30 de novembro de 2019

Como eu Atravessei África

Serpa Pinto
Como eu Atravessei África (1881)

O major Alexandre de Serpa Pinto é, nos dias que correm, um nome esquecido, apesar de figurar ainda nas placas de algumas ruas (enquanto os falsificadores da História o permitirem). Nem sempre foi assim: ainda há poucas décadas, ao lado de Brito Capelo e Roberto Ivens, também participantes da expedição que originou este livro, era um dos heróis nacionais reconhecidos pela exploração de terras africanas.
Desde sempre um apaixonado por astronomia e por temas africanos, quando o governo do reino decidiu enviar uma expedição científica à África Central, patrocinada pela Comissão Central de Geografia e pela Sociedade Geográfica de Lisboa, para fazer o reconhecimento dos vastos territórios situados para além das costas onde os portugueses se tinham estabelecido desde os sécs. XV-XVI, Serpa Pinto cedo mostrou a sua vontade em participar no empreendimento.
A expedição desembarcou em Luanda em Agosto de 1877, e dias depois Serpa Pinto encontrou-se com Henry Stanley, o famoso explorador anglo-americano, que tinha acabado de descer o rio Zaire — mais adiante, no livro, encontra-se também com Silva Porto e o zoologista José de Anchieta, pioneiros da exploração portuguesa no interior angolano.
Após sérias dificuldades em contratar carregadores, os exploradores partem enfim, de Dombe, próximo de Benguela, em Dezembro desse ano, rumo ao Bié. Separado de Capelo e Ivens pouco depois do início da viagem — e brevemente a eles reunido de novo em Belmonte (Cuíto), no Bié —, Serpa Pinto resolve dirigir-se ao Alto Zambeze, estudar os afluentes da margem esquerda, e, descendo o Zumbo, rumar a Quelimane, na costa moçambicana, pelo Tete e Senna. Assim, depois do Bié, Serpa Pinto atravessou a região que viria a ser o Moxico até ao seu ponto mais oriental, chegando a Lialui, capital do Barôze, próximo da confluência do Luena com o Zambeze, descendo depois o grande rio até à confluência com o Cuando. Neste ponto, por falta de recursos, não lhe foi possível prosseguir, como planeado, para Zumbo; e, depois de visitar as cataratas de Mozioatunia (Victoria) viu-se obrigado a rumar a Sul, na companhia dos Coillard, um missionário francês acompanhado da mulher e da filha, que conheceu nas proximidades da foz do Cuando. Depois de atravessar o Calaari, chegou a Shoshong, capital do Manguato, hoje no Botsuana, onde já residiam muitos ingleses, um dos quais o transportou até às margens do Marico. Depois seguiu pelo Transvaal até à sua capital, Pretória, a primeira cidade civilizada que encontrou desde a partida de Benguela, descrevendo com algum detalhe a história e cultura dos bóeres.
Mas a viagem de exploração propriamente dita terminara já em Shoshong, dado que a partir daqui o percurso, apesar de não isento de perigos, era já reconhecido e fora do âmbito dos objectivos que determinaram a expedição. O regresso não foi feito através de Lourenço Marques, como então pretendia Serpa Pinto, devido à guerra dos zulus, mas por Durban, que alcançou numa viagem rápida de seis dias, tomando uma diligência. Em Durban, o paquete que fazia a ligação à Europa acabara de zarpar, obrigando-o à espera inútil de um mês pela próxima partida, que se deu em Abril de 1879, pela rota do Índico: por via marítima até Aden e depois por terra até Alexandria. Os pontos seguintes foram Nápoles e Bordéus, e daqui até Lisboa, onde chegou no mês de Junho, quase dois anos passados sobre o início da viagem.
Escrito a partir do diário de Serpa Pinto, Como eu Atravessei África está dividido em dois volumes: A Carabina d’El-Rei (o título inicialmente destinado à obra), e A Família Coillard. Sem pretensões literárias, é um relato vivo desta viagem, dos seus casos e adversidades, afrontando tempestades, intrigas e hostilidades, as febres, e a permanente incerteza sobre o dia seguinte.

Era a 6 de Setembro. O thermòmetro durante o dia tinha marcado com persistencia 33 graos centìgrados, e o calor reflectido pêla areia tinha sido inchòmodo.
A noute apresentou-se serena e frêsca, e eu, sentado á porta da minha tenda, pensava no meu Portugal, nos meus e nos amigos, no futuro da minha emprêsa, tão ameaçada ali, e ora alegre ora triste, não perdia a fé e esperava. O acontecimento da ante-vèspera vinha pairar como nuvem nêgra sôbre o ceo lìmpido da esperança.
Os meus Quimbares, recolhidos nas barracas, conversavam junto das fogueiras, só eu estava fora. De sùbito prendeu-me a attenção um sem-nùmero de pontos luminosos que vi atravessarem o espaço.
Sem saber ao principio explicar o que seria aquilo, tive um presentimento, e sahi do cercado de caniço que rodeava a barraca.
Logo que cheguei fora, tudo me foi revelado, e um grito pungente de angustia suprema escapou-se-me da garganta.
Alguns centos de indìgenas cercavam o acampamento, e lançavam achas ardentes sôbre as barracas cobertas de herva sêca.
Em um minuto o incendio, ateado por um vento forte de este, tomava incremento horrivel. Os Quimbares sahiam espavoridos das barracas incandescentes, e pareciam loucos.
Augusto e a gente de Benguella reuníram-se em tôrno de mim. Em presença de um perigo tão terrivel, aconteceu-me o que por mais de uma vez me tem acontecido em iguaes circunstancias. Fiquei sereno e tranquillo de espìrito, pensando só em lutar e vencer.
Gritei á minha gente, semi-louca de se ver apertada em um circulo de fôgo, e consegui reunil-a no meio do espaço interior do campo.
Á frente de Augusto e dos muleques de Benguella, entrei na minha barraca em chamas, e consegui tirar d’ali as malas dos instrumentos, os meus papéis e trabalhos, e a pòlvora. A esse tempo as barracas abrazavam tôdas, mas o fôgo não podia attingir-nos. Verissimo estava a meu lado, inclinei-me para elle e disse-lhe, “Eu defendo-me aqui por muito tempo, passa por onde poderes e como poderes, e vai a Lialui dizer a Lobossi que a sua gente me ataca, diz tambem a Machauana o perigo que côrro.”
Verissimo correu ás barracas em chamas, e eu vi-o desapparecer por entre as labaredas. A esse tempo ja as azagaias ferviam em tôrno de nós, e ja haviam alguns ferimentos graves, entre elles um do prêto Jamba de Silva Porto, que tinha uma azagaia cravada no sobrolho direito. Ás azagaias respondiam os meus Quimbares com as balas das carabinas, mas o gentio avançava sempre, e ja entrava no acampamento, onde as barracas consumidas não offereciam barreira insuperavel. Em tôrno de mim, que desarmado segurava a bandeira da minha patria, estavam batendo-se como verdadeiros bravos os meus valentes Quimbares. ¿Estavam todos? Não. Faltava ali um homem, um homem que deveria estar ao meu lado e que ninguem tinha visto. Caiumbuca, o meu immediato, desapparecêra!
Ao amortecer do incendio, eu vi que o perigo era real e enorme. Eram cem contra um.
Parecia a imagem do inferno ver aquelles vultos nêgros, que com estridente grita pulavam ao clarão das chamas, avançando para nós cobertos com o alto escudo e brandindo as puidas azagaias. Foi um combater encarniçado em que as carabinas de carregar pêla culatra, pêlo seu fôgo sustentado, continham em respeito aquella horda selvagem.
Contudo eu calculava que o têrmo do combate não estava longe, porque as munições desappareciam ràpidamente; eu só tinha no comêço quatro mil tiros para as carabinas Snider, e vinte mil para as armas de carregar pêla bôca, mas não seriam essas as que me defenderiam; e logo que o fôgo abrandasse, por faltarem as armas de carregamento ràpido, serìamos esmagados pêlo gentio desvairado. O meu Augusto, que parecia um leão raivoso, chegou-se a mim com suprema angustia, mostrando-me a carabina, que acabava de rebentar. Disse ao meu muleque Pépéca, que lhe entregasse a minha carabina de elephante e a cartuxeira. Augusto correu para a frente, e fez fôgo para onde o grupo do gentio era mais compacto. Um momento depois, a grita infernal dos assaltantes tomou um tom differente, virando costas, tomáram elles precipitada fuga.
Só no dia seguinte, pêlo rei Lobossi, eu devia saber o que produzira um tal reviramento. Fôram os tiros do meu Augusto.
Na cartuxeira de que elle lançou mão havia balas carregadas de nitro-glicerina.
O effeito d’estas, fazendo desapparecer em bocados, pêla explosão, as cabêças e os peitos em que acertavam, produzio o pànico no meio d’aquelle gentio ignaro, que vio n’uma coisa nova para elle, um feitiço irresistivel.
Foi a Providencia que me quiz valer.
Conheci que estava salvo. Meia hora depois, appareceu-me o Verissimo, com uma grande fôrça capitaneada por Machauana, que vinha em meu soccôrro, por ordem do rei Lobossi. Lobossi mandava dizer-me, que era estranho a tudo, e que, provavelmente, o seu pôvo, sabendo que eu fôra ali para os atacar de combinação com os Muzungos de leste, que estavam com Manuanino, fizéram aquillo por sua conta; mas que elle ia tomar as mais vigorosas providencias para eu não soffrer mais aggressões. Tudo aquillo, se não foi ordenado por elle, foi por Gambela.
Verissimo, vendo os desastres do combate, perguntou-me ¿o que haviamos de fazer? e eu respondi-lhe com as palavras de um dos maiores homens Portuguezes dos ùltimos sèculos: — “Enterrar os mortos, e tratar dos vivos.”