres. Não eram numerosos o suficiente para lotar o pátio, pois não passavam de quarenta ou cinqüenta, ao todo. As pessoas que ocupavam o palácio os haviam deixado entrar para trabalhar na pedra de amolar. Evidentemente, a pedra fora instalada ali com esse propósito, já que o local era cômodo e isolado.
Mas que trabalhadores medonhos e que medonha tarefa!
A pedra de amolar possuía uma dupla manivela, girada febrilmente por dois homens, cujos rostos, visíveis quando seus longos cabelos agitavam-se para trás, eram mais horrendos e cruéis do que as máscaras dos mais selvagens bárbaros em seus mais assustadores rituais. Sobrancelhas falsas e bigodes falsos estavam colados em suas hediondas faces cobertas de sangue e de suor, retorcidas pelos gritos, os olhos esgazeados e vermelhos brilhando pela excitação bestial e falta de sono. À medida que esses brutos giravam e giravam a manivela, com os cabelos desgrenhados batendo-lhes nas frontes e nos pescoços, algumas das mulheres derramavam vinho em suas bocas para que bebessem; e o sangue que gotejava, mais o vinho que se entornava e mais as faíscas provocadas pelo atrito na pedra, toda essa maligna atmosfera parecia uma infernal mistura de sangue coagulado e fogo. A vista não detectava uma única criatura no grupo desprovida de manchas de sangue. Acotovelando-se para se sucederem na pedra de amolar, havia homens nus até a cintura, exibindo nódoas nos braços e no peito; homens vestindo toda a sorte de andrajos ensangüentados, homens ostentando diabolicamente pedaços de renda, laços e fitas de seda impregnados de sangue. Machadinhas, facas, baionetas, espadas, todas trazidas para serem afiadas, estavam rubras de sangue. Algumas espadas estavam presas aos pulsos daqueles que as empunhavam com tiras de linho e retalhos de vestidos: os atilhos variavam na espécie, mas não na cor. E quando os frenéticos usuários dessas armas as arrancavam das nuvens de faísca e disparavam para as ruas, a mesma tonalidade rubra lhes tingia os olhos desvairados, olhos que qualquer observador não embrutecido teria dado vinte anos de sua vida para petrificar com um tiro certeiro.
Tudo isso foi vislumbrado num átimo, como a visão de um homem antes de se afogar, ou a de qualquer ser humano diante da morte. Eles se retiraram da janela, e o médico procurou por uma explicação no rosto do amigo.
— Eles estão — o senhor Lorry cochichou, fitando de modo furtivo a porta trancada — assassinando os prisioneiros. Se o senhor tem certeza do que disse, se realmente tem o poder que julga ter, como acredito que tenha, apresente-se a esses demônios e peça-lhes que o levem a La Force. Talvez seja tarde demais; contudo, não há um minuto a perder.
Li anteriormente:
Grandes Esperanças (1861)