20 de outubro de 2019

A Corja

Camilo Castelo Branco
A Corja (1880)

Eusébio Macário e A Corja foram publicados por Ernesto Chardron, em 1879 e 1880, incluídos em dois volumes intitulados, respectivamente, Sentimentalismo e História e História e Sentimentalismo. Na secção intitulada História, incluiu Camilo ensaios de teor histórico, ao passo que na secção Sentimentalismo figuram as novelas, sendo A Corja a continuação de Eusébio Macário.
Cerca de dois anos passados sobre os acontecimentos descritos no livro anterior, reencontramos o padre Justino, que conseguiu ser nomeado cónego no Porto, agora na proximidade dos Macários, por quem alimenta um ressentimento crescente, contribuindo activamente para a sua ruína, ao mesmo tempo que executa um plano que lhe permitirá recuperar Felícia.
Não referi anteriormente que, no texto dedicado ao livro Eusébio Macário, no final da obra, se tinha assistido a um outro casamento: o de José Macário com Felícia, consideravelmente mais velha mas valorizada pelo avultado dote que o barão do Rabaçal ofereceu à irmã. Esse pormenor tem uma grande importância n’A Corja: José Macário, que nunca deixou de ver em Felícia a campónia ex-amante do padre, cedo enveredou por uma vida de devassidão que culminou na conquista da Pascoela, uma brasileira casada com o Trigueiros, um dos amigos do barão; no fino equilíbrio entre a cedência aos seus instintos naturais e a dependência da fortuna da mulher, o Fístula vive um dilema que o corrói por dentro, com desfecho na saída para França com a amante, depois de deitar as mãos a quinze contos, vindos da Felícia através do divórcio.
Descartada esta personagem, a narrativa volta-se para Custódia, a quase virtuosa esposa do barão do Rabaçal, que à primeira oportunidade se deixa tentar pelo adultério, na pessoa de Bartolucci, um cantor de ópera. Descoberta a traição, também ela tem o sangue-frio de se apoderar das jóias, avaliadas em doze contos, no momento em que é posta na rua pelo barão. Custódia embarcará pouco depois, acompanhada de Bartolucci, rumo a Itália.
Quanto a Eusébio Macário, com pretensões à alta-roda portuense, e filado numa oportunidade de investimento numa fábrica de panos em Lordelo, precisava de dez contos para entrar na sociedade; por duas vezes tentou, no rompimento dos filhos, aliciá-los para o negócio, prometendo-lhes rendimentos chorudos; outras tantas negações recebeu, pois ambos destinavam o dinheiro fresco aos seus caprichos. Ao ver-se desacompanhado, Eusébio Macário acaba por comprar uma botica em Massarelos, cujo proprietário morrera, e levar todo o recheio de volta para Cabeceiras de Basto, fechando a história no local onde havia começado.

José Macário, ao fim do primeiro mês de casado, começou de cismar na sua honra e a sentir-se mal com a consciência e com a Felícia. Enquanto a posse dos cem mil cruzados do dote o estonteou como uma descarga eléctrica, a consciência esteve quieta, atordoada, num deslumbramento; mas assim que se afez à serena convicção de que era rico, a dura obrigação de considerar a sua fortuna uma dependência da esposa, da fatigada fêmea do abade da Faia, entrou lá dentro a vascolejar-lhe no fundo pântano da alma e a trazer-lhe ao de cima uma escuma pútrida que ele chamava a sua dignidade. Felícia, numa sossegada inércia de inteligência e coração, não compreendia a honra nem a desonra do marido. Ela não o amava nem aborrecia; era a sua mulher à face da Igreja, e pensava que o episódio da abadia era uma coisa indiferente à legitimidade da sua posição. Em vez de considerar-se agradecida, achava-se com direito à gratidão do marido que não tinha um pataco de seu. Lembrava-se do Fístula a pedir-lhe dois pintos, a lamber os pratos da tapioca, a fingir cólicas para lhe apanhar copos de genebra, às escondidas do abade. De mais a mais, tinha-o conhecido aos oito anos, um ranhoso, com a fralda suja de fora pela fenda posterior das calças de cotim, descalço, arregaçado até às virilhas a patinhar nos charcos com moncos e muito piolho. A mãe, a Rosa Canelas, deixava-o andar para aí, à-toa, esfarrapado, um pingarelho a roubar fruta pelos campos e a pedir aos brasileiros dez-reizinhos para uma quarta de figos, e ia comprar cigarros, o garoto. Depois, via-o nas férias, quando ele vinha de Braga, e se metia em casa do abade, com a guitarra, a cantar cantigas porcas, e a pedir-lhe a ela uns cobres, e dava-lhe caixas de banha furtadas na botica. Ela tinha estas reminiscências, quando o via chegar de fora, arrancar as luvas cor de canário, com arremesso, atirar-se cheio de tédio sobre os cochins da sua sala no hotel, encará-la de revés com fastio, a assobiar trechos de zarzuela, quando Felícia lhe dizia: — Você parece que não veio bô da rua!
Hospedara-se toda a família no Central, em Lisboa, quando recolheram de Sintra. José Macário dissera ao pai que não voltava para o Porto tão cedo, que receava que o abade desse à língua, e se descobrisse a sua desonra. Eusébio começava igualmente a enxergar a honra sob outros aspectos e feitios. A mudança do meio, as convivências, o trato com pessoas praxistas em teorias de dignidade, viscondes, conselheiros, vários sujeitos das salas onde a filha ia tomar chá, rasgaram horizontes novos à sua compreensão da Moral. Também ele, bem trajado e cevado, sentia-se na abundância, no empertigamento pessoal em que a honra se apruma consoante a rijeza dos colarinhos e a tesura da gravata. A Felícia, sua conhecida dezasseis anos em mancebia, também lhe fazia uns secretos engulhos e um certo mal-estar de sogro que se preza. Os Macários, pai e filho, entravam a regenerar-se, a polir-se, no atrito dos pintos e dos soberanos. O dinheiro, que em tantos casos é o motor de enormes ignomínias, levantara o Fístula e o sogro da concubina do abade ao nível dos maridos probos e dos sogros envergonhados.

Li anteriormente:
Eusébio Macário (1879)
Amor de Perdição (1862)
A Queda dum Anjo (1866)